O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


Os soldados não ligavam aos oficiais
Manuel Borges, metalúrgico, 55 anos


capa

No dia 25 de Abril, logo de manhã, saímos da fábrica, a DMC, em Queluz, e viemos para o Carmo. O pessoal queria entrar pelo quartel dentro e o Salgueiro Maia dizia para nos mantermos calmos, que não devíamos fazer justiça pelas próprias mãos. Ele deu um prazo aos fachos para se renderem, caso contrário bombardeava o quartel. Ainda lhes deu umas rajadas.

Fui para Benfica perseguir os pides. Primeiro junto à igreja, depois ao pé da escola da PIDE/DGS. Apanhámos alguns no Jardim Zoológico. Quando isso acontecia aparecia a Marinha, que os metia nos carros, não deixando que lhes fizéssemos mal. Apesar disso, alguns não se livraram de apanhar uns murros e pontapés.

Organizei-me politicamente, fui eleito delegado sindical, membro da CT e fiz parte de um grupo de trabalho do Sindicato dos Metalúrgicos. Saneámos o dono da fábrica e fomos em manifestação ao RIOQ. Os soldados apoiaram-nos e vieram connosco. Quem mandava éramos nós e os soldados não ligavam nenhum aos oficiais.

Éramos 150 trabalhadores e entrámos em autogestão. Formou-se uma CT, elegeram-se os chefes. Passado algum tempo vieram os problemas. Começaram a aparecer uns oportunistas, geralmente do PCP, que queriam controlar tudo. Muitas vezes as coisas acabavam à porrada. Um engenheiro que tinha lá ido parar por esmola, por ser amigo do patrão, ficou responsável pela gestão. Quando se tratou de aumentar os salários, três meses depois, ele passou dos 8 contos para os 80. Houve outros casos. Por exemplo, pessoas que passaram da produção para as secções de desenho, distribuição de trabalho, etc. Formaram-se grupos, as tais “caixinhas”. Nunca alinhei nisso e nas reuniões denunciava essas situações. Achava que os trabalhadores deviam saber tudo o que se passava lá dentro.

Era frequente o pcs agredirem-me nas manifestações. Na fábrica, como era conhecido, não se atreviam. Uma vez numa manifestação encontrei um gajo que mora no Casal de São Brás, a “distribuir fruta” nos esquerdistas. Virei-me para ele e perguntei: “Então andas a bater na malta? porque é que fazes isto?” Ele respondeu que não sabia.

Participei numa invasão ao Estado-Maior do Exército. Já não me lembro qual era o motivo, mas naquela altura isso não era lá muito importante. Desde que fosse para armar reboliço contra a facharia, estava bem. Derrubámos uns gradeamentos e entrámos por ali dentro. Os soldados diziam “entrem, entrem, estejam à vontade”. Lá dentro estava um grupo de oficiais fachos. Pusemo-nos a cantar o “Hino de Caxias”. Eles olhavam-nos com uns olhos...

Um rapazito de 16 anos tinha-se empoleirado num dos portões. Veio de lá um oficial que começou a empurrar para o deitar a baixo. Agarrei num pedregulho, virei-me para ele e disse-lhe: “Se você derruba o miúdo eu mato-o”. Ele olhou para mim e foi-se embora.

Outra vez estive numa luta da Comissão de Moradores de Campo de Ourique contra as desocupações. Eles pediram apoio ao Sindicato porque já estavam há 4 ou 5 dias sem dormir, impedindo a saída do ministro da Habitação. A polícia entretanto tinha conseguido infiltrar alguns provocadores que armaram uma enorme zaragata e aproveitou para carregar sobre o pessoal. Foi uma luta acesa. Vi gente a subir para cima dos carros, debaixo dos tiros, gritando para que não fugisse ninguém. Choviam pedras de todo o lado para cima dos polícias. 12 deles foram para o hospital; dos nossos, dois.

Como entretanto o ministro aproveitou a confusão para fugir, nós já não estávamos a fazer nada ali. Eram umas 5 da manhã. Então resolvemos vir em manifestação até ao Rossio. Éramos uns 200 à partida e quando chegámos ao Rossio já éramos para aí uns 5 mil. Uns de pijama, outros de motorizada, eu sei lá. Fez-se um comício. A polícia ainda apareceu, mas retirou.

Ainda outro caso: na Falagueira havia uma loja propriedade de três indivíduos que fugiram para o Brasil, deixando dívidas aos fornecedores e os trabalhadores sem salários. Com a nossa ajuda, foram vender a produção para o mercado enquanto as mulheres ficavam na fábrica. Pagaram as dívidas todas. Quando a coisa começou a mudar para a direita, os patrões regressaram do Brasil. Chegaram à fábrica dizendo “isto é nosso”. Os trabalhadores disseram não e apresentaram provas de que tinham tudo legalizado em seu nome. Um dos patrões foi buscar uma pistola, arrombaram a porta e entraram por ali dentro. Agrediram as mulheres e puseram-nas na rua. Juntou-se muita gente com paus e pedras. Eles lá dentro desataram aos tiros e só por acaso não morreu ninguém. O pessoal entrou por ali dentro e deu-lhes uma tareia tal que se não chegam os Comandos eles morriam ali. Depois a fúria popular virou-se para os carros, que ficaram completamente destruídos. A polícia prende um popular e acusa-o de ter danificado um dos carros. Dirigimo-nos à esquadra, entrámos por ali dentro e libertámo-lo.

★★★

Diz-se que houve sequestro do sr. Kurt. Ora este senhor, que nunca foi vítima de qualquer violência, tem para com os trabalhadores um comportamento ditatorial, prepotente e grosseiro, chegando ao ponto de impedir pela força a entrada de trabalhadoras, forçando- as a ficar na rua até se ouvir o último toque para a entrada, para as obrigar a perder um dia de trabalho.

Este senhor nunca foi impedido de telefonar ou de sair da empresa e a única limitação que os trabalhadores lhe punham era de só poder sair acompanhado por dois trabalhadores, o que aliás se veio a verificar, por exemplo, para ir ao médico onde andava em tratamento”.

(O Fuso, jornal do Sindicato dos Trabalhadores dos Têxteis de Lisboa, Lanifícios e Vestuários do Sul, nº 3, Janeiro de 1975)

continua>>>


Inclusão 23/11/2018