O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


O único perigo era para a direita
Vitorino Santos, desenhador, 50 anos


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Antes do 25 de Abril, eu estava ligado ao MDP/CDE e ao PCP. Passava o Avante, distribuía propaganda. Mesmo na noite de 24 para 25, eu e outro camarada tínhamos estado a distribuir propaganda aqui na Póvoa.

Na manhã do 25 de Abril, pronto! Arranquei logo para Lisboa. Nem sequer fui ao trabalho. E andei lá no Carmo ao pé dos tanques do Salgueiro Maia. Recordo-me dos gnrs a ser vaiados pela malta que não os queria ali. Às vezes caíam umas pedras, eles mexiam nas armas, puxavam a culatra, a gente recuava e os tanques começavam a apontar para os gajos. Era um jogo do gato e do rato.

Da parte da tarde, um tipo disse: “Como é, pessoal? Estamos aqui todos parados? Vamos lá abaixo à António Maria Cardoso, aqueles gajos estão lá dentro...”, e lá fomos por ali abaixo. Vaiou-se os pides e lançaram-se umas pedras. Em determinada altura, eles começam a disparar, cai gente. Desci as escadinhas de S. Francisco, que nem sabia quantos degraus eram.

Às vezes pergunto-me donde é que surgiu aquela adesão tão grande, tão imediata. Acho que as pessoas, sem saber como, tinham acumulado uma enorme ânsia de mudança que passou muito para além dos projectos do MFA.

Recordo-me de uma vez, ali no Palácio Foz, o Otelo ser empurrado para a frente de uma manifestação da Lisnave que ia para S. Bento: “Vais à frente!” e foi mesmo. Aquela malta da Lisnave, quando se movimentava, metia medo aos tipos do MFA e do PCP: “Meus amigos, cuidado, vocês cansam-se e estão a dar cabo da nossa precaríssima economia”.

Aquela espontaneidade era pura e verdadeira, ao contrário do que os reaccionários dizem, na tentativa de a esvaziar do conteúdo popular. Aliás, os soldados, os soldados guevaristas, de bóina e barbudos, que juraram bandeira de punho cerrado, não o eram por acaso. Um gajo não andava assim para armar, andava porque sentia que aquilo simbolizava uma relação pura e verdadeira entre as pessoas e a sociedade.

Não faltou o medo dos excessos. Mas afinal nunca houve esse perigo, que depois pintaram, da guerra civil à porta, que a esquerda fazia e acontecia. Foi antes um grande movimento popular que levou por diante o 25 de Abril, ultrapassando as próprias linhas de demarcação do MFA. Depois apareceram organizações partidárias que agarraram e muitas vezes manietaram o movimento, para o moldar às suas próprias necessidades. Provavelmente aí já estávamos a recuar.

A dada altura rompi com os compromissos que tinha com o PCP. Já não estava a ver aquilo bem e pensei: “Não posso continuar aqui, estou a ver coisas que não via antes”. Sentia que o caminho para a revolução não era o que passava pelo PCP.

A minha actividade desenvolveu-se mais a nível das Comissões de Trabalhadores. Estive então ligado ao movimento das CUPs (Comissões de Unidade Popular) do PUP e do Grito do Povo. Fiz parte da CUP da Póvoa.

Houve um grande comício das CUPs, que fez faísca. Era a primeira vez que aqui na Póvoa se fazia qualquer coisa para desmontar a hegemonia do PCP e abrir caminhos de defesa da revolução.

Na manhã do 11 de Março tinha ido para o Algarve em serviço, até fomos revistados por aí abaixo. Quando regresso, sou contactado. “É pá, tu és delegado sindical. A empresa foi ocupada pelos trabalhadores. O patrão deixou de aparecer, ninguém sabe dele. De maneira que tu ficastes na Comissão Central de Trabalhadores”. Aceitei. A Comissão Intersindical (eram várias empresas associadas) surge a 14 de Março. Antes disso não havia nenhum organismo de trabalhadores a não ser os delegados sindicais.

Formou-se então uma Comissão Central e em cada empresa do grupo uma Comissão de Trabalhadores. Uma coisa interessante foi a redução do leque salarial. Houve pessoas que passaram a ganhar menos, a ficar com menos dois, três contos. Isto foi feito em Plenário de Trabalhadores, com a adesão plena dos indivíduos em causa, quadros e pessoal da órbita da administração que reconheceram ser tempo de se fazer justiça. Não se sabia do patrão, paz à sua alma, tinha que se avançar e a malta não podia esperar. A empresa ficou então numa situação de autogestão.

Acabámos com o relógio de ponto: “As pessoas fazem o horário que entendem, mas naturalmente em defesa da autogestão”. Recordo-me de termos ido ao Ministério do Trabalho por diversas vezes, por razões de pagamentos de ordenados e coisas do género. A comissão não tinha meios legais para o fazer, mas tínhamos de receber o dinheiro. Disseram-nos: “Meus amigos, o que o plenário de trabalhadores decidir é o que se faz. Há dinheiro na empresa, não há? Então pague-se os salários.” Pagámos!

Fizeram-se reuniões entre Comissões de Trabalhadores de diversas empresas com problemas comuns, à procura de uma saída. Houve propostas para as empresas se associarem de forma cooperativa, que se organizasse a rotação da atribuição de projectos, em função dos mercados e da dimensão das empresas. Não se conseguiu levar por diante, porque o projecto era um pouco megalómano.

Recordo-me também, por exemplo, de ter aparecido por aí um decreto que pretendia acabar com as caixas privadas e integrar tudo na Caixa de Previdência. Era demagógico, porque baseando-se em ideias ditas igualitaristas, ia minar a situação melhor que os trabalhadores de algumas empresas tinham. Aqui a Soda Póvoa (actual Solvay) era um desses casos, tinham uma Caixa própria. Eles sentiam que deviam lutar por essa vantagem. Então o meu grupo político decidiu apoiar a luta, mobilizou-se a população e os trabalhadores de outras empresas e organizou-se uma manifestação a Lisboa, frente ao ministério. E assim conseguiram manter a sua Caixa.

Aqui na Póvoa, sempre se esteve um pouco desligado do movimento político de Lisboa, aqui era muito operário, muito pouco intelectualizado. Lá tinha outras características. No primeiro 1º de Maio a malta daqui foi a pé até Vila Franca, a manifestação foi engrossando pelo caminho, mas foram 15 quilómetros a pé.

A autogestão também tem os seus problemas. Desapareceu a contradição entre capital e trabalho mas surgiram problemas entre a Comissão de Trabalhadores e os trabalhadores. Houve quem se arvorasse, ou tentasse arvorar-se, em patrão. É o trabalhador envolvido, por acidente, naquilo que não lhe compete. O que é que deveria ter sido? Era o Estado de todo o Povo, centralizado, um partido que organizasse, não podia ser pequenas células a administrar o capital, como o patrão. É uma área extremamente perigosa que queima o espírito e adultera as regras, cria contradições inevitáveis. Eu assisti na prática a situações deste tipo. E a tendência era em geral de se burocratizarem as relações entre as pessoas.

Aquele período foi no entanto muito rico. A liberdade, a solidariedade e a poesia estavam na rua. E não por decreto, não havia as agendas culturais de hoje, mas um projecto novo de sociedade. Não havia medo de andar na rua, havia uma sociedade menos egoísta. O único perigo era para a direita e para os do antigo regime.

★★★

Tendo em conta que os patrões chegam ao cúmulo de nos impedirem de vender a única coisa que possuímos — a força do trabalho; Tendo em conta que só a luta organizada da classe operária é capaz de fazer recuar a burguesia;

Nós, trabalhadores da Esmaltal, ocupámos as instalações com piquetes permanentes, sem paralisar o trabalho, como medida para defender os nossos legítimos direitos. Reivindicamos a intervenção governamental na empresa e a sua nacionalização". (Comunicado dos trabalhadores da Fábrica de Produtos Esmaltados do Norte, na Ponte da Pedra, S. Mamede de Infesta, 14/2/75)

continua>>>


Inclusão 23/11/2018