O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


Os polícias de braços no ar
António Castela, funcionário público, 35 anos


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Quando do 25 de Abril eu era um puto. A minha ligação com a política era quase nula. Sabia da PIDE por relatos da malta da rua que já tinha sido detida. Mas o que mais me impressionou foi um vizinho que chegou da guerra colonial cego e amputado de uma perna e um outro que, num acesso de histeria, desatou certo dia, em plena rua, a gritar “Assassinos, eu vi morrer amigos meus”. A vizinhança, amedrontada, tentava-o conter enquanto ele se desfazia em lágrimas.

O dia 25 de Abril foi aquela sensação esquisita de se sair à rua à revelia do que nos aconselhavam. Toda a minha gente andava na rua, querendo saber o que se passava.

No liceu, uma assembleia decidiu a expulsão do reitor e de funcionários bufos, o que se concretizou de imediato debaixo de vaias, apupos e calduços. Pagavam-se assim as ameaças de denúncia à PIDE feitas aos estudantes progressistas, pouco antes do 25 de Abril. Mais tarde, soube-se que o reitor fora transferido para uma escola onde era desconhecido, e o bufo-legionário reapareceu tempos depois, com carta de recomendação da Comissão de Extinção da Pide, negando os trabalhinhos feitos.

Um dia, uma colega vendeu-me uma Voz do Povo. Eu andava baralhado com a confusão de partidos. A UEC aparecia sempre a defender o MFA, a Junta, a Democracia, a Legalidade, o Bom Comportamento. Tinham-se tornado mais papistas que o papa. Achavam toda a exigência “radical”, “esquerdista”, “contra-revolucionária”. Decidi-me então pelos esquerdistas. Tornei-me simpatizante de uma vasta área que ia da UDP à FEC-ML, passando pelo PUP, e que estava organizada debaixo da sigla “Núcleos Sindicais”.

No ano lectivo de 1975 o ministério decide manter a “reforma Veiga Simão”, o sistema de avaliação e as médias de dispensa, e os estudantes iniciam o protesto. Era um processo a nível nacional, mas em Queluz a luta encarniçou-se quando foi despedida uma funcionária da secretaria, que tinha denunciado um desvio de dinheiros. Decidiu-se ocupar o liceu. Os professores, sob proposta dos do PC, mostraram o seu desacordo abandonando o liceu. Acompanharam-nos os estudantes da UEC. Foram organizados piquetes para divulgar entre a população o que tinha acontecido. Os alunos mais velhos deram aulas e explicações aos mais novos. Enfim, manteve-se o liceu a funcionar. Sol de pouca dura. Numa noite em que um grupo de estudantes, entre os quais me encontrava, estava de piquete, o COPCON, chamado pelo presidente da Comissão de Gestão, invadiu o liceu e expulsou-nos. A batalha foi perdida.

O segundo 1º Maio foi para mim a descoberta de que havia uns milhares de gajos como eu. Afinal não eram grupelhos, como eu passava a vida a ouvir. A actividade política no liceu, nesse período, era muito intensa. Organizavam-se debates, passagens de filmes, reuniões e meetings sobre todo e qualquer tema. Havia bancas de toda a espécie de partidos.

Por essa altura os activistas da extrema-esquerda iam aos bairros de lata, apoiar a luta dos moradores pobres. No bairro da Estrada Militar realizaram-se jornadas de trabalho em apoio da construção de casas em tijolo e de um chafariz. Os moradores abriram um centro popular, onde passou a funcionar uma escola e a alfabetização, que nós, estudantes, íamos lá dar. Organizávamos actividades culturais nas colectividades de bairro.

Um dia, oiço na Rádio Renascença, a rádio “ao serviço da classe operária e do povo trabalhador”, um apelo dos trabalhadores que tinham ocupado o Palácio Foz, onde funcionava a Secretaria de Estado da Comunicação Social. Fui logo para lá. A polícia tinha ocupado o rés-do-chão e encurralara os ocupantes no primeiro andar. Cá fora começou a engrossar a multidão. Às vaias e pedradas, os polícias ripostaram com gás lacrimogéneo. As bombas caíam no chão e havia pessoal que corria, apanhava-as e voltava a lançá-las para dentro do edifício. As que não entravam caíam junto à parede, formando um cordão de fumo que dificultava a vida à bófia. Eis senão quando chegam dois jipes de polícias militares. Foi o delírio: “Os soldados são filhos do povo”. Os ocupantes, às janelas do primeiro andar, a bater palmas. Então, os militares deram ordem de rendição à polícia. Abriu-se uma porta e, de braços no ar, lá foi saindo a malandragem toda, debaixo de insultos e vaias. Mais uma vez uma ordem do Governo Provisório era ultrapassada pela “populaça”.

Por esta e por outras, o poder não perdoou à RR. O Conselho da Revolução e Pinheiro de Azevedo decidiram fechá-la. Fazem o mesmo a outras rádios, logo depois reabertas, só a RR fica muda cerca de um mês. Organizou-se então uma manifestação gigantesca de apoio à RR, que percorreu a cidade. Começou no Rossio e foi para a Buraca. Altas horas, com aplauso geral, é anunciada a morte do ditador Franco, mas a Renascença continuava por reabrir. “Ninguém arreda pé!”. Os manifestantes confraternizam com os soldados que lá estão de guarda. Passam-se cigarros e sandes. Há cantigas, fogueiras, histórias, e comenta-se o PREC. Às tantas lá vem a esperada notícia: a RR vai tornar a transmitir. Durou meia dúzia de dias. Os “democratas” voltaram à carga. Desta vez de dinamite. E as antenas da RR foram ao ar. Não te calas a bem, calas-te a mal! Dias depois, fechados na sede da UDP, ouvíamos os tanques do 25 de Novembro... E depois não queriam que eu me transformasse num “perigoso esquerdista”!

★★★

No dia 8 a malta concordou unânime em ocupar estas casas que estavam abandonadas e que nunca foram habitadas. No dia seguinte viemos ocupar isto e começámos a trabalhar, tivemos a ideia: são 24 casas que estão aqui abandonadas e nós precisamos de casas urgentemente. Como a solução não tem sido resolvida, a gente tem que resolver nós”.

(Comissão de moradores da Rua do Melo, Porto, 17/2/75)

GREVE NO JORNAL DO COMÉRCIO

Muita gente nesta terra
nos fala em democracia
Mas os meios de informação
estão nas mãos da burguesia

E no Jornal do Comércio
os trabalhadores unidos
fazem uma justa greve
para expulsar um bandido

Refrão

Ó Machado vai-te embora
Que nós não te queremos cá
Nós estamos vigilantes
O fascismo não passará

Vinte e dois dias passaram
e a greve continua
Nem que o ministro não queira
O Machado há-de ir p’ra rua

Para isso conseguirmos
o povo tem que apoiar
contra esses fura-greves
que nos querem isolar

Refrão

Lutar pelo saneamento
é lutar contra o fascismo
que é o perigo permanente
de todo o capitalismo

Camaradas da imprensa
não podemos desarmar
Nós queremos democracia
mas tem que ser popular

Refrão

Mas há muitos mais Machados
que o povo expulsará
Nós estamos vigilantes
O Fascismo não passará

continua>>>


Inclusão 23/11/2018