O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
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Edições Dinossauro


25 de Abril: As Transformações nas Escolas e nos Professores
Eduarda Dionísio, professora, 47 anos


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Em 1974, eu era professora num liceu — como se dizia então em Lisboa, no centro de Lisboa. (Para tal, tinha assinado, como todos os outros, a chamada “declaração anticomunista”... , que fazia parte da “papelada”). Hoje sou ainda professora, numa outra escola secundária — como se diz hoje também no centro de Lisboa, pré-fabricados construídos para albergar os alunos que passaram a ter mais um ano de ensino antes de se candidatarem à Universidade que, com Cardia, e em nome da democracia, passou a ter “numerus clausus”.

Em 25 de Abril de 74, esqueci deliberadamente os meus mais habituais “centros de interesse” — literatura, teatro, artes, cultura — a que só mais tarde “regressei”. Pareceu-me que era noutro lado que “as coisas” eram urgentes, poderiam transformar-se mesmo, e muito — “coisas” que mexiam com toda a gente. Escolha apressada, talvez.

Em todo o caso, até aos primeiros anos da década de 80, fui uma das muitas “militantes das escolas” — delegada sindical sempre, dirigente sindical por pouco tempo (77/78), fundadora do núcleo de professores do Movimento de Esquerda Socialista (onde estive até Dezembro de 75), fundadora da CEC — Contra a Escola Capitalista — que reunia dezenas de professores sem partido e cuja actuação excedia a actividade sindical (a partir de 76 até à sua extinção em 1981, parece-me).

Ou seja: durante esta meia dúzia de anos, participei — de uma forma ou de outra — em todas as lutas sindicais dos professores, em todos os processos eleitorais para a Direcção do Sindicato da Grande Lisboa (e na tentativa de suster a divisão sindical através da criação de uma Federação de todos os Sindicatos), em todos os processos eleitorais na escola onde era professora (comissão sindical, comissão de gestão, como se dizia), em todos os debates fundamentais, que foram muitos. Em suma: na transformação que a escola portuguesa foi fazendo até 76 — no sentido da “libertação” dos modelos autoritários/fascistas anteriores ao 25 de Abril e da construção de uma “escola ao serviço dos trabalhadores”. E continuei a “participar”, depois de 76, tentando suster o “regresso” a práticas que, durante um tempo, uns e outros tinham julgado para todo o sempre “ultrapassadas”.

Que não se entenda que 74/75 foi, para mim e para os que comigo militavam, um somatório de vitórias e um paraíso que o 25 de Novembro desfez. Nestas lutas de que tentarei dar conta, mesmo quando vencemos, fomos minoritários e as escolas em 74-75 não foram evidentemente um mar de rosas que se recorde simplesmente com saudade.

Mas, durante algum tempo, tomaram-se decisões, sem quase contar com o Poder. Ou seja: tomar decisões e pô- las em prática era uma e a mesma coisa. Víamos a realidade alterar-se a olho nu e pelas nossas próprias mãos. Também as escolas foram um terreno de descobertas e das mais diversas aprendizagens, de participação de todos, das mais diferentes maneiras, de grandes conflitos de fundo, que produziram fortíssimas mudanças de comportamentos e um exercício permanente de vontades, por parte de gente muito diversa, para quem a preocupação em pertencer a uma “maioria” nunca foi determinante..

Ironia do destino: as “revolucionárias” reformas do ensino que hoje se tentam pôr em prática para nos porem “a par da Europa” contam com as experiências e as aprendizagens desses anos, entretanto esvaziados dos pressupostos: “revolução”, “trabalhador”, “classe” e “luta de classes”, “ideologia”. “Trabalho em grupo”, “combate ao insucesso escolar”, “abertura da escola ao meio” (ou seja: às empresas, aos pais, aos agentes económicos e não às organizações de trabalhadores), “área-escola”, “inter-disciplinaridade”, no quadro de um ensino onde exames, quadros de honra, ensino técnico-profissional para os menos “favorecidos”, etc., etc.... voltaram a ter entrada, têm hoje outro sentido. São, evidentemente, peças de um outro projecto de sociedade...

25 de Abril de 74

O liceu onde eu dava aulas quando o 25 de Abril aconteceu talvez fosse dos mais disciplinados e controlados. Praticamente todos os professores punham sempre gravata — hábito que imediatamente se rompeu... As professoras só há pouco tinham sido autorizadas a usar calças — “jeans”, nem pensar... Também só podiam fumar em sala própria e nunca com os colegas-homens na sala dos professores. Pormenores que dizem muito. O direito de reunião, aqui como em todo o lado, era inexistente. Os poucos movimentos associativos (clandestinos) eram rapidamente descobertos e reprimidos.

Nos últimos dias de Abril, de repente, falava-se finalmente de tudo em voz alta. Ser “comunista” já não era crime. Antes do lº de Maio, já as sabedorias procuradas eram outras: as dos que tinham sido desde sempre da “oposição”. A “autoridade” mudava de campo.

No dia 30 de Abril, a sessão que reuniu livremente todos os professores da escola, na vetusta Biblioteca, ainda com a presença do Reitor (que em breve pediria a reforma), era uma realidade completamente nova e surpreendente. Pela primeira vez as pessoas falavam numa assembleia (ainda não propriamente “democrática”). Aprovou-se mesmo um documento (gesto desconhecido até então) de apoio à JSN — que todos os presentes por seu punho assinaram e que foi, se não me engano, redigido e proposto por Mário Dionísio, também professor nessa escola: “(...) esperam os mesmos professores que a orientação da política educacional seja entregue a quem, movido por inequívoco ideal democrático, leve todos os portugueses à escola para que nela se formem e preparem, estude e ponha em prática novas condições de trabalho, livre e criador, promova a real participação de todos os professores na obra imensa que se impõe e com eles tome as medidas necessárias à transformação de mentalidades, cuja necessidade imperiosa e urgente o 25 de Abril significa”.

Ao mesmo tempo que inaugurava um tempo novo — em que para muitos a esperança nascia e para uns quantos o medo crescia esta reunião fechava uma época. Poucos dias depois, o discurso já não seria o de uma tão grande e unânime confiança num Poder que, pelo menos na Educação, ia tardando em mostrar-se com clareza. Ou seja: as medidas que este e outros discursos consideravam mais que urgentes não apareciam.

Rapidamente, cada um tomou em mãos a mudança da escola onde trabalhava, sem muito esperar por qualquer “orientação de política educacional”. Contando cada escola com as suas próprias forças. E, muito depressa, ousava-se vencer, para além de se ousar lutar. Em breve, os professores descobririam também o que até ali não tinha sido uma evidência: nas escolas, havia estudantes e, para estes, também o 25 de Abril tinha chegado. E havia “funcionários administrativos” — e “auxiliares”, que, de um momento para o outro, já não eram designados por “pessoal menor”...

Depois do 1º de Maio, tratava-se sobretudo de eleger, muitas vezes nominalmente e evidentemente sem programa, em Reuniões Gerais, uma nova instância de poder, a que ninguém faltava, nomes para comissões: a comissão sindical, que tratava de tudo um pouco, sentida mais como garante da “democracia” na escola e elemento de ligação com as outras escolas, do que como estrutura de um sindicato que entretanto estava em formação; a “comissão de gestão”. Os copiógrafos das secretarias que, até ao momento, tinham servido apenas para reproduzir os enunciados dos exercícios escritos, editavam propostas de funcionamento da escola, reivindicações, comunicados que a imprensa divulgava (sem cunhas e sem dinheiro), os primeiros textos teóricos necessários. Lembro-me de um texto — prático, esse — bem necessário, que circulava nalgumas escolas e que uma professora tinha tido a iniciativa de fazer: um resumo das regras de funcionamento das assembleias democráticas do Roque Laia. Mesa, ordem de trabalhos e de inscrição, pontos de ordem, requerimentos, considerandos, propostas, declarações de voto — tudo foi, em certo momento, novidade. Eram instrumentos que se aprendia a dominar. Por eles passavam as vitórias e a felicidade.

Nem todos os que detinham estes conhecimentos estavam interessados em divulgá-los. Controlar uma assembleia passava muitas vezes pela ignorância ou pouca experiência dos que tinham acabado de chegar a uma prática, mais nova para uns do que para outros... Mas era também destes trabalhos “elementares” de “divulgação”, de “pedagogia democrática” e de participação que se fazia o quotidiano de muitos militantes, alguns dos quais se iam reunindo, informalmente, na sede do Movimento de Esquerda Socialista, fundado nos primeiros dias de Maio, e que não era ainda um partido, mas, de facto, um “movimento”, muito aberto.

Lembro-me de que um dos primeiros trabalhos da comissão sindical a que eu pertencia (no meio de uma agitação febril que nos levava da Escola à Cova da Moura, por causa dos “saneamentos”, às reuniões no Estádio Universitário, por causa do Sindicato, a outras escolas para sabermos uns dos outros e do que por outros sítios se passava), foi iniciar uma biblioteca de sindicalismo. Divulgávamos sistematicamente (stencil, copiógrafo) as indicações bibliográficas mais urgentes (e mais fáceis), os índices, os resumos, alguns textos escolhidos que traduzíamos fora de horas. Por exemplo: “O Sindicalismo Contemporâneo”, “O Sindicalismo Revolucionário”, “Marx e os Sindicatos”, “A CGT”, “Os Sindicatos Operários em França” — livros que alguns de nós tinham e que punham à disposição de todos...

O 1º de Maio e a criação do Sindicato dos Professores

As pessoas tinham vivido em silêncio. Agora procuravam-se. Algumas tinham-se perdido de vista. Outras nunca se tinham visto. Outras conheciam-se mal. Algumas tinham ouvido falar de outras. Só uma parte dos professores do PCP (e afins) estava organizada nos “Grupos de Estudos” antes do 25 de Abril. Era essa a “legitimidade” a que se agarravam.

Lembro-me de, um pouco ao acaso, imediatamente antes do 1º de Maio, me ter reunido com 4 ou 5 professores de outras escolas na casa de um deles. Dois outros estavam ligados ao PCP, mas não organizados nos “Grupos de Estudos”; rapidamente nos despediríamos.

Nessa noite de fim de Abril, parecia-nos óbvio que era urgente fazer um Sindicato de Professores — assunto de que ninguém falara ainda uma vez que antes do 25 de Abril só existia um titubeante sindicato corporativo do Ensino Particular (lutar contra o Ensino Particular viria a ser um objectivo de uma corrente em que me incluía) e era proibida a sindicalização dos “funcionários públicos”. Entendemos que deveríamos tomar a iniciativa e convocar os professores para a escadaria do Técnico no lº de Maio, o que foi simples: bastou telefonar para alguns jornais e dizer o que nos movia. Numa garagem, pintámos um pano que pregámos em dois cabos de vassouras: Pró- Sindicato dos Professores — Ensino Oficial. À hora indicada, estávamos postados na escadaria. Muitos professores ali foram ter. Mas muitos outros estavam convocados para outro ponto, através do aparelho PCP/Gru- pos de Estudos, ainda hesitante entre a ideia de “Associação” — mais “digna” para uma “classe” como a dos professores... — e a de “Sindicato”, que tínhamos lançado e que afinal não parecia assustar ninguém e, pelo contrário, ser muito mais mobilizadora...

Imediatamente, iniciaram-se as grandes assembleias convocadas por uma autonomeada CIP (Comissão Instaladora Provisória) de um (ainda não) Sindicato, que começou torto e nunca havia de se endireitar, mas que passou a ser uma referência para todos os professores, pelo menos até certo momento. Hegemonizado pelo PCP, este Sindicato (que agia como se antes de ser já fosse) não contou, evidentemente, com os contributos de milhares de professores que, mais tarde ou mais cedo, dele se distanciariam. Foi assim que as suas direcções desde o início tiveram de contar com fortes correntes de oposição.

As escolas onde os ex-Grupos de Estudos não tinham implantação, ou onde dominavam concepções sindicais e políticas que se lhes opunham, foram pura e simplesmente postas à margem de um processo onde teriam evidentemente coisas a dizer e a fazer. A manipulação e controle, por parte da Direcção, das assembleias com milhares de presenças, desde cedo começaram a dar ao comum dos professores a sensação de “impotência” em tudo o que ao Sindicato dizia respeito: o que tinha valor em cada escola deixava de ter valor nos plenários de todas as escolas. Em breve, para muitos, os inimigos eram dois, e de igual importância: o Ministério (que não dava resposta às questões prementes das escolas) e o Sindicato (que não dava resposta às questões urgentes dos professores). Eram sobretudo as escolas os terrenos da imaginação e das batalhas.

Lembro-me de, num desses “plenários” (como então se chamavam), procurar os subscritores de uma proposta qualquer cuja linguagem fugia ao “padrão” de todas as outras e que, estranhamente, tinha acabado por ser lida (grande parte das propostas das escolas não chegavam a ser lidas pela mesa). Ouvi, pelo meio da confusão a palavra “anticapitalista”, que me alertou para uma diferença que ali estava. Encontrámo-nos.

Perdida a hipótese para uma série de gente de participar activamente na formação de um Sindicato — gente que queria que ele funcionasse democraticamente, da base ao topo, que não fosse correia de transmissão de qualquer partido, e que respondesse às situações cada vez mais confusas que os professores e as escolas iam vivendo — as oposições à CIP foram-se alargando nas assembleias tumultuosas (já de delegados) que cada vez mais se iam centrando na situação de trabalho precário dos milhares de professores provisórios (não profissionalizados, sem pagamento de férias, sem colocação assegurada) em que o “normal” funcionamento das escolas repousava antes do 25 de Abril, e depois... Era uma luta que mobilizava largos sectores mais radicais, provenientes, em parte, das lutas estudantis recentes.

Julho de 74: As primeiras eleições dos Professores

Não foi, no entanto, a questão escaldante dos “provisórios” e das suas propostas de “recondução automática” que separou as águas no primeiro processo eleitoral para uma comissão directiva provisória (CDP), que teve lugar em Julho de 74, quando o Sindicato ainda não tinha Estatutos, mas as diferentes concepções de sindicalismo, e também de escola.

Integrei a Lista B, “Pelo Poder das Escolas”. Era sobretudo contra a atitude “cupulista” da CDP que esta nascia, da iniciativa de um grupo de professores que entretanto tinham aderido ao MES (ou que a ele posteriormente adeririam) — entre eles, César Oliveira, João B. Serra, José Magno, Margarida Leão, Maria Emília Dinis, Maria Adélia Silva Melo, eu própria, etc.... Eram professores com forte implantação nas escolas onde trabalhavam e reconhecidos a nível sindical por se oporem sistematicamente aos métodos da CIP nas assembleias. A Lista B incluía — muito para lá dos seus promotores e como resultado de um processo totalmente aberto de discussão do programa e da lista (fizeram-se reuniões nos mais diversos locais — desde o lº Acto de Algés ao Instituto Feliciano de Castilho) e amplamente participado — aqueles que não se identificavam com o sindicalismo que a CIP prosseguia, controlando as bases e manobrando no topo, actuando como lobby junto de um Ministério, onde os miltantes do PCP iam consolidando ou adquirindo posições. Na Lista B participaram professores que eram, ou viriam a ser, de organizações que iam do PS ao MRPP, sempre como professores e militantes das escolas e nunca como militantes partidários que traziam para o sindicato uma lógica que lhe era estranha.

O lema da Lista B inspirava-se deliberadamente no “Todo o poder aos cursos” das lutas estudantis de 69, em Económicas. O longo programa (15 páginas), minuciosamente discutido pelos elementos da lista e proponentes, e posteriormente em dezenas de reuniões de escolas de Lisboa, Santarém e Setúbal, incluía:

Nenhum dos textos era considerado “definitivo”; todos eles poderiam ir sendo alterados pelas assembleias que os discutiam, durante a campanha eleitoral, na base do pressuposto que “cumpre ao sindicato tomar posição quanto à função que o bloco social dominante procurará determinar aos professores”.

Seria a Lista A (“Por um Sindicato Único, Pela Unidade de Todos os Professores”), herdeira da CIP, como ela hegemonizada pelo PCP — mas onde participavam, entre outros, elementos que viriam a integrar o POUS e até o PPD (Glória de Matos) — que ganharia, com perto de 60% dos votos, as eleições mais concorridas do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (votaram 20 mil professores) e que ocuparia o Sindicato até 76 (e não por 7 meses como anunciara). A Lista “Pelo Poder das Escolas” obteve 35% dos votos — um resultado surpreendente para o PCP, que não entendia o sindicalismo sem um “aparelho partidário” (neste caso inexistente) por detrás.

A próxima grande batalha seria a dos Estatutos, já em 75. A CDP não conseguiu ver aprovados os seus, num Pavilhão dos Desportos apinhado, donde quer as forças à sua esquerda, quer à sua direita não arredaram pé, em sucessivas assembleias. Lembro-me de que várias vezes saímos de madrugada, directamente para as aulas da manhã, quando alguns maridos de professoras menos habituadas a estas lides nocturnas e recrutadas “contra o totalitarismo” (e não só), já as procuravam, assustados... Ao contrário do que temíamos, dada a extraordinária mobilização da direita nesta luta que parecia “de vida ou de morte”, também não foi a Direita que ganhou. Os Estatutos que acabaram por ser aprovados na generalidade eram propostos por um conjunto de miltantes da BASE-FUT. Seguiram-se meses de discussão “na especialidade”. Os Núcleos Sindicais de Base (formados pelos sindicalizados de cada escola) continuaram a ser estruturas com importância e previam-se formas de “expressão de tendências”.

O início do ano lectivo de 74/75

Foram muitos os professores que não quiseram ter férias em 74. Tomaram “revolucionariamente” para si as tarefas que anteriormente cabiam ao reitor e às secretarias — desde as matrículas à organização das turmas, passando pelos horários e pela organização da escola. Tratava-se de, quando o “Ano Lectivo nº 1” da “Era da Revolução” se iniciasse, ter entre as mãos uma escola nova.

O Ministério tinha entretanto nomeado uma Comissão de Estudo da Reforma Educativa (para os ensinos primário, preparatório, liceal e técnico, como então se chamavam), presidida por Mário Dionísio e formada por dezenas de comissões de professores dos vários graus e disciplinas. O trabalho consistia não em fazer, por enquanto, a “reforma”, mas, em poucos meses, eliminar dos programas a ideologia fascista, introduzir as alterações mais óbvias nas disciplinas mais “desfalcadas” ou mais “marcadas”. Quando o ano lectivo começou, os programas não eram já os mesmos do ano anterior, havia “textos de apoio” (em vez dos manuais), “introdução à Política” no ensino complementar, a religião e moral era completamente facultativa.

Mas foi sobretudo nas escolas que se iam dando as grandes transformações. Os professores estavam organizados em “grupos de trabalho” que proliferavam — para tudo e mais alguma coisa — para estudar, propor, pôr em prática. Os “organigramas” — palavra nova — dos novos modelos de “gestão escolar” — conceito novo — sucediam-se e eram vivamente discutidos. Tratava-se de assegurar a máxima participação de todos os que trabalhavam e estudavam nas escolas, a maior representatividade de todos em todos os órgãos (todos eles novos — desde os conselhos de grupo aos conselhos de turma, passando pelas reuniões de escola e de sector, etc...), a mais larga “abertura ao meio”. Tratava-se de ter nas mãos a escola em que se trabalhava ou se estudava — que se “habitava”, como se dizia então fazê-la acompanhar o movimento social, a “revolução”, quando não até ultrapassar o seu passo... Isto passava-se sobretudo nas escolas que batalhavam, na sequência da Lista B, pela “autonomia” e que eram contra um modelo único de gestão, como o Ministério e a CDP do Sindicato preconizavam.

Todas as transformações (sobretudo as que não coincidiam com os desejos da CDP ou lhe passavam à margem) eram o resultado de “lutas”. Era possível ser recebido no Ministério pelos novos responsáveis, sem muito custo nem muita burocracia — uma novidade. Mas impor as propostas que se traziam das escolas e passá-las à prática com “aprovação superior” era sempre o resultado de conversações sem fim... Rapidamente se entendeu que se devia prescindir dessa “aprovação”...

Lembro-me das dificuldades postas pelo Ministério na transformação imediata da nossa escola — que era um liceu “masculino”, com uma pequena secção “feminina” numa zona à parte, antes do 25 de Abril — numa escola “mista”. Argumentos invocados: a falta de “preparação” das mentalidades; os problemas que iriam surgir... Alguns professores mais conservadores, sem se atreverem a opor-se, sugeriam que as turmas passassem a ser mistas, sim, mas que as alunas deveriam ocupar as primeiras filas das salas...

Lembro-me da recusa da escola em receber mais alunos na escola — em nome da “democratização”, o Ministério tentava obrigar a fazer turmas de 40 alunos — e como a reabertura da escola só aconteceu muito tarde, depois de uma enorme batalha em que todos participaram e que passou por contínuas informações para os jornais (que as publicavam), pela discussão com alunos e pais, pela anexação de novos espaços que os professores se propunham gerir.

Quando as “férias” terminaram, era uma outra escola: as turmas eram mistas, a distribuição dos alunos por turmas e por turnos visava combater a selectividade, a elaboração dos horários atendia sobretudo ao interesse dos alunos, caminhava-se para a semana de 5 dias (antes do 25 de Abril as aulas funcionavam aos sábados) e a recepção aos alunos (até então inexistente) fazia-se em reuniões de turma (com todos os professores e alunos) que se aproximavam de “assembleias”, com mesa, propostas, inscrições, votações, acta, etc...

Os professores da escola tinham respondido a um inquérito, na base do qual os grupos de trabalho eleitos decidiam e punham em prática critérios, depois de ratificados em assembeias. Havia um “caderno reivindicativo” aprovado que ultrapassava em muito as questões laborais e que avançava, por exemplo, para a criação duma creche dentro do liceu (que nunca foi autorizada). Os professores já se tinham manifestado quanto ao fim dos exames e por formas de avaliação contínua. Preparavam em conjunto (e às vezes com os alunos) programas, antologias. Os autores já eram outros. Já havia século XX. Também na escola e nas aulas, já se falava em “exploração”, as colónias já não era o “ultramar”, havia Leste, América Latina, política, cartazes.

Em Novembro e Dezembro de 74, toda a escola discutia — começando a discussão nas turmas e acabando em RGEs (Reuniões Gerais de Escola, com professores, alunos e empregados) — propostas divulgadas por escrito e da autoria de cada sector, ou de grupos de alunos (alguns dos quais se identificavam partidariamente): as questões do saneamento (para o qual tinha sido constituída uma comissão aberta com regulamento aprovado publicamente), a avaliação, a gestão (com número igual de alunos e professores, com a participação de empregados e que incluía “Subcomissões” — cultural, informativa, sonora, técnica, desportiva...), um regulamento interno (utilização dos pátios e dos espaços — não havia sala de convívio —, aulas “abertas”, faltas não eliminatórias, abolição das faltas de material e de castigo, material escolar à disposição em cada sala, julgamento de casos disciplinares com a presença dos implicados, etc...).

Simultaneamente, a comissão sindical — que era o motor de arranque de quase todas as questões e iniciativas (e que garantia uma autonomia financeira graças às quotas sindicais que não era difícil cobrar) continuava a divulgar textos e a promover, à noite, colóquios largamente participados onde se confrontavam correntes de opinião distintas e que a imprensa relatava. Lembro-me de um sobre a “função de um sindicato” que reuniu na mesa pessoas com conceitos bem diferentes (Marcelo Curto, Teresa Rosa, Augusto Mateus, Manuel Gusmão), outro sobre a “função da escola”, outro sobre “gestão”, outro sobre “partidos”. Aos muitos participantes era distribuído material. As pessoas continuavam a aprender. E gostavam do que faziam.

Março de 75

Três dias antes do 11 de Março, reuniam-se, em Económicas, centenas de professores. Era um “Encontro Nacional” promovido pelo Núcleo de Professores do MES. Alguns dos que participaram no Encontro eram militantes, bastantes consideravam-se “simpatizantes”, a maior parte não tinha qualquer relação com o Movimento. Apenas reconheciam interesse no Encontro — que vinha na sequência do discurso do “Pelo Poder das Escolas”.

O Encontro durou das 9 da manhã à meia-noite, em reuniões plenárias e por secções. Tratou da escola e do sindicalismo dos professores, dos conteúdos e dos métodos de ensino, por graus e por disciplinas, a partir de textos previamente divulgados. Tratava-se, depois deste grande encontro, de os “professores presentes promoverem debates a partir das teses e das conclusões, bem como dos textos antológicos” divulgados e “levar à prática as propostas avançadas, devidamente ajustadas às situações concretas e à evolução do processo político revolucionário em curso no nosso país”.

Um livro foi rapidamente editado. Vendeu-se facilmente. Reúne um conjunto de materiais que muitos professores usaram nas suas tentativas de “combater a escola burguesa” e de transformar a escola numa outra escola.

25 de Novembro de 75

Muito se tinha andado desde Abril de 74. As escolas já não eram — há muito, parecia-nos — como dantes. Alunos e professores mantinham relações muito mais igualitárias — o que não excluía o conflito. Era normal tratar-se na escola do que se passava fora dela. A fórmula da “assembleia” passou para muitas aulas. As autoridades estavam abaladas.

Não havia rotina nas escolas. As aprendizagens a custo se centravam nas “matérias”. Eram outras. Lembro-me dos enormes cartazes com frases de Samora Machel, por toda a escola, a propósito da independência de Moçambique.

O ano lectivo de 74/75 tinha sido, evidentemente, profundamente agitado por todas as questões referidas e muitas outras, mas também por acções violentas, provocadas por grupos de estudantes de direita que andavam de escola em escola. As interrupções de aulas eram constantes — reuniões cada vez menos participadas, greves cada vez mais frequentes. Militares ocuparam a direcção das escolas mais “ingovernáveis”. Em 75, os “pais” começavam a organizar-se no sentido de “repor a ordem” nas escolas dos seus filhos, o que passava por “vigiar” os professores, apesar de só em 76 as poucas associações de pais existentes se terem reunido naquilo a que chamávamos a “CAP dos Pais”.

Os alunos mais novos, e também, de uma maneira geral, os que não pertenciam a organizações exteriores à escola, e muitos professores, começavam a cansar-se. Os alunos habituaram-se sem dificuldade a decidir sobre (pelo menos) algumas coisas, mas mais cedo do que grande parte dos professores, já não lhes parecia assim tão essencial decidir, ir a reuniões, nem, por exemplo, que as reuniões das comissões directivas fossem públicas — o que tinha sido um grande cavalo de batalha...

Em Novembro de 75, eu pertencia a mais uma comissão sindical, recentemente eleita, cujo programa terminava dizendo: “Só um trabalho de base quotidiano e regular com todos os professores interessados no processo revolucionário e no socialismo em torno de verdadeiros problemas pode dar origem a uma linha sindical consequente e contribuir para a criação dum sindicato democrático e de massas que adquira uma função na luta anticapitalista”.

Um mês antes do 25 de Novembro, em resposta a um texto da CDP do Sindicato intitulado “É necessário impedir a desagregação do nosso Sindicato!”, a comissão sindical anterior, a que eu pertencia também, tinha divulgado um contratexto, discutido numa reunião alargada e distribuído noutras escolas, onde responsabilizava a CDP pelo avanço de posições “oportunistas” e “contra-revolucionárias”, uma vez que, entre outras coisas, não tinha conseguido manter uma posição coerente no caso da colocação/recondução dos professores (que ainda se arrastava); tinha feito acordos com o MEIC sobre a questão da gestão (cujo decreto-lei entretanto saído não assegurava uma real participação e autonomia); tinha desmobilizado os professores no processo da reivindicação salarial, ao ter negociado os aumentos numa perspectiva “trade-unionista”; tinha apoiado os únicos estatutos que privilegiavam os plenários em detrimento das assembleias de escola; tinha abandonado a discussão da lei da greve, da lei sindical, dos saneamentos, dos concursos, das acumulações, etc., etc....

Já se começava, pois, a falar de “desmobilização”. Poucos dias antes do 25 de Novembro, a comissão sindical aprovava, nessa escola, uma declaração de princípios sobre gestão democrática, a discutir em assembleia de delegados, que, mais uma vez, afirmava que não deveria haver um único modelo de gestão e que “os modelos de gestão aprovados deverão permitir e fomentar a ligação da escola ao meio e o progressivo controle da escola pelos órgãos de Poder Popular”.

No princípio de 76, tiveram lugar as primeira eleições para o Sindicato dos Professores decorrentes dos Estatutos aprovados. As listas, propostas por 200 sócios, eram constituídas por 50 candidatos. O regulamento ainda dizia que estes não podiam ter pertencido à ANP, UN, PIDE/ DGS, MP/LAG, nem ter nenhum processo de saneamento pendente, nem ter pertencido a qualquer direcção de sindicato imposta pelo regime fascista, nem ter interesses financeiros no ensino particular, etc.... Concorreram 6 listas e, pela primeira vez, a direita. Aquela que eu integrei, a B, tinha como lema “Mobilizar. Combater. Unir. Por uma Prática Sindical Anticapitalista”.

O PCP perdeu a direcção para o PS (que incluía o futuro POUS). Em breve, seria o agravar da desmobilização — que tinha, aliás, começado logo, significativamente, com os aumentos salariais de 75. Mas muitas comissões sindicais e assembleias de escola continuavam — e continuariam por muito tempo ainda — activas, com real influência nas escolas e no Sindicato.

Faltava pouco para se começar a falar no “regresso à escola do 24 de Abril”.

continua>>>


Inclusão 23/11/2018