O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Falar de Abril

Edições Dinossauro


Autonomia dos Trabalhadores, Estado e Mercado Mundial(1)
João Bernardo, escritor, 47 anos


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1. O 25 de Abril deveu-se à incapacidade do fascismo de ganhar as três guerras coloniais. Não havia nenhuma outra razão para que o salazarismo não se democratizasse progressivamente, seguindo o exemplo do fascismo espanhol. A base social para essa operação seriam os tecnocratas, os gestores, cuja importância era já significativa no interior do aparelho de Estado. Foram eles quem representou a continuidade política e económica do capitalismo em 1974 e 1975.

As guerras coloniais bloquearam a democratização. Para democratizar era necessário pôr termo à guerra, o que significaria para o fascismo português uma derrota política gravíssima. Mas, por outro lado, era cada vez mais difícil manter o esforço militar. Portugal foi sempre um país de emigração, mas a partir da década de 1960 a direcção do movimento mudou das Américas e da África para a Europa, tornando-se então as deslocações muito mais fáceis. Para um número crescente de jovens trabalhadores, fazer a guerra implicava um atraso de quatro ou mais anos na ida para o estrangeiro. E como em grande parte dos casos a emigração era clandestina, pouco importava ter ou não a situação militar regularizada. O desenvolvimento do movimento contestatário estudantil levou um número considerável de estudantes a emigrar também, para não participar na guerra.

Os problemas de recrutamento eram mais sensíveis ainda entre os oficiais de carreira, porque poucos jovens se inscreviam na Academia Militar. Nesta situação o governo viu-se obrigado a atribuir aos oficiais milicianos funções e regalias que até então haviam sido privilégio dos oficiais de carreira de baixa patente. Na sua origem o Movimento das Forças Armadas representou a oposição destes oficiais profissionais ao estatuto que estava a ser concedido aos milicianos. Mas o Movimento desenvolveu-se e passou a ter como temas centrais a incapacidade de ganhar militarmente as guerras coloniais e a necessidade de entrar em negociações com os movimentos de libertação. Para isso era necessário mudar o governo de Lisboa. Foi com este objectivo que se realizou o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974.

2. O golpe militar não teria triunfado tão facilmente sem o apoio da esmagadora maioria da população. A população vitoriava os sublevados em todas as cidades do país. E aclamava também forças pró-governamentais, julgando que eram revoltosas, o que lhes provocou uma completa desmoralização. Finalmente, os regimentos fiéis ao governo viram-se perante a impossibilidade de atacar os muitos milhares de pessoas que saíam para a rua.

3. A dimensão assumida pelo apoio da população aos militares insurrectos obrigou-os a remodelar o aparelho de Estado, em vez de se limitarem a introduzir alterações no existente. Sob este ponto de vista ocorreram dois tipos de situação:

Em Lisboa a população, por uma iniciativa absolutamente espontânea, recorria à Junta de Salvação Nacional para resolver os mais diversos problemas. As filas de espera atingiam enormes extensões junto ao palácio onde a Junta se instalara. Os membros da Junta viam-se assim obrigados a tomar decisões sobre variadíssimos assuntos e, dada a profunda ignorância que caracteriza os militares de carreira, tinham de recorrer aos oficiais milicianos, relativamente mais instruídos. Mas estes, na sua maioria, eram de esquerda e em boa parte ligados aos vários partidos de esquerda e de extrema-esquerda.

Na província ocorreu a completa dissolução do aparelho de Estado regional e local. Salazar procurara sempre que os seus partidários se afastassem da intervenção política activa e incutira em todos os colaboradores o medo pânico do comunismo. Incapazes de fazer frente aos acontecimentos, as autoridades regionais e locais abandonaram os cargos ou mesmo fugiram. E assim nas câmaras municipais os médicos e advogados de direita foram substituídos pelos seus primos e cunhados, advogados e médicos da esquerda moderada ou próximos do Partido Comunista. Esta esquerda, sem precisar de eleições, passara a controlar o aparelho administrativo na província.

4. O exército é um aparelho de Estado suplementar. As forças armadas eram a única estrutura que restava ao capitalismo em condições de emanar ordens do centro para as regiões. Nos dias que se seguiram ao golpe de 25 de Abril o exército foi o esqueleto do Estado. A esquerda moderada e o Partido Comunista foram as veias e os nervos que deram vida a esse esqueleto. Aliás, o exército e os partidos políticos partilham um modelo hierárquico comum.

5. Ao mesmo tempo que exerciam pressões sobre a Junta de Salvação Nacional no sentido da reconstituição do aparelho de Estado, os trabalhadores começaram a auto-organizar-se. O novo aparelho político, tanto em Lisboa como na província, existia apenas sob a forma de cúpulas, sem as estruturas de enquadramento das bases. Estas cúpulas sustentavam-se só porque a população nelas confiava e a elas recorria por sua livre iniciativa.

Isto significa que a reconstrução do aparelho de Estado foi um dos aspectos da iniciativa dos trabalhadores e da autonomia da sua acção. E, evidentemente, revelou os limites dessa autonomia.

O outro aspecto consistiu na organização da produção em algumas empresas e, depois, na organização da vida em certos bairros. Na indústria a ordem dos acontecimentos era com frequência a seguinte: o patrão fugia com o dinheiro ou abandonava uma empresa que se encontrava em situação económica precária; perante o risco de ficarem desempregados, os operários tomavam conta da empresa e recomeçavam a produzir. No Alentejo e no Ribatejo os trabalhadores agrícolas procederam à ocupação colectiva de latifúndios, muitas vezes mal aproveitados, para acabar com o espectro do subemprego e do trabalho precário. Estes foram os casos extremos. Mas na generalidade das empresas criaram-se comissões de trabalhadores com poderes mais ou menos latos, que iam desde a condução das lutas até à influência directa na gestão.

6. Existe um antagonismo inconciliável entre as consequências sociais da reconstrução do aparelho de Estado e as da organização directa da produção pelos trabalhadores. A actuação do aparelho de Estado tem como objectivo a centralização das decisões e o afastamento dos trabalhadores relativamente à organização da produção e da vida em geral. Pelo contrário, os efeitos da organização directa da produção pelos trabalhadores são o aparecimento de novos modelos nas relações de trabalho e na gestão da economia. Estas novas relações sociais de produção decorrem imediatamente do relacionamento comunitário e igualitário que os trabalhadores estabelecem entre si quando lutam com iniciativa e autonomia. Recordo-me de um exemplo flagrante. Durante uma das mesas-redondas organizadas pelo jornal Combate [que existiu desde Junho de 1974 até Fevereiro de 1978 e que nada tem a ver com o que hoje se publica com o mesmo nome] com trabalhadores de várias empresas, as operárias da Sogantal, as primeiras a entrar em autogestão, levaram as operárias da Charminha a reorganizar as suas relações de trabalho, discutindo o problema das chefias imediatas e as funções desempenhadas pelo pessoal dos escritórios. Numa empresa de maior vulto, a Efacec/Inel, pensava-se seriamente em reorientar a linha de produção, tendo em conta o novo papel social assumido pela classe trabalhadora.

É este o futuro potencial do movimento operário. E esta a única acepção não demagógica da palavra comunismo. O comunismo é o desenvolvimento possível de formas de organização hoje já embrionariamente existentes nas lutas operárias. É a transformação dessas relações de luta em relações de produção, a organização de toda a sociedade consoante o colectivismo e o igualitarismo que une os trabalhadores quando conduzem autonomamente a sua luta.

7. A vanguarda da classe trabalhadora é ocupada, em cada momento, por aqueles que mais longe conseguem levar a tendência à transformação das relações de luta em relações de produção. Os sectores onde esta tendência mais se desenvolver serão aqueles onde as novas formas de organização do trabalho mais se conseguirão afirmar contra os modelos de gestão capitalista.

Em 1974 e 1975, perante a situação de crise interna do capitalismo em Portugal, era o mercado mundial que impunha rigorosamente os critérios capitalistas de produtividade e de organização. Quanto mais directa fosse a dependência de uma empresa relativamente ao mercado mundial, tanto menos podia converter as suas relações de luta em formas novas de organização do trabalho. Neste tipo de empresas as comissões de trabalhadores eram absolutamente democráticas quanto à forma de eleição, mas os seus membros agiam como gestores capitalistas a partir do momento em que tinham necessidade de organizar o trabalho. Por isso surgiam sistematicamente conflitos entre a base e as comissões, que levavam à demissão de membros e a novas eleições. A repetição destes insucessos motivava o desânimo, o recuo da base e a crescente apatia da massa trabalhadora, o isolamento da comissão e, finalmente, a sua transformação definitiva em órgão inserido na gestão capitalista. Foi este mecanismo profundo que quebrou o ímpeto do processo revolucionário e permitiu a normalização capitalista da sociedade portuguesa.

Pelo contrário, aquelas empresas que, pelo tipo de bens produzidos e de matéria-prima empregue, mais afastadas estavam do mercado mundial, puderam em muitos casos beneficiar do apoio activo dos restantes trabalhadores. Quando se criava assim o que, à falta de melhor nome, denomino “mercado de solidariedade”, podia perdurar durante muito tempo a tendência a uma organização colectiva do trabalho. Creio que os trabalhadores da Sousa Abreu bateram todos os records, vendendo ao longo de anos as toalhas que produziam, em feiras e bairros populares. Mas precisamente porque ocupavam na estrutura económica uma posição meramente periférica, o impacto deste género de empresas nas transformações sociais não ia além do seu valor didáctico.

Quanto às Unidades Colectivas de Produção nos campos do Alentejo e do Ribatejo, a sua única fonte de financiamento era o Estado, por isso sintetizaram bem o duplo aspecto da iniciativa dos trabalhadores. Organizavam autonomamente a produção local; mas, ao mesmo tempo, procediam a pressões sobre o aparelho de Estado que tiveram como efeito acelerar a sua reconstituição.

O desenvolvimento da auto-organização nas empresas reflectiu-se numa auto-organização nos bairros. E também aqui se observam dois aspectos contraditórios. Mais afastadas do mercado e das imposições da gestão capitalista, as comissões de moradores puderam revelar-se mais duradouras do que as comissões de trabalhadores. Mas, mais perto do poder central enquanto fornecedor de infra-estruturas, as comissões de moradores tiveram um papel importante nas pressões que levaram à reconstrução do aparelho de Estado.

O problema fundamental do movimento operário desenvolvido após o 25 de Abril foi o de que a vanguarda social não ocupava uma função económica central no processo de produção. Por isso não pôde expandir a todo o sistema económico os novos princípios de organização social que incorporava. Foi a pressão do mercado mundial que impediu tal expansão. Nas circunstância actuais, e em qualquer país, a conclusão é a mesma. Ou as novas relações sociais surgidas na luta vão afectar apenas sectores económicos marginais, ficando condenadas a não se desenvolver e a esclerosarem. Ou, para reorganizarem os sectores cruciais da economia, têm de enfrentar directamente o mercado mundial, mas isso só pode suceder se o ataque for lançado simultaneamente a partir de uma variedade de países. O capitalismo está organizado internacionalmente, enquanto os trabalhadores continuam divididos por fronteiras.

8. A preservação do mercado mundial foi a condição para a reorganização final do aparelho de Estado e da economia capitalista. O recuo dos trabalhadores de base na maior parte das empresas e o consequente isolamento e degenerescência das suas comissões; a asfixia das empresas que sobreviviam graças a “mercados de solidariedade”; o controle das Unidades Colectivas de Produção pelo Estado enquanto financiador — foram estes três factores que permitiram ao aparelho de Estado, a partir do período de 1975-1976, deixar de ser apenas uma hierarquia de cúpulas sustentada pela boa vontade da população e passar a ter alicerces sólidos.

Os partidos começaram então a existir como organizações de massa, enquanto que, anteriormente, o Movimento das Forças Armadas publicava anúncios nos jornais diários apelando para que as pessoas se inscrevessem em partidos. Os sindicatos, cujos dirigentes se haviam lamentado em público pela falta de filiados, cresceram daí em diante à custa da degenerescência das comissões de trabalhadores. E as autarquias locais puderam implantar-se graças à degenerescência das comissões de moradores. Pois não é a democracia parlamentar e representativa uma expressão perfeita da ausência de autonomia dos trabalhadores? O poder, ou se tem, ou não se tem. E, quando se delega, deixa de se ter. A degenerescência da autonomia dos trabalhadores e o desenvolvimento da democracia capitalista são um único processo.

Para que a transformação democrática se efectuasse não bastaram os militares, nem a continuidade representada socialmente pelos tecnocratas e os gestores. Foi a actuação autónoma da classe trabalhadora, na ambiguidade contraditória de todos os movimentos circunscritos a fronteiras nacionais, que ao mesmo tempo que pôs em causa o capitalismo e que avançou na experiência do futuro possível, exerceu também as pressões necessárias para a reorganização do aparelho de Estado e para a modernização do capitalismo.

continua>>>


Notas de rodapé:

(1) Este texto reproduz as notas para uma conferência efectuada no Departamento de Sociologia da Universidade de Liège, na Bélgica, em 27 de Novembro de 1981. (retornar ao texto)

Inclusão 23/11/2018