História da Filosofia

Escrito por Historiadores do Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da URSS


Capítulo IV - A Luta entre o Materialismo e o Idealismo durante os Séculos XVII e XVIII


capa

Os Traços Fundamentais do Materialismo dos Séculos XVII e XVIII

Os séculos XVII e XVIII representam o último período do feudalismo. O período da sua desagregação e decadência. A formação de Estados nacionais absolutistas verifica-se, já no século XVI em virtude do desmembramento feudal da maior parte dos países da Europa (com exceção da Alemanha e da Itália).

O desenvolvimento da forma capitalista de produção e o crescimento da burguesia originam também mudanças fundamentais na ideologia. A burguesia forma sua nova concepção filosófica em oposição à ideologia religiosa e à autoridade eclesiástica ainda dominantes.

Em consonância com as necessidades do desenvolvimento das novas forças produtivas, desenvolve-se também rapidamente o conhecimento científico da natureza. As necessidades da navegação marítima forçam o avanço da evolução da astronomia, da edificação de cidades, da construção naval, da arte militar, criando a necessidade do desenvolvimento da matemática e da mecânica. O sistema de Copérnico conquista o reconhecimento universal entre as cabeças mais adiantadas do tempo. A descoberta por Kepler das leis que regem os movimentos dos planetas, a fundamentação da mecânica por Galileu, o estabelecimento por Newton das leis básicas do movimento mecânico, criam as bases da nova concepção científica do mundo de caráter matemático-mecânico. Nas matemáticas destacam-se as maiores descobertas, a geometria analítica (Descartes), o cálculo diferencial e integral (Newton e Leibnitz), que abrem nova era no desenvolvimento dessa ciência.

Nas ciências sociais floresce a teoria do direito natural (Thomas Hobbes na Inglaterra, Hugo Grócio na Holanda).

Essa teoria refuta a origem divina do Estado real e exige a criação de uma ordem estatal que corresponda às leis "naturais", ou seja, às necessidades da burguesia em desenvolvimento.

Na filosofia dá-se a ruptura decisiva com a escolástica e a religião: na luta contra o império dos dogmas religiosos, contra a autoridade e o terror da igreja, surge a teoria da onipotência da razão e dos direitos ilimitados da livre investigação.

Nos países mais adiantados cria-se a concepção materialista do mundo mais ou menos consequentemente ateia (Bacon, Hobbes, Locke na Inglaterra, Spinosa nos Países Baixos). Nos países mais atrasados, a filosofia continua sendo dualista (Descartes) ou idealista (Leibnitz), porém mesmo então é progressista e dirigida contra a religião. Junto a isso, até mesmo as filosofias dualistas e idealistas do tempo incluem com frequência em seu domínio as doutrinas materialistas sobre a natureza (a cosmogonia e a física de Descartes, a teoria sobre a matéria e o movimento de Leibnitz).

Durante os séculos XVII e XVIII, o desenvolvimento da forma burguesa de produção imprimiu um poderoso impulso ao progresso das ciências naturais e da técnica. Isso, por sua vez se relacionava com o triunfo da concepção materialista do mundo. O papel progressista da filosofia burguesa daquela época cabe ao materialismo. Todavia o materialismo dos séculos XVII e XVIII se diferencia extraordinariamente da concepção materialista espontânea do mundo que imperava na Grécia antiga e, em parte, da da época da Renascença (Telesio, Bruno).

O materialismo dos séculos XVII e XVIII torna-se mecanicista e metafísico. Nas ciências naturais toma-se a tarefa de compilar o material prático, descrever e classificar os minerais, os vegetais e os animais, estudar anatomicamente a constituição interna dos corpos. Por isso foi necessário analisar cada coisa separada do meio que a envolve, isoladamente. O objeto integral e em desenvolvimento foi esmiuçado em suas partes integrantes e cada uma delas, por sua vez, estudada separadamente. O mundo começou, desta forma, a ser analisado pelos sábios e filósofos como uma soma de objetos soltos, desligados, como objetos que não se desenvolvem.

Assim, pois, o próprio desenvolvimento da ciência com as tarefas que se apresentavam na época, condicionaram a substituição da antiga concepção dialética elementar do mundo, característica da época antiga e da Renascença, baseada na intuição imediata do panorama da natureza, a uma concepção metafísica do mundo.

Engels escreve que a desintegração da natureza em partes separadas, a divisão dos diversos fenômenos da natureza em classes determinadas, a investigação anatômica dos corpos orgânicos foi o fundamento dos êxitos gigantescos que assinalam a evolução das ciências naturais durante os últimos quatro séculos. Este modo de estudar, porém, legou-nos o hábito de encarar os objetos e os fenômenos da natureza isoladamente, subtraídos da sua grande concatenação universal e, portanto, não em seu dinamismo, mas em estado estático; não como alguma coisa substancialmente mutável, mas como algo eternamente imóvel; não como vivo, mas morto.

Os principais defeitos do materialismo dos séculos XVII e XVIII eram seu caráter mecânico, metafísico e o idealismo na interpretação dos fenômenos sociais. Engels analisa o caráter limitado do materialismo do século XVIII — e esta caracterização em seus aspectos fundamentais, é igualmente válida para o materialismo do século XVII —, da seguinte maneira:

"O materialismo do século passado (XVIII) era predominantemente mecânico, porque então a mecânica, e somente a dos corpos sólidos — celestes e terrestres —, em uma palavra, a mecânica da gravidade, era, de todas as ciências naturais, a única que tinha existência de certo modo acabada e definitiva. A química existia apenas sob uma forma incipiente, filogística. A biologia dava os primeiros passos; os organismos vegetais e animais tinham sido investigados muito grosseiramente e se explicavam por meio de causas puramente mecânicas; para os materialistas do século XVIII, o homem era o que era para Descartes o animal: simples máquina. Esta aplicação exclusivista da concepção da mecânica a fenômenos que eram de natureza química e orgânica e aos que, embora regidos pelas leis mecânicas, que estavam em segundo plano devido a existência de outras que lhe eram superiores, constitui uma das limitações específicas, porém inevitáveis, do materialismo clássico francês.

"A segunda limitação específica desse materialismo consistia em sua incapacidade de conceber o mundo como um processo, como uma matéria sujeita a desenvolvimento histórico. Nisto se reflete o estado das ciências naturais de então e o modo metafísico, isto é, antidialético de filosofar que com ele se relacionava. Sabia-se que a natureza estava sujeita a movimento perene. Mas, segundo as ideias dominantes da época, este movimento girava não menos perenemente em círculo, razão pela qual jamais saía do lugar, engendrando sempre os mesmos resultados. Naquela época, essa ideia era inevitável. A teoria kantiana da formação do sistema solar acabara de formular-se e era considerada ainda mera curiosidade. A história do desenvolvimento da terra, a geologia, era totalmente desconhecida e não se podia estabelecer cientificamente a ideia de que os seres animados que hoje vivem na natureza são o resultado de um longo ciclo evolutivo, que vai do simples para o complexo. A concepção não historicista da natureza era, portanto, inevitável...

"Essa concepção não historicista imperava também no campo da história. Aqui, a luta contra os vestígios da Idade Média prendia todos os olhares. A Idade Média era considerada simples interrupção da história por um estado milenar de barbárie geral; os grandes progressos da Idade Média — a expansão do campo cultural europeu, as grandes nações de forte vitalidade que se haviam formado umas junto às outras durante esse período e, finalmente, os enormes progressos técnicos dos séculos XIV e XV — nada disto se via. Este critério tornava impossível, naturalmente, penetrar com uma visão racional na grande concatenação histórica e, assim, a história era utilizada, no máximo, como uma coleção de exemplos e ilustrações para uso dos filósofos."(40)

A Filosofia Materialista do Século XVII na Inglaterra

A filosofia materialista da nova época nasceu na Inglaterra no limite dos séculos XVI e XVII. A Inglaterra começou a transformar-se, de país feudal, economicamente atrasado, no Estado capitalista mais desenvolvido de então.

O capitalismo, favorecido em seu desenvolvimento pela acumulação primitiva, já no século XVI transformou o regime econômico e social do país. A Inglaterra converteu-se na fornecedora de lã à indústria de tecidos da Europa; a economia agrícola inglesa adquiriu cada vez caráter mais mercantil. A nobreza viu-se envolvida no processo da evolução capitalista, ligando seus interesses ao da produção capitalista.

Nos meados do século XVII, as contradições entre o regime feudal e os interesses das novas classes trouxeram a vitória da revolução burguesa. A burguesia e a nobreza aburguesada converteram-se nas classes governantes da Inglaterra. Como Marx assinalou, a burguesia fez aliança com a nobreza moderna contra o poder real, a nobreza feudal e a igreja imperante.

Também na vida ideológica da Inglaterra, sob a influência da modificação das condições econômico-sociais e políticas, operou-se grande transformação. Francis Bacon, ideólogo dos interesses da forma capitalista de produção e do desenvolvimento das forças produtivas, e que, conforme o caracteriza Marx, é o "progenitor do materialismo inglês e, em geral das ciências experimentais dos tempos modernos"(41), foi quem assestou o golpe de graça na velha concepção filosófica.

Francis Bacon

Francis Bacon (1561-1626) pertencia, por origem, aos círculos burocráticos da Corte. Era filho do Lord do selo real do Estado. Aos treze anos de idade entrou na escola superior de Cambridge, donde saiu sentindo um profundo desprezo pela erudição escolástica. Aos 16 anos de idade visitou Paris, fazendo parte da embaixada inglesa. Depois de permanecer três anos nesta cidade, escreveu aos 19 anos de idade sua primeira obra: "Observações sobre a situação da Europa". Ao regressar à Inglaterra dedicou-se ao estudo do direito, sem abandonar porem o da filosofia. Atraído pelas atividades governamentais, subiu rapidamente às mais altas funções do serviço, ocupando o posto de chanceler do Estado e obtendo o título de Barão de Verulan. Em 1621 foi acusado de prevaricação e julgado por uma comissão parlamentar. Após o processo retirou-se para sua fazenda, dedicando-se à investigação científica.

A primeira obra de Bacon "Ensaios Morais, Econômicos e Políticos" (1597), adquiriu uma rápida e grande popularidade e foi traduzida para o latim, o francês e o italiano. A obra mais importante de Bacon, "Novum Organum", impressa em 1620, constituía a segunda parte da obra monumental que ele projetou, a "Grande Instauração das Ciências" ("Instauratio Magna"), obra que devia ser uma enciclopédia de todos os conhecimentos científicos e que ficou sem terminar. Em vida publicou ainda outro livro "Da Dignidade e Aumento da Grandeza das Ciências" (1623); pouco depois de morrer publicou-se sua obra dedicada aos problemas das ciências naturais e sua utopia social "A nova Atlântida" (1627). A primeira coleção completa de suas obras foi publicada em 1663 em Amsterdam.

A concepção filosófica de Bacon refletia as aspirações da burguesia que se ia elevando ao papel de governante. As relações burguesas na Inglaterra, no princípio do século XVII, ainda pouco desenvolvidas, e a debilidade da burguesia condicionaram o caráter inconsequente do materialismo baconiano, que se afasta do ateísmo e faz concessões à teologia. Mas o aspecto decisivo da concepção filosófica de Bacon é a defesa da concepção materialista científica do mundo, baseada em experiências, no estudo da natureza, na luta decidida contra a escolástica e na expulsão da teologia do terreno científico. Quanto à política, Bacon desenvolve um problema que corresponde aos interesses do progresso da forma burguesa de produção.

"Pode-se conseguir a supressão da fome e da miséria", diz Bacon, "libertando todas as rotas comerciais, descobrindo novas, cuidando do balanço comercial, fomentando a manufatura e a indústria nacionais, eliminando a ociosidade, reprimindo o luxo e a prodigalidade por meios legais, estimulando com prêmios e leis imparciais tudo que se relacione à agricultura, fixando os preços dos víveres e demais artigos comerciais, diminuindo os impostos e as contribuições, etc.".

A orientação burguesa de Bacon manifesta-se também em suas reiteradas propostas ao governo para levar em conta a voz do povo, limitar as classes ociosas, quer dizer, as classes feudais, e defender os interesses da classe que assegura o progresso da economia agrícola e da indústria.

Bacon viveu na época das grandes descobertas científicas. Foi contemporâneo de Kepler, Galileu, Stevin, Gilbert, fundadores de novas ciências: astronomia, física, mecânica, hidrostática, ótica, teoria da eletricidade e do magnetismo.

Bacon, pai do materialismo e das ciências experimentais dos tempos modernos, foi um adversário decidido da escolástica. Fala com mordacidade das especulações escolásticas e de seus métodos:

"O entendimento dessa gente é tão estreito como as celas dos mosteiros e seminários em que vivem reclusos, sem conhecer o mundo, a natureza e o século".

A finalidade da ciência é, para Bacon, aumentar o poder humano, fortalecer o poder do homem sobre a natureza.

O verdadeiro e legítimo objetivo da ciência, diz, consiste em enriquecer a vida humana com novos inventos e descobertas, reafirmar o poder do homem sobre a natureza e ampliar as fronteiras do seu domínio. Mas só se pode vencer a natureza, acrescenta, submetendo-a, ou seja, conhecendo-a e conhecendo suas leis. Por isso,

"o principal objeto, aquele que se deve ter sempre presente é a própria matéria, assim como a sua variada constituição e transformação".

A maior atenção deve prestar-se à ação da matéria ou à lei do seu movimento. A teoria e a prática acham-se estreitamente ligadas:

"o que na teoria foi uma base, efeito ou causa, na prática converte-se em uma regra, um objetivo ou um meio".

Bacon criou a primeira classificação das ciências. As faculdades da alma humana constituem a base das ciências: a memória (a história), a imaginação (a poesia), o entendimento (a filosofia). Entre outras ciências, inclui na filosofia a "filosofia da natureza", a "filosofia do homem": a psicologia, a teoria do corpo humano e a "filosofia civil" (teoria das relações e dos laços políticos e práticos entre os homens). Divide a "filosofia natural" em teórica (física, matemática) e prática (mecânica, magia).

Bacon exige uma investigação objetiva da natureza. O instrumento principal do conhecimento é a experiência, não a casual e desordenada, mas a sistematizada, planificada, como princípio básico da ciência, particularmente da investigação naturalista científica. Aos escolásticos, que se limitam a imaginações abstratas e fantásticas sobre a natureza, opõe os antigos materialistas, que utilizaram os meios experimentais. Bacon recomenda investigar a natureza,

"dissecá-la, como faziam Demócrito e seus discípulos; esta escola, melhor que as outras, soube penetrar na natureza e fazer-lhe indagações". As ciências naturais contemporâneas, achava Bacon, não dispõem de um método meditado; suas descobertas são casuais, suas conclusões foram desnaturadas pela escolástica".

Não há uma verdadeira ciência natural, exclama; a que existe está empestada e adulterada pela lógica de Aristóteles, pela teologia naturalista de Platão, e pela matemática de Proclo e outros". Bacon propõe-se a tarefa de criar novo método científico da natureza, método que ele chama indutivo.

A velha lógica escolástica, cujo instrumento principal foi o silogismo, foi incapaz de sintetizar o resultado da observação e das experiências para descobrir novos processos de investigação.

"A lógica geralmente admitida, diz Bacon, é inútil para descobrir as ciências... O silogismo em nada contribui para a descoberta ou comprovação dos princípios científicos fundamentais".

O novo método exige, antes de tudo, que a razão humana se emancipe de quaisquer ideias preconcebidas, de imaginações falsas, herdadas do passado ou condicionadas pelas particularidades da própria natureza humana, e que impeçam a descoberta da verdade. Bacon denomina ídolos a essas ideias preconcebidas que conturbam a inteligência humana, e as divide em quatro classes: os ídolos de "raça" têm sua origem na própria natureza do homem, que tende a desfigurar a percepção das imagens; os ídolos de "caverna" correspondem ao homem individual e estão condicionados à educação e à sociedade que o rodeia; os ídolos de "féria", inerentes às diversas unidades sociais, originam-se na "união entre as diversas famílias do gênero humano"; os ídolos de "teatro", engendrados pelos dogmas precedentes das diversas escolas filosóficas. O investigador científico, depurando a inteligência desses "ídolos", ensina Bacon, deve tomar o caminho justo do exame dos fatos, elaborar o novo método do conhecimento experimental, indutivo.

Partidário decidido da investigação experimental, Bacon manifesta-se, contudo, contra o empirismo estreito e limitado, acentuando, ao mesmo tempo, o papel da experiência, do pensamento e da teoria. Dá uma clara característica comparativa dos principais métodos filosóficos:

"os que se dedicaram às ciências, eram empíricos e dogmáticos. Os empíricos, como a formiga, só colhem e usam a colheita. Os racionalistas, como a aranha, fazem eles mesmos o tecido".

Em compensação o sábio autêntico deve fazer como a abelha, que

"escolhe o método intermediário; extrai o material das flores dos jardins e dos campos, deposita-o e o transforma pela própria habilidade".

Bacon refutava as especulações arbitrárias dos escolásticos e considerava que as hipóteses e as sínteses científicas devem deduzir-se das sensações e dos atos particulares.

Segundo Bacon, a finalidade fundamental da indução, é descobrir as formas primárias da matéria que definem sua multiplicidade e sua diversidade qualitativa. A seu juízo, o que parece um infinito de múltiplos e variados atributos inerentes às coisas pode reduzir-se a um determinado número de atributos fundamentais cuja expressão são as "formas simples". Na natureza, diz, deve haver tantos atributos simples das coisas quantas são as formas simples. Entre essas formas-atributos, Bacon inclui o calor, o peso, o movimento, a quantidade, a cor, etc. Assim como com um número relativamente pequeno das letras do alfabeto compõem-se uma quantidade enorme de palavras diversas, com a combinação das formas simples compõe-se uma quantidade inesgotável dos mais diversos objetos e fenômenos da natureza. Descobrir a forma do atributo simples, aprender a distingui-lo e reconhecê-lo em qualquer corpo, é a tarefa fundamental da ciência.

Portanto, cada coisa composta íntegra representa, para Bacon, a soma mecânica de suas formas integrantes simples. Bacon faz reluzir aqui um dos princípios fundamentais do materialismo mecanicista, a redução do composto ao simples. Mas, distinguindo-se dos mecanicistas posteriores, reduz a matéria, não a átomos homogêneos, não-qualitativos, mas a elementos qualitativamente distintos e diversos. Reconhece a indecomponibilidade ulterior desses atributos primários.

Nesta teoria baconiana das formas, há valiosos pensamentos dialéticos, apesar de seu caráter simplista. A forma, segundo Bacon, é a definição qualitativa do objeto, a lei de seu movimento. Conhecendo essas leis-formas, o homem pode criar qualquer espécie de coisas e matérias, mesmo que não existam na natureza.

Embora preste mais atenção ao aspecto qualitativo das coisas, tampouco nega Bacon a importância do aspecto quantitativo, que reconhece como uma das "formas essenciais". Todavia, o aspecto quantitativo não esgota a essência das coisas. Por isso, Bacon destina à teoria do aspecto quantitativo das coisas — à matemática — um lugar subordinado na física; também nisto se distingue dos mecanicistas posteriores.

Um exemplo da aplicação do método indutivo é o raciocínio de Bacon sobre a natureza do calor. Para descobrir a natureza do calor é necessário, pensa Bacon, fazer um minucioso sumário de todos os fenômenos e objetos conhecidos que tenham o calor como propriedade comum (por exemplo, os raios solares, o relâmpago, os líquidos quentes, etc.) e confrontá-los com fenômenos e objetos que, na sua opinião, não têm calor (os raios lunares, a luz dos astros, etc.). Em seguida, por meio da exclusão das propriedades que nada têm de comum com a forma do calor, conclui-se qual a verdadeira forma do calor. Baseando-se em raciocínios análogos e apesar do caráter errôneo da maior parte das suas considerações, chega a uma conclusão formidável que adianta de um século uma descoberta das ciências naturais: afirma que o calor representa uma forma determinada de movimento, precisamente um movimento amplificador e oscilante das menores partículas do corpo.

Segundo Bacon, o movimento é uma propriedade interna e imprescritível da matéria. Os mecanicistas dos séculos XVII e XVIII reduziram todas as formas do movimento a um deslocamento no espaço, a um movimento mecanicista, considerando o movimento como resultado de um impulso exterior. Bacon reconhece a existência de uma série de formas específicas de movimento, internamente inerentes aos diversos aspectos da matéria.

O conhecimento autêntico da natureza baseia-se no conhecimento das causas dos fenômenos e do movimento dos objetos. O valor de Bacon na história da filosofia radica-se no fato de ter formulado a concepção materialista do mundo, apresentado a experimentação como instrumento mais importante da investigação da natureza, refutado a escolástica e feito uma importante, embora unilateral, tentativa de superar a velha lógica formal e criar uma lógica ligada ao conhecimento dos fatos, uma lógica indutiva. Bacon imprimiu um forte impulso ao desenvolvimento das ciências naturais dos tempos modernos.

Marx e Engels apreciavam muito o papel de Bacon na história da filosofia:

"O verdadeiro pai do materialismo inglês e em geral das ciências experimentais dos tempos modernos, foi Bacon. Para ele, as ciências naturais constituem a verdadeira ciência, e a física, que se apoia no testemunho dos sentidos exteriores, sua parte mais importante. Anaxágoras, com suas homeomérias e Demócrito, com seus átomos são citados por ele como autoridades. Para sua teoria, os sentidos são infalíveis e constituem a fonte de todo o conhecimento. A ciência é uma ciência experimental e consiste na aplicação do método racional aos dados que nos fornecem os sentidos. A indução, a análise, a comparação, a observação e a experimentação são as condições essenciais do método racional. Entre os atributos inatos da matéria, o primeiro em importância é o movimento, não só como movimento mecânico e matemático, mas também e mais, como uma tendência, como um espírito vital, como um esforço ou, empregando a expressão de Jacob Böehm, como um tormento da matéria. As formas primárias da matéria são forças essenciais, vivas, individualizadoras, inerentes internamente à matéria, as quais criam as diferenças específicas.

"Em Bacon, como primeiro criador do materialismo, os germes do desenvolvimento multilateral desta doutrina, embora de forma ingênua, estão ocultos. A matéria sorri ao homem com toda a sua poesia e esplendor sensual. Mas esta doutrina de Bacon, exposta em forma aforística impregnada ainda da inconsequência teológica".(42)

Esta inconsequência manifesta-se no fato de reconhecer à religião o direito à existência, em reconhecer a existência de Deus e a imortalidade da alma.

O materialismo de Bacon é um grau intermediário, em que o materialismo dialético-espontâneo dos antigos gregos e o materialismo mecanicista dos séculos XVII e XVIII. O materialismo de Bacon tem muitos elementos de dialética: Bacon acentua a diferença qualitativa dos elementos primários da matéria, a ligação indissolúvel entre a matéria e o movimento, o caráter específico das formas de movimento, etc. Não obstante estes momentos dialéticos, a filosofia de Bacon continua sendo uma filosofia mecanicista, o primeiro grau do desenvolvimento do materialismo metafísico em vigor nos séculos XVII e XVIII. Na filosofia de Bacon falta o historicismo, falta a ideia de evolução. Sua lógica indutiva continua sendo uma lógica formal; como diz Engels, seu método indutivo

"... deixou-nos o habito de encarar as coisas e os fenômenos da natureza isoladamente, fora de suas grandes conexões gerais, e devido a isso não em movimento, mas de maneira estática... Este método de observação, transplantado por Bacon e Locke das ciências naturais à filosofia, criou uma limitação característica dos últimos séculos: o método metafísico de discorrer"(43).

Bacon chegou ao materialismo mecanicista, porém não conseguiu dar ao sistema desenvolvimento completo. Um grau ulterior no desenvolvimento do materialismo foi a filosofia de Hobbes, que desenvolveu o aspecto mecanicista da filosofia de Bacon, sistematizou-a e revisou-a de uma forma matemática, apoiando-se no nível superior do desenvolvimento das ciências naturais mecânico-matemáticas.

Thomas Hobbes

Thomas Hobbes (1588-1679) era filho de um sacerdote. Depois de terminar o curso da universidade de Oxford, realizou uma série de viagens pela França e a Itália, onde estudou a matemática de Euclides, sob cuja influência chegou a conclusão da possibilidade de aplicar o método matemático à filosofia. Em suas viagens, travou conhecimento com Galileu, Gassendi e Descartes. Devido a suas simpatias políticas, mal visto nos círculos monásticos (Hobbes foi educador de Carlos II), abandonou a Inglaterra na agitada época pré-revolucionária, porém, depois do triunfo da revolução em 1651, voltou do exílio e reconciliou-se com a república. Após a restauração dos Stuarts, acusado de servir à república, foi objeto de perseguições e morreu na miséria aos 92 anos de idade.

A primeira obra de Hobbes, "Elementos de direito natural e cívico", foi editada em 1640. Nesta obra, como na segunda, "Sobre o Cidadão" (1642), Hobbes se pronuncia pelo poder limitado do chefe do Estado. A maior obra de Hobbes, que tem o nome de um monstro mitológico "Leviatã", dedicada à teoria do Estado, foi publicada em 1651. Na imagem desse monstro, Hobbes personifica a potência do Estado. O Estado, segundo Hobbes, é o produto do contrato social, concertado a fim de conservar a paz e suprimir "a guerra de todos contra todos" que, segundo ele, impera no "estado natural" do homem. Em sua obra sobre o corpo (1656), Hobbes expõe sua filosofia naturalista, e em "Sobre o Homem" (1658), suas opiniões antropológicas e psicológicas. A coleção das obras de Hobbes foi publicada em 1668, em Amsterdam, ainda em vida do autor.

Apesar de suas relações pessoais com os círculos monárquicos.. Hobbes não foi o ideólogo da aristocracia feudal, mas o da nobreza aburguesada, aliada com a burguesia. Reconciliou-se com Cromwell que implantou uma ditadura da burguesia e um severo Poder do Estado, ideia que foi defendida por Hobbes. Ao pronunciar-se pela subordinação da religião e da igreja ao Poder do Estado, pelo materialismo na filosofia e na ciência contra toda a espécie de pretensões religiosas, Hobbes defendia a linha da evolução burguesa na Inglaterra.

A reação atacou furiosamente sua concepção filosófica e suas obras "Sobre o Cidadão" e "Leviatã", que, por uma sentença da universidade de Oxford, foram queimadas depois da restauração dos Stuarts.

Hobbes é sucessor direto e continuador da filosofia de Bacon, de quem foi amigo pessoal. Apoiando-se no superior desenvolvimento das matemáticas e das ciências naturais, sistematizou o materialismo de Bacon, afastando dele sua inconsequência teológica, porém lhe imprimindo, ao mesmo tempo, um acabado caráter mecanicista e metafísico. O mundo material é a única realidade e o único objeto da filosofia. A essência da matéria, segundo Hobbes, reduz-se ao volume dos corpos, à dimensão. Destacando-se de Bacon, Hobbes concede uma importância decisiva à grandeza, ao aspecto quantitativo dos corpos e, consequentemente, também à matemática. Hobbes entende por movimento, um movimento mecânico, condicionado por influências exteriores, pela pressão, pelo impulso e pelo peso. A dinâmica e a estática são para ele dois estados, em igualdade de direito, da matéria. Desta forma, Hobbes separa o movimento da matéria.

A juízo de Hobbes as qualidades sensíveis das coisas (a luz, a cor, o som, o calor, etc.) como tais, não são inerentes à matéria; são apenas impressões subjetivas de quem as sente. Nascem devido ao movimento das pequenas partículas dos corpos, imperceptíveis à vista humana. O materialismo de Hobbes, diferenciando-se da matéria viva, múltipla e variada de Bacon, torna-se um materialismo abstrato.

"A materialidade perde sua flor e converte-se na materialidade abstrata de um geômetra", diz Marx.

"O movimento físico é sacrificado ao movimento mecânico ou matemático; a geometria é considerada a ciência principal. O materialismo torna-se misantropo. Afim de poder vencer em seu próprio campo ao espírito misantrópico e imaterial, o materialismo deve mortificar o corpo, voltando-se para o ascetismo. Assim se apresenta como um ente de razão, porém desenvolve igualmente, com uma consequência inexorável, todas as deduções da inteligência"(44).

Hobbes manifesta-se adversário decidido da doutrina da substância imaterial, de Deus, da alma. A substância incorpórea é uma noção tão contraditória como a de um corpo incorpóreo. A existência objetiva só é inerente à matéria. O pensamento não pode ser separado da matéria que pensa. A teoria de Hobbes, em essência, é ateia. Pois em vista de somente o material ser accessível à percepção e ao conhecimento, não é possível conhecer nem comprovar a existência de Deus. Hobbes expulsa definitivamente da ciência e da filosofia a escolástica e as concepções teológicas, liquidando a inconsequência teológica da filosofia de Bacon.

O proveito e o bem estar do homem para Hobbes, como para Bacon, é o objetivo da filosofia. A filosofia é a ciência dos corpos; onde não existam corpos reais a filosofia nada tem a fazer. Segundo Hobbes, há duas espécies de corpos: corpos naturais e corpos artificiais. Entre os artificiais inclui o Estado como produto da vontade e do contrato humano. O homem ocupa um lugar intermediário, de um lado representa um corpo natural, e, de outro, cria corpos artificiais como o Estado.

Partindo desse ponto de vista, Hobbes divide sua filosofia em três partes principais, que tratam do corpo, do homem e do cidadão.

A classificação das ciências de Hobbes está construída também sob indícios objetivos: das ciências que estudam as propriedades gerais dos corpos passa às ciências que estudam suas propriedades particulares. A lógica (ciência geral do método) ocupa o primeiro lugar no sistema das ciências. Segue-lhe a ontologia (que estuda as propriedades mais gerais dos corpos), a geometria, a mecânica, a física (que estudam suas propriedades particulares), a psicologia, a ética (que estudam o homem como corpo) e a política (que estuda o Estado).

Em sua teoria do conhecimento, Hobbes é, no fundamental, empírico e sensualista. A sensação produzida pela influência dos corpos materiais sobre o homem é, para ele, o ato primário no processo do conhecimento. O pensamento desempenha apenas uma função mecânica. Hobbes estende por completo seu método matemático ao raciocínio. Segundo ele, a atividade do raciocínio nada mais é que a adição e a subtração dos conceitos.

O mecanismo unilateral da Hobbes, que imprime um caráter abstrato à sua filosofia, motivou também a inconsequência do seu materialismo. Hobbes inclina-se a considerar subjetivamente o espaço e o tempo, considerando-os apenas imaginações do homem. Contudo previne que, no mundo objetivo, a grandeza real das coisas corresponde à ideia de espaço, e a dinâmica e a sucessiva mutação das coisas à ideia do tempo.

A Luta Entre o Materialismo e o Idealismo Durante o Século XVII na França, Alemanha e Países Baixos

Renato Descartes

No século XVII o desenvolvimento da França ficou atrasado em relação à Inglaterra. A revolução burguesa realizou-se na França 150 anos depois da sua. efetivação na Inglaterra. Durante o século XVII o absolutismo se fortaleceu na França. O modo feudal de produção estava em decomposição, mas a burguesia era ainda excessivamente débil para aspirar a tomada da Poder.

Devido a este fato, a filosofia desenvolve-se na França por um caminho diferente do seguido na Inglaterra. No século XVII não havia na França o materialismo consequente. A doutrina do maior filósofo francês do século XVII, Descartes, distinguia-se por seu caráter dualista, conciliatório.

Renato Descartes (1596-1650) filho de uma família de nobres, ainda , em tenra idade revelou seu pendor pela matemática. Aos 21 anos de idade alistou-se como voluntário no exército; porém, segundo sua própria expressão, "não em qualidade de agente, mas de espectador do panorama mundial". Seu trabalho mais importante, "Discurso sobre o método", com seus tratados adicionais "Dióptrica", "Meteoros" e "Geometria", representa a aplicação do método cartesiano às ciências concretas e foi publicado em 1637. Mais tarde editaram-se "Meditações sobre a primeira filosofia" (1641), "Os Princípios da Filosofia" (1644), "Sobre as Paixões da Alma" (1644). Suas demais obras vieram à luz após sua morte, entre elas o importante trabalho por terminar "O Mundo e o Tratado da Luz", que contém a doutrina materialista de Descartes sobre o universo. Descartes foi, mais de uma vez, objeto de perseguição por ser progressista e livre pensador, particularmente na França absolutista, onde reinava a completa arbitrariedade do poder real e da igreja. Na vida do filósofo, em 1619, foi queimado em Toulouse o conhecido humanista Vanini, e em 1633, em Roma, Galileu foi condenado. Por isso Descartes passou mais de 20 anos na Holanda republicana, muito mais adiantada que a França feudal. Mas também na Holanda foi perseguido pelo clero protestante. Em 1649, a convite da rainha Cristina da Suécia, foi trabalhar nesse país, onde adoeceu pouco depois e morreu em 1650.

Marx destaca o caráter progressista e prático da filosofia de Descartes, que respondia às necessidades do modo capitalista de produção em desenvolvimento:

"Que Descartes, como Bacon, considerava as mudanças de. forma operadas na produção e assimilação da natureza: pelo homem, como fruto das trocas experimentadas pelo método de pensar, demonstra seu Discurso sobre o Método, onde lemos: "Deve-se (mediante o método introduzido por Descartes, na filosofia) chegar a conhecimentos muito úteis para a vida e, em lugar daquela filosofia especulativa ensinada nas escolas, descobrir uma aplicação prática desses conhecimentos, por meio da qual — conhecendo as forças e os defeitos do fogo, da água, do ar, dos astros e dos demais corpos que nos rodeiam, com a mesma precisão que as diferentes indústrias de nossos artesãos — poderíamos empregar nossa ciência do mesmo modo e para todos os fins úteis à que se presta; assim poderíamos converter-nos em mestres e donos da natureza, e contribuir para o aperfeiçoamento da vida humana"(45).

Descartes considera que a primeira tarefa de sua filosofia é renunciar a todos as dogmas e opiniões herdadas e achar um princípio absolutamente fidedigno que sirva de ponto de partida à filosofia. Como caminho ou método para facilitar a descoberta deste princípio, Descartes levanta a dúvida sobre tudo o que existe. Começa com a dúvida sobre a existência das coisas materiais, das verdades matemáticas e até mesmo do Deus todo poderoso. Duvidando de tudo e tudo negando, Descartes considera porém, que não se pode negar a existência de um pensamento que duvida. Assim chega à conclusão de que a única coisa certa é o pensamento. Daí seu famoso princípio:

"Penso, logo existo" (cogito, ergo sum).

Descartes converteu assim a faculdade do cérebro humano em substância metafísica imaterial, contrapondo-a à matéria. Descartes adotou como critério para a verdade do pensamento a evidência e a inteligibilidade de nossas representações.

"É verdade, diz, tudo o que percebo clara e inteligivelmente".

Segundo ele, a percepção evidente e clara é o resultado da meditação íntima espontânea, ou seja, da intuição. Descartes divide todas as ideias existentes na consciência humana em derivadas, procedentes dos sentidos, e inatas. Estas últimas se estabelecem mediante a intuição e são absolutamente certas. Entre estas ideias então, coloca Descartes, a de Deus, os axiomas matemáticos, etc.

Um dos exemplos mais claros da inconsequência da doutrina idealista de Descartes sobre as ideias inatas é sua chamada prova ontológica da existência de deus. O homem, discorre Descartes, possui a ideia inata da substância infinita, ou seja a de deus. O próprio homem, porém, como substância finita, não pode criar a ideia da substância infinita. Quer dizer, deduz Descartes, que só conseguiu ter essa ideia por causa de deus.

O traço mais característico da filosofia cartesiana é seu dualismo pronunciadamente expresso. Descartes reconhece a existência de duas substâncias completamente independentes uma da outra. A primeira e a matéria, a substância física da extensão; a segunda é o espírito, substância pensante. Para Descartes, essas duas substâncias não podem ter nada de comum entre si, não podem cooperar uma com a outra. Contudo, como então o homem era considerado um produto da natureza na qual essas substâncias estão unidas num só corpo e cooperam uma com a outra, Descartes, para explicar tal coisa, viu-se obrigado a admitir a existência de uma substância infinita e todo-poderosa, um deus que criasse e pusesse em ação reciproca as duas substancias anteriormente mencionadas.

A física de Descartes desempenhou um importantíssimo papel no desenvolvimento da ciência e da filosofia materialista. Descartes foi um grande sábio, físico, matemático, astrônomo, filólogo.

Marx dá uma clara característica desses aspectos da filosofia cartesiana:

"Em sua Física, Descartes atribui à matéria uma força criadora própria, e considera o movimento mecânico como a manifestação vital da matéria. Descartes separou completamente sua física de sua metafísica. Nos limites de sua física, a matéria representa a substância única, a única razão do ser e do conhecimento"(46).

Descartes, como Hobbes, identificou a matéria com a extensão. Todavia fez o primeiro ensaio para explicar também a constituição física da matéria. A matéria, para ele, compõe-se de pequenas partículas, corpúsculos, que, distinguindo-se dos antigos atomistas gregos, Descartes reconhece como infinitamente divisíveis e enchendo inteiramente o espaço. Em vista da matéria identificar-se com a extensão não existe espaço vazio no mundo.

Também o movimento Descartes interpreta mecanicamente, com um deslocamento das partículas da matéria no espaço. Considera movimento, não um atributo, uma forma de existência da matéria, mas uma de suas propriedades. Descartes explica a origem do mundo por um movimento de redemoinho das partículas materiais: pois que, a seu ver, não há vácuo, os corpúsculos chocam-se uns com outros durante o movimento, saem da linha reta e daí resulta a formação de redemoinhos. No processo desses redemoinhos efetua-se a unificação dos corpúsculos, dos quais formam-se as coisas.

Idêntico ponto de vista mecanicista guia Descartes ao interpretar os fenômenos da vida. Acha que os animais não possuem consciência, são simples autômatos ou máquinas. Interpretando os fenômeno fisiológicos e psíquicos, Descartes, contradizendo sua metafísica, adota uma posição materialista. Os fenômenos psíquicos são por ele interpretados como forças especiais inerentes ao corpo. O ponto onde se localiza a ação mútua da alma e do corpo é, para ele, a adição cerebral, a glândula pineal.

Na física de Descartes, porém, acham-se também momentos dialéticos, condicionados por conhecimentos mais profundos que os que existiam das leis da natureza em sua época. Descartes formulou o princípio da conservação da quantidade do movimento no universo, princípio que adiantou de 200 anos a descoberta da lei da conservação da energia. Segundo Descartes, o movimento é indestrutível e pode transmitir-se de um corpo a outro mas não pode desaparecer. A quantidade geral do movimento existente no mundo é imutável. Este princípio de Descartes deixou de lado a intervenção de deus na natureza e conduziu a interpretação dos fenômenos da natureza pela sua própria observação. Engels considera enorme conquista científica a lei da indestrutibilidade do movimento, estabelecida por Descartes.

Descartes promoveu, certamente sobre base mecanicista, a teoria da ação mútua universal na natureza. Cada movimento ou troca de qualquer partícula da matéria influi nas partículas vizinhas; estas, por sua vez, influem sobre as que lhes estão próximas, e assim infinitamente. Cada fenômeno da natureza liga-se a todos os demais.

Na história da ciência e da filosofia teve grande importância a descoberta da geometria analítica por Descartes. Por seu método, ela se distingue de forma fundamental da geometria antiga.

"Ponto crucial na matemática, foi a quantidade mutável cartesiana. Graças a ela, entrou na matemática a dinâmica e a dialética e, graças a ela também, tomou-se imediatamente necessário o cálculo diferencial e integral, cujas bases foram rapidamente lançadas e integramente acabadas, e não descobertas por Newton e Leibnitz"(47).

A filosofia cartesiana tem o mérito de ter proclamado a onipotência: da razão humana, na época do império do Estado despótico e da igreja.

A razão não tem limites:

"Não há coisas tão distantes, diz Descartes, que a razão não possa alcançar, nem tão ocultas, que não possa descobrir".

O dualismo e as agudas contradições na constituição filosófica cartesiana não são simplesmente produtos da inconsequência de Descartes como pensador. São reflexos, no domínio ideológico, da situação contraditória da burguesia que avançava, cujo ideólogo foi Descartes. Respondendo aos interesses e exigências do modo capitalista de produção, Descartes erige como tarefa da filosofia e da ciência o conhecimento da natureza e sua conquista, para satisfação das necessidades práticas do homem. A teoria do universo e da matéria, criada por Descartes, lançou as bases da concepção materialista do mundo. Entretanto Descartes, representante de uma burguesia ainda não amadurecida, que se dobrava covardemente ante a potência do absolutismo do rei e da igreja, foi incapaz de romper resolutamente com a velha concepção do mundo. E, sobre essa base, nasceu sua metafísica, a doutrina sobre deus, sobre as ideias inatas e a substância imaterial; doutrinas completamente em contradição com a sua física materialista. Os materialistas (Hobbes, Gassendi) sustentaram uma luta decidida contra essa metafísica; luta que, no século XVIII, terminou com o triunfo completo do materialismo.

Os elementos materialistas da filosofia cartesiana, sua física, constituíram a base duma das correntes mais importantes do século XVII nas ciências naturais, a chamada física cartesiana. Descartes exerceu grande influência sobre o materialismo inglês do século XVII e o materialismo francês do século XVIII que aderiram à sua física, embora lutando contra sua metafísica, contra o aspecto idealista de sua filosofia.

As teorias cartesianas desempenharam em geral enorme papel progressista. Por isso lançou-se-lhes em cima a reação, tanto a católica quanto a protestante. O ensino da filosofia de Descartes foi proibido, ainda durante a sua vida, numa série de universidades holandesas. Os Estados holandeses promulgaram, em 1655, um edital vedando o ensino da filosofia cartesiana. Em 1663, as obras de Descartes foram incluídas na lista dos livros banidos por Roma. Em 1671 por ordem real, o ensino das doutrinas cartesianas foi também cancelado na universidade de Paris.

Pedro Gassendi

Entre os adversários da metafísica de Descartes, que a combateram a favor do materialismo, correspondia um lugar destacado a Pedro Gassendi, contemporâneo e amigo de Hobbes.

Pedro Gassendi (1592-1655) foi a princípio sacerdote e, em seguida, professor de matemática no Colégio Real de Paris. Em oposição à doutrina aristotélica da matéria e da forma, Gassendi propugna pela teoria atômica de Demócrito e Epicuro e tenta ligá-la às ciências naturais modernas. Da mesma forma que Epicuro, Gassendi considerava que o princípio básico de todas as coisas eram os átomos materiais e o vácuo. Os átomos possuem um peso que Gassendi identificou com um impulso interno para o movimento, indissoluvelmente ligado aos átomos.

Gassendi manifestou-se decididamente (como Locke mais tarde) contra a teoria cartesiana das ideias inatas. Considerava a inteligência uma tábua rasa (tabula rasa), na qual a experiência anotava seus escritos; defendeu o famoso princípio sensualista: nada há na inteligência que antes não tenha estado nos sentidos.

O mérito de Gassendi, principalmente como ressuscitador e divulgador do materialismo de Epicuro, foi muito apreciado pelos materialistas do século XVIII, os quais, ao mesmo tempo, criticaram a inconsequência teológica de sua filosofia. Gassendi, por exemplo, considerava que os átomos eram criados por deus e não tinham existência eterna.

Marx aprecia o papel positivo da atitude de Gassendi contra a metafísica idealista nestas palavras:

"Gassendi e Hobbes venceram sua adversária (a metafísica idealista do século XVII) muito tempo depois de mortos, no momento preciso em que dominava oficialmente em todas as escolas francesas(48).

Benedito Spinoza

A Holanda foi "um país capitalista modelo no século XVII" (Marx). Seus barcos singravam todos os oceanos. A Holanda teve uma rivalidade comercial vitoriosa com a Espanha, Inglaterra e França. O florescimento da Holanda foi consequência da revolução burguesa triunfante, realizada nos fins do século XVI. A indústria e a técnica, a ciência e a arte, progrediram. A produção de lentes, ligada ao desenvolvimento da navegação marítima, fez surgir uma série de inventores: o holandês Zacar Jansen criou o microscópio composto (por volta do ano 1590); o fabricante de lentes Johann Lipperheim construiu o primeiro telescópio (ainda antes de Galileu). Stevin fez uma série de trabalhos científicos sobre hidrostática; Van Helmont realizou muito no domínio da química; Huyghens fez uma série de descobertas no campo da mecânica, da ótica e da astronomia e formulou a teoria do pêndulo; João Swaamerdam fez numerosas revelações no terreno da biologia; Lovenhug, trabalhando no problema da germinação espontânea da vida, descobriu a existência dos seres vivos, até então invisíveis a olho nu: os infusórios.

Na Holanda republicana foi possível publicar obras científicas que socavavam a concepção religiosa do mundo; ali encontraram refúgio sábios e pensadores como Descartes, Bayle, Locke e, posteriormente (no século XVIII), Lamettrie. Foram todos perseguidos pela igreja dominante e pelo absolutismo.

A Holanda contribuiu no século XVII com um notável pensador, materialista e ateu, ideólogo da burguesia progressista: Spinoza.

Benedito Spinoza (1632-1677) nasceu em Amsterdam numa família judia emigrada da Espanha. Em sua infância, estudou a Bíblia e o "Talmude"; porém, pouco depois, começou a estudar física e as obras de Descartes, concluindo a sua instrução no círculo do livre pensador Van Enden.

A ruptura de Spinoza com o judaísmo valeu-lhe o ódio dos rabinos que o expulsaram da religião judia e da comunidade, mandando um fanático atentar-lhe contra a vida. Spinoza não se filiou a nenhuma outra religião. Apesar de todas as perseguições, lutou contra a religião, levando uma vida modesta de sábio independente, ganhando o sustento como polidor de lentes. Em vida só foram publicadas duas obras suas: "Princípios da Filosofia de Descartes" (1663) e o anônimo "Tratado Teológico-Político" (1670). Sua obra mais importante, "Ética", na qual expõe seu sistema filosófico, foi publicada em 1677, depois de sua morte. Além destas obras, outras foram posteriormente dadas a público, assim como sua correspondência com sábios e pensadores. Para compreender os pontos de vista filosóficos de Spinoza tem enorme valor sua obra sobre a teoria do conhecimento, "Sobre a Perfeição do Intelecto", que deixou sem terminar.

Por seus conceitos políticos, Spinoza foi partidário da república democrática burguesa. Suas simpatias republicanas e seu trabalho de desmascaramento do papel opressor da religião e da igreja deram lugar a que se visse perseguido pelo partido monárquico holandês, que tomou o poder nos últimos anos da vida do filósofo. Suas obras publicadas post-mortem foram proibidas por decreto do Estado dos holandeses (1678), visto serem obras "ateias e zombarem das coisas sagradas".

A teoria da substância material forma o núcleo do sistema filosófico de Spinoza, o qual refuta decididamente o dualismo de Descartes e só reconhece uma substancia única.

"Na natureza, diz, não podem existir duas substâncias. Uma substância não pode ser a causa de outra, ou melhor, uma não pode ser produzida por outra".

Spinoza afirma que a substância não pode ser criada nem destruída. Existe eterna e infinitamente:

"A noção de substância exclui sua inexistência ou criação". "Se fosse possível destruir uma parte singular da matéria, diz Spinoza em uma de suas cartas, desapareceria com ela a existência de toda a sua extensão".

A substância não depende de nenhuma causa que lhe seja estranha, quer dizer, de um criador divino. A substância é sua própria causa (causa sui) e a de todas as coisas existentes no mundo.

Desta maneira, a teoria da substância é a teoria da matéria eterna e infinita: o materialismo. Spinoza, porém, reveste-a de uma camada teológica, chamando deus a sua substância. Contudo, este deus de Spinoza muito pouco se assemelha ao deus criado pela fantasia religiosa. Segundo Spinoza, deus não possui livre arbítrio, não pode propor-se qualquer finalidade, atua pela necessidade inerente à natureza, e em nada se diferencia, na essência, da própria natureza. Por isso é manifestamente contrária à verdade a afirmação dos historiadores burgueses da filosofia os quais tacham de panteísta a doutrina de Spinoza. Diderot tinha razão ao afirmar que Spinoza

"é o primeiro que conduziu o ateísmo a um sistema, fazendo dele uma doutrina íntegra e conexa".

A filosofia de Spinoza tem o defeito de não haver emancipado a substância de seus apêndices teológicos.

Ao definir a substância como uma natureza infinita que é a causa de si mesma, Spinoza pergunta a si próprio como se manifesta essa natureza, e responde com sua teoria dos atributos da substância. Há uma multidão infinita de atributos, ou propriedades básicas, que expressam a natureza da substância; porém Spinoza fala apenas de dois em sua teoria filosófica: a extensão e o pensamento, aos quais denomina atributos cognoscíveis, deixando assim aberto o problema referente aos demais atributos.

A substância, com seus atributos, é uma "natureza produtora (natura naturans); em troca, todo o múltiplo e variado mundo das coisas diretamente accessíveis aos sentidos humanos é uma "natureza produzida" (natura naturata) ou o mundo das manifestações da substância, o mundo dos modos. Dessa maneira os modos são mutáveis e inconstantes: são apenas formas casuais da manifestação da substância. Todas as coisas concretas, entre elas o homem, pertencem segundo Spinoza ao mundo dos modos. Também entre os modos está incluído o movimento, embora diferenciando-o de vários outros, o chame modo infinito.

Entre a substância e os modos existe um limite intransitável. A substância é homogênea, indivisível; a variedade múltipla só é inerente às coisas transitórias, aos modos. A substância existe eternamente, mas essa eternidade não está ligada ao tempo, que só é inerente aos modos. A substância é sua própria causa bem como causa das coisas mutáveis concretas, dos modos; porém ela própria é imóvel e imutável; o movimento e a mutabilidade são inerentes apenas aos modos. A substância, além da extensão, possui outro atributo, o do pensamento, o que conduz à teoria da animação geral da natureza, ou seja, à incompreensão do caráter histórico do pensamento, que só nasce numa determinada fase do desenvolvimento da matéria.

Spinoza é um determinista severo; cada coisa, cada fenômeno da natureza é causalmente condicionado. A conduta do homem também está sujeita à necessidade.

A teoria da causalidade de Spinoza é metafísica: identifica a causalidade com a necessidade, com a causalidade mecânica que exclui a casualidade. Concebe a casualidade subjetivamente, como um fenômeno cujas causas ignoramos.

Desta forma o materialismo de Spinoza tem um caráter abstrato, metafísico: sua substância não se relaciona com as coisas concretas nem com os homens. Marx dá uma definição acertada da substância de Spinoza:

é "a natureza metafisicamente disfarçada em sua separação do homem"(49).

Apesar de seus traços metafísicos, o materialismo de Spinoza constitui uma etapa importante na história da filosofia. Spinoza superou o dualismo de Descartes; desprezou a substância pensante e independente de Descartes e reduziu o pensamento a uma função atributiva da matéria. Para estudar a atividade da alma humana, diz Spinoza, é preciso estudar antes o corpo.

As diferentes conclusões da filosofia de Spinoza são magníficos modelos de dialética. O princípio que afirma ser a substância sua própria causa, põe de lado a ideia cartesiana de ser deus o criador da matéria e do movimento. Este princípio de Spinoza é dialético, porque tende a conduzir inevitavelmente à teoria do auto movimento da matéria. Hegel acentua este fato ao dizer que, se Spinoza tivesse desenvolvido mais a ideia da sua "causa sui", sua substância não teria podido permanecer como coisa imóvel. Segundo Hegel, a teoria spinoziana da substância, com seus atributos — extensão e pensamento — conduz Spinoza a conceber o ser como a unidade dos contrastes. A própria teoria da substância, dos atributos e dos modos aproxima-se no fundo da interpretação e da correlação existente entre o universal, o particular e o singular. A teoria spinoziana da liberdade e da necessidade contém igualmente elementos de dialética. Quando Spinoza diz: livre é tudo o que existe em consequência da necessidade de sua essência, aproxima-se muito da interpretação do princípio dialético de que a liberdade é uma necessidade reconhecida. Spinoza, ao afirmar que "a ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas", aproxima-se da interpretação da relação efetiva existente entre a consciência dos homens e o ser que condiciona essa consciência.

Na sua teoria do conhecimento, Spinosa mantém-se nos marcos do racionalismo. Distingue três formas de conhecimento: a primeira, o conhecimento sensível que dá apenas urna representação confusa e inverídica das coisas. Um grau superior é o conhecimento através da razão, que é capaz de conhecer os modos infinitos do movimento e ao repouso, os atributos da extensão e do pensamento. Porém a forma suprema do conhecimento é, como Spinoza (da mesma forma que Descartes) a chama, a intuição que descobre de uma maneira mais ou menos repentina a verdade, sem o trabalho intermediário do pensamento. Das verdades os axiomas estabelecidos por via intuitiva tiram-se dedutivamente, pelo método matemático, todas as demais deduções e conclusões.

Spinoza foi ó representante mais notável do ateísmo do século XVII. O valor da filosofia spinoziana consiste em que, no século do império do racionalismo idealista na Europa, chegou ao materialismo e ao ateísmo. Sua teoria da substância, emancipada de sua cobertura teológica, foi realizada pelo materialismo do século XVIII como teoria da matéria eterna e infinita, indissoluvelmente ligada ao movimento como forma de sua existência. Spinoza é grande porque, como assinalou Engels, foi um dos primeiros a tentar firmemente a interpretação do mundo em si mesmo.

Godofredo Guilherme Leibnitz

A Alemanha do século XVII foi um país economicamente atrasado e politicamente caótico. O absolutismo, apoiado nas forças reacionárias do feudalismo, da religião e da igreja, reinava nos pequenos Estados germânicos. Contudo, as forças da burguesia, embora lentamente, iam aumentando e por isso amadureceu também a necessidade da unificação nacional da Alemanha, do desenvolvimento, como contrapeso à arbitrariedade feudal, dos princípios do direito burguês, da proteção à "liberdade individual", do desenvolvimento do conhecimento científico do mundo e do domínio sobre as forças da natureza.

O genial pensador Leibnitz foi o representante dessas tendências- progressistas da burguesia alemã, ainda débil e incapaz de tomar nas mãos o governo econômico e político, a qual, portanto, apenas almejava realizar suas tarefas dentro do sistema feudal e do "absolutismo ilustrado". Nas concepções filosóficas de Leibnitz refletiram-se as contradições existentes no estado das classes e nas condições do desenvolvimento da burguesia alemã do século XVII.

Godofredo Guilherme Leibnitz (1646-1716) filho de um professor de moral na Universidade de Leipzig, em tenra idade, revelou suas qualidades excepcionais. Após terminar os estudos na Universidade, foi jurista, político, diplomata e sábio. Suas reiteradas viagens à França, Inglaterra, Holanda e Itália deram-lhe a possibilidade de conhecer os cientistas mais notáveis da época (Newton, Huyghens, Spinoza). As mais importantes das suas múltiplas obras são: "Monadologia", "Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano", "Tratado de Dinâmica" e uma obra dedicada à análise do infinitesimal.

A rica e variada atividade filosófica, científica e política de Leibnitz, caracteriza-se pela união contraditória das tradições feudais e clericais com as tendências do livre pensamento burguês. A debilidade da burguesia alemã condicionou o caráter idealista e conciliador da filosofia de Leibnitz. Leibnitz desejava conciliar os campos hostis dentro do clericalismo, o protestantismo com o catolicismo, o Estado feudal-absolutista idealizado com os princípios burgueses do direito natural, a religião com a ciência, o racionalismo com o empirismo. Leibnitz, como porta-voz do interesse da evolução burguesa, fazia propaganda do novo modo de produção e trabalhava apaixonadamente na solução dos problemas técnicos. Em política, defendeu os princípios da unificação nacional. Como filósofo de uma classe que se conciliava com o feudalismo, Leibnitz manifestou-se contra o materialismo e contra o ateísmo, mas, apesar disso, insurgiu-se contra ele a reação clerical.

Leibnitz é o "ilustrador" avançado do século XVII. Critica a escolástica medieval, defende o progresso da ciência e da técnica e a divulgação dos conhecimentos científicos. Funda a Academia Berlinense de Ciências, da qual foi o primeiro presidente, sendo também um dos fundadores da Academia de Ciência de Petersburgo. Seu gênio universal manifestou-se de modo criador nos ramos mais variados da ciência. Na matemática é, como Newton, um dos criadores do método infinitesimal. Na física, promoveu a lei da conservação da força, adiantando-se, com Descartes, de dois séculos à lei da conservação da energia; na técnica, é um inventor notável; em geologia, defendeu a teoria da origem da terra pela sua separação do sol; em biologia criou uma das primeiras formulações da teoria da evolução, embora ainda em base mecanicista; em psicologia promoveu a teoria da evolução das imaginações humanas. Foi ao mesmo tempo historiador, autor de novas teorias jurídicas e inovador da ciência do idioma.

O sistema filosófico de Leibnitz representa um idealismo objetivo. Sua filosofia, apesar de sua base metafísica, contém elementos formidáveis de dialética; à ideia spinoziana de substância uniu o princípio da força ativa ou da auto-ação.

Segundo Leibnitz, as substâncias autênticas são unidades espirituais simples indivisíveis: as mônadas. Em compensação, as coisas materiais são apenas fenômenos. As mônadas, para Leibnitz, distinguem-se por uma simplicidade e indivisibilidade absolutas e, ao mesmo tempo, por sua incapacidade de ação. A mônada indivisível, diz Leibnitz, não tem extensibilidade nem se acha no espaço, é infinitamente divisível. A mônada constitui um centro imaterial de forças ativas. As mônadas são eternas e indestrutíveis; não podem nascer nem perecer por via natural. Tampouco podem transformar-se sob a influência exterior. Acham-se em constante autotransformação que consiste em seu trânsito das percepções confusas para a consciência, devido à tendência que lhe é inerente. A ação mútua entre as mônadas é condicionada pela "harmonia preestabelecida" que transforma cada mônada num "espelho vivo do universo".

"As almas regem-se por suas próprias leis, escreve Leibnitz, que consistem numa determinada ordem de desenvolvimento de suas noções relativas ao bem e ao mal, enquanto que o corpo, de seu lado, segue da mesma forma sua própria lei, precisamente a lei do movimento. Por isso não é menos certo que essas duas essências completamente heterogêneas coincidam e se correspondam mutuamente, como dois relógios regulados duma maneira completamente igual, embora tenham sido construídos de forma absolutamente diversa. É precisamente isto que chamo harmonia pré-estabelecida".

De acordo com o grau de seu desenvolvimento, as mônadas dividem-se em simples (representações confusas) que correspondem para Leibnitz ao mundo inorgânico; mônadas-alma (a potência de sensação e de representação dessas mônadas corresponde ao nível de desenvolvimento dos animais) e mônadas-espíritos (seres racionais: o homem e o "gênio").

Leibnitz chega à ideia de enlace entre todas as coisas, à ligação do único e do infinito, à ideia de evolução, compreendida como evolução da consciência.

"Através da teologia, diz Lenin, Leibnitz chegou ao princípio da ligação indissolúvel (e universal, absoluta) entre a matéria e o movimento"(50). Reconhece a "força ativa como propriedade básica da substância, estabelecendo o laço do individual com o geral. "Não obstante o idealismo e o clericalismo, há aqui uma dialética, à sua maneira, porém muito profunda"(51), diz Lenin.

Na lógica, Leibnitz tratou de aperfeiçoar a lógica formal. Como suplemento à lei anterior da lógica formal (a lei da intensidade, da contradição e da exclusão de um terceiro), introduziu uma quarta lei, a da base suficiente. As primeiras leis servem para estabelecer as verdades da razão, ou as verdades eternas; a última, para estabelecer a verdade do fato ou as verdades acidentais.

O conteúdo positivo da filosofia de Leibnitz não está em seu caráter metafísico. Está nos elementos de dialética mencionados acima, em suas descobertas matemáticas (cálculo diferencial e integral) e na física (estabelecimento da lei da conservação da "força viva", medida

por meio do produto da massa do corpo em movimento pelo quadrado da sua velocidade — mv2).

A filosofia de Leibnitz exerceu muita influência sobre os materialistas franceses (por exemplo, sobre Robineau e Diderot, com suas ideias de transformação dos organismos e da animação das moléculas). Leibnitz foi o precursor do idealismo clássico alemão, e sua dialética idealista foi concluída na filosofia enciclopedista de Hegel.

A Luta Entre o Materialismo e o Idealismo durante o Século XVIII na Inglaterra

O fim do século XVII na Inglaterra caracteriza-se pelo advento da burguesia ao Poder, sobre a base de um compromisso com a nobreza latifundiária e como consequência da revolução de 1689, que obteve dos historiadores burgueses o qualificativo de "gloriosa , precisamente por seu caráter conservador. O enigma desse caráter conservador da segunda revolução burguesa na Inglaterra, explica-se, diz Marx, pela duradoura aliança entre a burguesia e a parte destacada dos grandes latifundiários. As propriedades territoriais da nova nobreza não representavam uma propriedade feudal, mas burguesa, que atendia aos interesses da indústria abastecendo-a de matérias primas necessárias, como lã, por exemplo. "Isso explica também a própria aliança entre essas duas classes"(52).

Depois da revolução de 1689, a burguesia transformou-se de fato na classe dirigente da Inglaterra.

As condições políticas criadas por essa revolução descobriram um amplo horizonte ao desenvolvimento da produção capitalista, O progresso do conhecimento científico do mundo atendia ao interesse da burguesia, como classe avançada posta à frente do desenvolvimento econômico do país. O conhecimento científico do mundo servia de meio poderoso para o aumento das forças produtivas, para a emancipação da individualidade de todas as sobrevivências e cadeias feudais, para restrição da influência religiosa na vida social e política. A ciência inglesa do século XVIII apresentou grandes sábios, tais como Isaac Newton, o químico Priestley, o médico e fisiólogo Hartley e outros. Nos fins do século XVII organizou-se na Inglaterra a primeira Academia de Ciências, a "Sociedade Real para o Fomento e Desenvolvimento das Ciências Físicas". Contudo os ideólogos da burguesia inglesa começam ao mesmo tempo a experimentar um sentimento de temor ante a nova força social que amadurecia nas entranhas da sociedade burguesa, o proletariado. Por isso, a burguesia inglesa, embora continuasse a liquidação gradual das sobrevivências feudais, deixa de ser no século XVIII uma classe revolucionária. Esta virada da burguesia para a reação refletiu-se na filosofia com o aparecimento das escolas idealistas. A vida ideológica da Inglaterra constitui no século XVIII um quadro completo da luta do materialismo contra o idealismo que cerra fileiras com a religião.

Isaac Newton

Surge então Isaac Newton (1642-1727), um dos maiores experimentalistas naturalistas, sob cuja influência se desenvolvem a ciência natural e o materialismo dos fins do século XVII, e do XVIII. Newton é autor duma série de importantes descobertas matemáticas (cálculo diferencial e integral), mecânicas (criação do sistema integral da mecânica), físicas (a lei da gravitação universal, a teoria corpuscular da luz). Newton foi representante do materialismo mecanicista, embora seu materialismo tampouco fosse consequente: Newton era religioso; tinha elementos de idealismo. Foi ele quem formulou definitivamente a concepção mecânica ou matemática imperante na filosofia e nas ciências naturais durante os séculos XVII e XVIII. Newton considerava que a matéria existia objetivamente, e reconheceu sua constituição atômica. Ensinou a relação universal e a ação mútua dos corpos. A lei de Newton sobre a gravitação universal é a primeira expressão mecânica científica, embora unilateral, desta ação mútua universal. O mundo move-se segundo leis próprias, mecanicamente indispensáveis. Sem embargo, a juízo de Newton existe deus, o criador do mundo, que estabeleceu estas leis e mantém o mundo em movimento.

Newton reconhecia a objetividade do espaço e do tempo. Acreditava que o tempo e o espaço absolutos existiam independentemente do homem, das coisas e da matéria. Constituem uma espécie de receptáculo de todos as coisas. Nesta teoria do espaço e do tempo "puros", separados da matéria, embora objetivos, manifesta-se claramente o caráter metafísico de sua concepção filosófica.

Esta metafísica manifesta-se também na separação que Newton faz entre o movimento e a matéria. Newton formulou a lei da inércia que, interpretada de um modo dialético-materialista justo, significa a eternidade, a indestrutibilidade e a não-criação do movimento. Porém Newton deduziu do princípio da inércia conclusões falsas sobre a inércia da matéria. Para ele, a matéria põe-se em movimento só por efeito de uma força exterior, um impulso exterior. A fonte última do movimento, o primeiro motor do mundo, é deus.

O maior defeito do método de Newton é seu empirismo estreito e unilateral. Baseando-se na lógica indutiva de Bacon, Newton ressaltou a importância da investigação experimental; porém, diferindo daquele, negou a importância da teoria em geral, da hipótese geral. Engels, considerando os métodos científicos de Newton, criticou-o duramente por seu empirismo grosseiro.

A física de Newton deslocou definitivamente, no século XVIII, a física de Descartes, da qual se diferenciou substancialmente. (Descartes, por exemplo, não era atomista; negava o vácuo, o espaço sem matéria; não reconhecia o princípio da gravitação, etc.). A mecânica de Newton dominou na ciência até fins do século XIX.

John Locke

As características de conciliação de classe entre a burguesia e a nobreza estão claramente expressas na filosofia de John Locke, pai espiritual do materialismo do século XVIII.

John Locke (1632-1704), filho de um jurisconsulto, recebeu sua instrução na escola clerical de Oxford; porém renunciou prontamente a teologia e a escolástica, dedicando-se preferentemente às ciências naturais e à medicina. O conhecimento das obras de Descartes atraiu-o para a filosofia, e seu conhecimento pessoal com o físico-químico Bayle aumentou seu interesse pelas ciências naturais. Locke, que viveu longo tempo na Holanda e na França manteve relações com os cientistas mais eminentes. Na juventude foi médico da família do aristocrata Shaftesbury e educador de seu neto, e posteriormente conhecido escritor moralista. No período final da restauração dos Stuarts, e devido às suas convicções liberais, Locke viu-se forçado a emigrar para a Holanda, onde viveu com nome suposto. Depois da revolução de 1689 regressou à Inglaterra, desempenhando uma série de cargos no Estado.

Em seus conceitos políticos, Locke interpreta os interesses da burguesia liberal. Em sua obra "Dois Tratados Sobre o Governo" (1690), desenvolve a teoria da divisão do poder em Executivo, Legislativo e Judiciário. A importância decisiva deve caber ao poder Legislativo, concentrado no Parlamento, ou seja, no fundo, a burguesia predominante no Parlamento. Locke, ao contrário de Hobbes, considera o estado de liberdade e igualdade como o primitivamente existente entre os homens. Como Hobbes, porém, acha que o Estado é o resultado do contrato social, cuja finalidade é assegurar ao cidadão a liberdade, a vida, a propriedade e até mesmo o direito do povo à revolução. Em suas "Cartas sobre a tolerância" (1689) e no "Cristianismo racional" (1695), pronuncia-se pela separação da igreja e do Estado, pela paz religiosa e pela tolerância, da qual, contudo, devem ser excluídos, de um lado, os católicos como ideólogos da restauração feudal, e, de outro, os ateus que ameaçam os fundamentos do Estado burguês. No "Pensamento Sobre a Educação" desenvolve o ideal das classes privilegiadas daquele tempo, da personalidade disciplinada, desenvolvida intelectual e fisicamente. Simultaneamente recomenda a escola do trabalho para as classes "inferiores", na qual a instrução deve estar ligada à aprendizagem de um ofício. Em suas obras manifesta-se como representante dos interesses comerciais e industriais da burguesia sendo um dos precursores de Adam Smith.

A importância de Locke na história da filosofia está ligada à sua obra fundamental, "Ensaio Sobre o Entendimento Humano" (1690). Nessa obra, propõe-se a tarefa de investigar "a origem, a certeza e a extensão do conhecimento humano". Nesse problema adere ao materialismo e ao empirismo de Bacon e Hobbes de quem é continuador imediato. Hobbes, escreve Marx, sistematizou o materialismo de Bacon; não deu porém um raciocínio exato ao seu princípio fundamental de que os conhecimentos e as ideias provêm do mundo material. Essa tarefa foi realizada por Locke.

Locke mostra-se adversário decidido das doutrinas dos escolásticos e de Descartes sobre as ideias e os princípios inatos. Locke demonstra que a alma representa uma "tábua rasa", sem traços nem ideias de espécie nenhuma. Todo o material do entendimento, do conhecimento, é fornecido à alma pela experiência.

"Na experiência estão todos os nossos conhecimentos e dela procedem em última análise".

Apesar de defender um dos princípios materialistas mais importantes da teoria do conhecimento, Locke revela sua inconsequência ao reconhecer a existência duma dupla fonte de experiência. Segundo ele, dum lado existe "a experiência exterior", que é o resultado da influência dos objetos exteriores sobre os órgãos dos sentidos do homem, a experiência por meio de sensações, e, por outro lado, a "experiência interior", mediante o "reflexo", ou a "auto-observação da alma".

No problema da possibilidade e certeza dos conhecimentos, Locke manifesta-se contra os céticos e demonstra que o homem pode fiar-se em seus sentidos e não tem motivo para duvidar da existência dos objetos.

"Quem vê uma vela acesa, diz, e experimenta a força de sua chama, ao pôr nela o dedo, não duvidará muito de que alguma coisa existe fora dele capaz de causar-lhe uma forte dor. Tal certeza é suficiente; para guia das ações não faz falta uma certeza maior que a das próprias ações".

Locke chama ideia às representações recebidas da experiência (tanto externas como internas) e as divide em simples, que expressam representações ou percepções uniformes; e ideias compostas, recebidas das simples por meio da atividade da inteligência pela unificação, confrontação e particularização das ideias simples. As ideias simples pertencem às sensações (o frio, a dureza, o cheiro, o gosto, etc.), e às compostas, tudo o mais (por exemplo, a beleza, o agradecimento, o homem, o exército, o universo, etc.).

A base geral da filosofia de Locke é materialista, mas contém tendências idealistas. Assim, reconhece duas substâncias — a matéria e o espírito — e, além disso, deus como causa suprema das coisas. Reconhecendo que a matéria possui a aptidão de pensar, Locke reveste esse princípio materialista de uma forma teológica, dizendo que essa aptidão pode ter sido inculcada na matéria por Deus. A inconsequência de Locke expressa-se também em sua teoria das qualidades primárias e secundárias das coisas. Locke chama qualidades primarias, a solidez, a extensão, a figura, o movimento das coisas. Considera-as inerentes às próprias coisas. As sensações que essas provocam são, a semelhança ou imagem dessas qualidades, objetivamente existentes. As qualidades secundárias, segundo Locke, são a cor, o som, o sabor, provocadas pelo movimento das partículas e dos corpos inaccessíveis à percepção; porém como tais não são inerentes aos objetos. Essas sensações não são imagens das qualidades objetivamente existentes. São subjetivas.

Esta dualidade nas opiniões filosóficas de Locke, conduziram-nas a servir de ponte a duas linhas do desenvolvimento da filosofia: o materialismo e o idealismo.

"Tanto Berkeley (idealista subjetivo) como Diderot (materialista) procedem de Locke", diz Lenin(53).

Entre os defeitos básicos da filosofia de Locke figura também seu caráter metafísico. Na filosofia de Locke falta o ponto de vista evolucionista; concebe a matéria como uma massa inerte, cujo movimento é originado de fora por um motor primário, que é deus. Locke transplantou para o filosofia o método metafísico, copiado das ciências naturais mecânicas. Este método, diz Engels,

"transplantado por Bacon e Locke das ciências naturais para a filosofia, provocou nos últimos séculos uma limitação específica e o modo metafísico de discorrer"(54).

Apesar desses defeitos e da limitação de classe de suas teorias, a filosofia de Locke desempenhou um grande papel progressista. Engels chama Bacon, Hobbes e Locke de pais da brilhante escola dos materialistas franceses do século XVIII. O mérito de Locke, diz Marx, consiste em "...ter fundado a filosofia do "bom senso", do bom sentido, quer dizer, em ter estabelecido, de uma maneira indireta, que não pode haver uma filosofia separada da razão, baseada no testemunho dos sentidos humanos"(55). O sensualismo materialista de Locke serviu de base a uma das correntes do materialismo francês que conduziu ao socialismo utópico.

O Movimento dos Livre-Pensadores

As teorias filosóficas de Locke deram um impulso poderoso a um amplo movimento entre as camadas avançadas da burguesia inglesa, pela liberdade de pensamento, pela emancipação dos dogmas religiosas. Já Hobbes, diz Marx, pulverizou os preconceitos teístas do materialismo baconiano e Collins, Dodwal, Hartley e Priestley derrubaram as últimas barreiras teológicas do sensualismo de Locke. Ao menos para o materialista, o teísmo não é mais que a forma cômoda e indolente de,desembaraçar-se da religião"(56).

Os deístas, não obstante reconhecerem uma força divina extra- mundial negavam a existência de um deus individual, e a intervenção da divindade nos assuntos do mundo, e criticaram duramente as doutrinas religiosas.

Um dos representantes mais conhecidos do livre-pensamento inglês, A. Collins em seu livro "Discurso Sobre o Livre-Pensamento", escrito devido a aparição e ao crescimento dos chamados livre-pensadores (1713) defende os direitos do entendimento, negando por completo a "revelação ", o milagre, a crença na imortalidade da alma e outros dogmas religiosos.

Outro sucessor das doutrinas de Locke, o notável pensador John Toland (1670-1722), passou rapidamente do deísmo ao materialismo aberto e ao ateísmo. Toland submeteu a uma crítica severa os aspectos mais metafísicos do materialismo do século XVIII: a separação entre a matéria e o movimento, etc. A vida e a energia criadora são inerentes em geral ao próprio universo. Todas as propriedades do corpo, como a forma, o calor, a cor, o frio, o som, são apenas manifestações do movimento e da atividade inerentes à matéria. No mundo verifica-se uma ação mútua entre os objetos e uma eterna troca de matéria. A alma não é mais que uma das faculdades do corpo; o pensamento é o produto da atividade do cérebro; onde não há cérebro tampouco haverá pensamento. Toland criticou duramente Spinoza por conceber a substância separada do movimento. Em sua obra principal ("Cartas à Serena"), Toland demonstra que o movimento é um atributo da matéria. A importância de Toland está no fato de ter aberto uma brecha na concepção metafísica do mundo de Newton e dos deístas, os quais reconheciam a necessidade de um "primeiro impulso" para pôr em movimento a matéria, e em ter lançado os alicerces da teoria do auto-movimento da matéria; teoria que foi admitida posteriormente pelos materialistas franceses. O livro de Toland "O Cristianismo Sem Mistérios", no qual criticou a religião do ponto de vista da sua oposição à razão, foi condenado à fogueira, por sentença do Parlamento Irlandês, e o próprio Toland teve de fugir para evitar a prisão.

Depois de Toland outros pensadores começaram a interpretar de forma materialista os fenômenos psíquicos. Os deístas Dodwal e Coward demonstraram que a alma é um fenômeno natural imortal. O materialista e experimentalista-naturalista Hartley demonstrou a estreita relação de dependência do processo psíquico e do fisiológico e lançou as bases da psicologia científica. O sucessor de Hartley, Joseph Priestley (1733-1804), em seu livro "Discussão Livre Sobre as Doutrinas do Materialismo" (1788), defendeu o materialismo contra o clericalismo.

Priestley foi um grande experimentalista naturalista e um pensador político radical. Como experimentalista-naturalista deixou uma profunda marca na história da química, descobrindo uma série de gases desconhecidos até então (particularmente, descreveu pela primeira vez o oxigênio). Priestley declara que a alma é uma função do cérebro; reduz a psicológico à fisiologia do sistema nervoso. No problema de auto- movimento da matéria, Priestley continuou a linha de Toland.

As teorias dos livre-pensadores penetraram amplamente nos círculos intelectuais avançados da sociedade burguesa da Inglaterra e transformaram-se na base do materialismo científico-naturalista. Contra essas teorias que socavavam os dogmas religiosos, interveio o clero com o propósito de aniquilar o materialismo pela perseguição e expulsão dos livres pensadores, por meio de prédicas nos púlpitos e da divulgação da literatura polemista antimaterialista.

George Berkeley

O representante mais notável do clericalismo, cabeça da cruzada contra o materialismo, foi o idealista subjetivo bispo George Berkeley (1685-175Õ), que aspirava destruir o materialismo e o ateísmo.

Berkeley considerava sua tarefa fundamental a defesa do clericalismo, a impugnação do materialismo e do ateísmo, a luta contra o livre-pensamento. Agia como "representante do idealismo místico na filosofia inglesa"(57) e como inspirador da reação idealista mais extremada contra o materialismo. Para conquistar a simpatia das camadas cultas da burguesia, utiliza as conquistas da ciência em defesa do clericalismo, dando-lhes porém uma interpretação adulterada e idealista. Berkeley procurou demonstrar por todos os meios a impossibilidade da existência da matéria como realidade objetiva, e até mesmo da própria noção de matéria. Fazendo coro com as doutrinas do nominalismo medieval, declara que no mundo nada há fora das coisas concretas singulares, e que o conceito de matéria como substância geral é somente uma abstração, e aí enuncia o princípio de que as ideias gerais abstratas ou representações não podem existir. Qualquer ideia geral, por exemplo, a ideia da árvore, é no fundo uma representação concreta, pois não é possível imaginar a "árvore em geral" sem alguns sinais de propriedades concretas da árvore.

Sentindo que por este caminho escolástico não conseguiria demonstrar a impossibilidade da existência das ideias gerais da matéria, Berkeley não apela já para o pensamento lógico, mas para o sentimento de seus devotos leitores.

"Uma vez expulsa a matéria da natureza, leva consigo tantas noções céticas e ímpias, tantas disputas e árduos problemas, espinhos no caminho dos teólogos e dos filósofos, os quais causaram à humanidade tanto esforço inútil, que, se os argumentos contra ela aduzidos, se acharem indemonstráveis (para mim são evidentemente demonstráveis), estou certo de que, apesar disso, todas as pessoas amigas do conhecimento, da paz e da religião tem razões suficientes para desejar que tais argumentos sejam demonstráveis", diz Berkeley(58).

Fazendo seus o empirismo e o sensualismo de John Locke, o bispo Berkeley desenvolve o empirismo na senda do idealismo subjetivo completo, valendo-se da duplicidade da teoria de Locke sobre as qualidades primárias e secundárias. Berkeley declara também subjetivas as qualidades primárias. Todas as qualidades, afirma, são absolutamente subjetivas; não são nada mais senão sensações subjetivas. O volume dos objetos e a distância entre eles, segundo Berkeley, são o conjunto de sensações visuais palpáveis e outras; tais são também as outras qualidades como a forma, a dureza, a cor, o som, o cheiro, o sabor, etc. Daí deduz Berkeley que os diferentes objetos reais não são mais que uma combinação de sensações. Para não ser acusado de estar transformando as coisas em ilusões, Berkeley trata, conforme expressão de Lenin, de mascarar a nudez idealista de sua filosofia, apresentando-a como livre de absurdos e admissível ao "bom senso". Berkeley diz que não nega a existência real das coisas que o homem pode tocar com as mãos ou ver com os olhos. Porém essa existência existe apenas na consciência dos homens. Expressando este pensamento de forma resumida, Berkeley declara:

"Existir significa estar na percepção, ser percebido" ("esse is percipi").

Se Berkeley fosse consequente, teria que chegar inevitavelmente a completo solipsismo(59), quer dizer, a reconhecer como única realidade no mundo o indivíduo que discorre sobre o mundo, ao ilusionismo a considerar o mundo e as coisas como simples ilusão do indivíduo.

Tal dedução, porém, não poderia servir de base aos dogmas da religião sobre a existência de deus, da imortalidade da alma, etc. Berkeley abandona, pois, o campo do idealismo subjetivo e por meio de subterfúgio sofistico, busca a salvação no idealismo objetivo.

"Minha tese, "existir significa ser percebido", exclama Berkeley, refere-se só às "coisas não pensantes", à terra, às pedras, aos planetas e outros objetos. Quanto aos homens, são "coisas pensantes", "espíritos" que existem independentemente das percepções e das sensações externas. A pergunta: de onde procedem, pois, as coisas pensantes ou espíritos, Berkeley responde com o dogma clerical do "espírito infinito", o deus que cria todos os "espíritos finitos", com todo o conjunto das suas ideias, trocas e sucessões de sensações. A ação mútua das coisas e a relação entre elas representa apenas, segundo Berkeley, signos estabelecidos pela divindade. Berkeley transfere assim a causalidade para o mundo do "além". O empirismo e o sensualismo de Berkeley apenas encobrem um clericalismo aberto, carente de qualquer conteúdo científico.

David Hume

O reconhecimento de um elemento espiritual — a sensação — como primário, e a negação da existência real das coisas colocaram a filosofia de Berkeley em completa contradição com a ciência. Retirar essa filosofia idealista do atoleiro e eliminar suas contradições internas, fazer uma crítica mais fina e encoberta do materialismo, foi o que tentou Hume, sucessor e continuador da filosofia de Berkeley.

Por suas relações sociais e simpatias políticas, David Hume (1711- 1776), pertencia à camada conservadora da burguesia privilegiada. No capítulo "Da História da Crítica", escrito para o "Anti-Dühring", Marx cita a característica dada pelo historiador Schlosser, da fisionomia político-social de Hume. Schlosser diz:

"... Sabe-se que (Hume-Red) era um partidário ardente da oligarquia dos Whigs, defensora da "Igreja e do Estado" razão pela qual recebeu como recompensa, primeiro o posto de secretário da Embaixada de Paris, e, em seguida, o cargo incomparavelmente mais importante e melhor remunerado de subsecretário de Estado. "Sob o aspecto político, Hume era e continuou sendo sempre um homem conservador de ideias rigorosamente monárquicas"(60).

Embora suas simpatias pessoais conservadoras, Hume foi um dos reconhecidos dirigentes ideológicos da burguesia inglesa do século XVIII. Suas obras econômicas, diz Marx, são

"uma glorificação progressiva e otimista da indústria e do comércio que floresciam imensamente, isto é, da sociedade capitalista que, naquela época, se ia entronizando rapidamente na Inglaterra"(61).

Deve-se observar que Hume estendeu seu ceticismo, à dúvida da existência da substância objetiva, não só de substância material como também a substância espiritual. Segundo ele, deus tampouco é demonstrável. Como isto minava os dogmas religiosos, o clero inglês conseguiu a condenação do livro de Hume por seus princípios anti-religiosos e "imorais". As tentativas de Hume de conseguir uma cátedra na Universidade não deram resultado. Contudo, na realidade, o ceticismo de Hume dirigia-se, antes de tudo, contra o materialismo.

Em sua obra filosófica fundamental, "Investigações sobre o entendimento humano", Hume atribui-se o mérito de aceitar exclusivamente o que a experiência fornece em primeira mão ao homem. Todo o intento de sair dos limites da experiência é para Hume metafísica. Acompanhando Locke, declara que

"todo o material do pensamento é fornecido pelos sentidos externos ou internos"(62).

Aqui o erro de Hume não se apoia só no fato de reconhecer os sentidos "internos" como fonte independente de conhecimento. Hume renuncia ao conhecimento das causas materiais que suscitam os sentidos externos. Reduz a experiência à acumulação e sensação. Quanto ao problema da fonte ou causa das sensações, Hume reconhece a impotência humana para resolvê-lo:

"com que argumento, pergunta, poder-se-ia provar que as percepções de nossa inteligência devem ser suscitadas por objetos exteriores e que não emanam da energia da própria inteligência, nem da ação de qualquer espírito invisível desconhecido, nem de qualquer outro motivo ainda mais desconhecido?"(63).

Levantando, pois, o problema da fonte das sensações, Hume reconhece que esse problema é insolúvel. Nenhuma das conjeturas sobre a fonte das sensações, que só podem ser pensadas, segundo Hume, podem ser demonstradas. É assim que chega ao agnosticismo, quer dizer, à teoria da impossibilidade de conhecer as coisas ainda que existam na realidade. Ao pôr em dúvida a existência das coisas fora da consciência, fora dos limites das sensações humanas, Hume adota a posição do ceticismo. Assim vemos como Hume de forma mais fina e cuidadosa que Berkeley, nega a existência da matéria. Hume, em vez de negar diretamente, declara insolúvel o problema do mundo objetivo em geral.

Hume reduz toda a missão da ciência à classificação das sensações ou impressões, e ao esclarecimento do problema de como a razão humana unifica essas impressões entre si. Segundo Hume, todas as percepções compostas, formam-se das mais simples, já que a razão não possui qualquer força criadora, mas só a faculdade de

"unificar, trasladar, aumentar ou diminuir o material recebido pelos sentidos exteriores e pela experiência".

Para Hume, há somente três formas ou princípios, relações entre as ideias: a semelhança, a contiguidade no espaço e no tempo, e a causalidade.

Hume arremete particularmente contra os materialistas que reconhecem a existência de leis objetivas, pelas quais se rege a natureza. Naquela época, considerava-se que a causalidade mecânica era a forma fundamental destas leis. Hume afirma que esta não é inerente às coisas, porquanto para ele as coisas são incognoscíveis e são apenas formas das relações entre as sensações e as ideias inerentes à razão. A experiência nos ensina que atrás de um fenômeno vem sempre outro: por exemplo, com a saída do sol, os objetos da terra se aquecem. Essa sucessão habitual dos fenômenos, afirma Hume, engendra também a ideia de uma dependência causal. Hume deduz pois a causalidade do hábito. Portanto, demonstrar a existência de uma causalidade objetiva na natureza, segundo Hume, não é possível. Assim nem mesmo repetindo-se vários milhões de vezes dois fenômenos sucessivos, pode-se garantir que a milionésima primeira vez se repita da mesma forma.

Ao renunciar a solução do problema da existência objetiva do mundo exterior, dos objetos que possuem influência sobre os órgãos dos sentidos e provocam as sensações, Hume chegou à negação da relação de causa objetiva entre os objetos, à negação da existência de leis na natureza. Hume concebe também o tempo e o espaço de forma idealista. Não existem objetivamente, nas coisas, e, como causalidade,

Hume declara-os apenas formas de relação das ideias.

Em consequência, Hume chega à conclusão mais pessimista quanto à faculdade do conhecimento.

"A filosofia mais perfeita da natureza, diz, afasta apenas um pouco mais as fronteiras da nossa ignorância..."

Dessa forma, a convicção da cegueira e da debilidade humanas é o resultado de toda a filosofia de Hume.

É claro que essa conclusão de sua filosofia não podia deixar de ficar em contradição fundamental com os conhecimentos científicos do mundo. Kant qualifica o resultado da filosofia de Hume de "um escândalo para a filosofia e para a razão humana", não obstante adotar ele mesmo posições idealistas subjetivas e agnosticistas. Mais tarde, na época do imperialismo, a burguesia começou a voltar ao ceticismo e ao agnosticismo de Hume. Uma das formas da ressurreição do berkeleyismo e do humanismo reacionário foi o empiriocriticismo, ou o machismo, desmascarado por Lenin como uma reincidência no idealismo subjetivo de Berkeley e de Hume.

Os "Ilustrados" e o Materialismo do Século XVIII na França

O século XVIII na França constitui a época da decadência do feudalismo e do crescimento das forças da burguesia. O processo de decomposição do feudalismo e o resultado do crescimento das forças produtivas, da ampla extensão da produção capitalista e da acumulação de riquezas pela burguesia atingiram um grau extremo. O absolutismo revelou sua completa insolvência, tanto no aspecto político-militar, como no econômico.

O aprofundamento das contradições entre as velhas classes dirigentes (latifundiários e cleros) de um lado, e a burguesia do outro, ao lado da qual marchavam então o campesinato, a pequena-burguesia urbana e o proletariado artesão, provocou um poderoso movimento contra os privilégios feudais, contra a estreiteza feudal da produção, contra o absolutismo, contra o poder do clero e da igreja. Entrementes as contradições dentro da terceira camada, achavam-se ainda em germe, e a burguesia não enxergava ainda seu coveiro, o proletariado, em suas entranhas. Consciente do seu poder econômico, sentindo-se apoiada pela terceira camada, a burguesia atirava-se contra o feudalismo.

À medida que se desenvolve a luta de classes, vai-se transformando a ideologia da sociedade burguesa, que corrói a firmeza da ideologia feudal, e realiza-se a preparação de uma ampla ofensiva contra todas as enormes forças feudais. A sociedade e o Estado, construídos sobre o privilégio, sobre o poder ilimitado do rei, contrapõe-se a teoria do "Direito natural" do "Contrato social" e da soberania do povo; à limitação feudal, à intervenção do Estado na vida econômica, contrapõe-se um regime de propriedade burguesa e de livre concorrência; à religião cristã contrapõem-se o deísmo e o ateísmo.

A primeira geração dos "ilustrados", que interpretava os interesses do bloco da nobreza aburguesada e da grande burguesia, desenvolveram os ideais do liberalismo político moderado e do constitucionalismo, tomando como modelo o regime constitucional da Inglaterra. O representante da ala moderada dos "ilustrados" franceses, Montesquieu (1689-1755), louva a virtude republicana, prega o livre pensamento religioso, ridiculariza os dogmas religiosos, o papado com suas pretensões ao domínio mundial e ao poder secular, defende as posições do deísmo, censura a prodigalidade da Corte, a soberania e a opressão dos privilégios da nobreza. Em sua obra mais notável, "O Espírito das Leis" enuncia a ideia da divisão do Poder em Legislativo, Judiciário e Executivo, idealizando o regime do Estado monárquico constitucional inglês.

A figura mais notável desse grupo de "ilustrados" é o famoso representante do livre-pensamento francês, escritor múltiplo e variado, publicista e literato, adversário intransigente da igreja e do clero, Voltaire (1694-1778). Age como defensor da liberdade individual contra os atentados da igreja, dos jesuítas e da inquisição; ataca mordazmente a religião, ridiculariza sem piedade a teologia, a igreja e as doutrinas sobre a origem divina do poder real. Em seus conceitos filosóficos é deísta. Mediante o deísmo defendia a concepção científica do mundo e divulgava o livre pensamento. Os panfletos antirreligiosos e contra a igreja de Voltaire ("Cândido", "A donzela de Orleans" e outros) divulgaram-se amplamente por todos os países da Europa, entre eles a Rússia, e desempenharam um grande papel na queda da autoridade da igreja.

Ao lado dos representantes do movimento "ilustrado" liberal-burguês, intervieram no momento social os ideólogos da pequena-burguesia radical e do campesinato que se achavam sob uma dupla opressão: de um lado, os impostos feudais e a ausência de direitos políticos, e, do outro, o capitalismo que se desenvolvia. A este grupo pertence Jean Jaques Rousseau (1712-1778), filho de um relojoeiro de Genebra, que exerceu uma poderosa influência sobre a formação da ideologia revolucionária.

Sua obra mais destacada é o famoso "Contrato Social" (1762). Aderindo às ideias de Hobbes e Locke, Rousseau desenvolve o pensamento de que o regime político-social é o resultado de um convênio entre os homens saídos de seu estado natural. Nas doutrinas de Rousseau há germes de materialismo histórico: para Rousseau a causa do aparecimento da desigualdade social é a divisão do trabalho, e a desigualdade política é o resultado da desigualdade de distribuição da propriedade entre os homens. Este livro foi o programa da transformação revolucionária da sociedade, que inspirava os jacobinos durante a revolução.

As características da concepção filosófica de Rousseau, são o deísmo e a luta contra o materialismo e contra o ateísmo, a defesa da religião "natural", a religião do sentimento. As ideias igualitárias de Rousseau exerceram extraordinária influência no desenvolvimento das concepções democrático-revolucionárias, e como assinala Engels, desempenharam um enorme papel agitador no movimento socialista de quase todos os países.

Jean Meslier foi o intérprete do ambiente da pobreza dos camponeses, esmagados pela opressão feudal-latifundiária, e atacou a religião em seu "testamento" ateu.

Também apareceram no século XVIII na França os representantes do comunismo utópico; os mais notáveis foram Mably e Morelly.

Os representantes avançados da ciência e da técnica francesas, da arte e da literatura, entusiasmados pelas ideias dos "ilustrados" sobre a luta contra o absolutismo e contra a onipotência da igreja, uniram-se para criar um grande resumo dos conhecimentos na "enciclopédia francesa da ciência e das artes", em 22 tomos. O dirigente ideológico e redator da "enciclopédia" foi o grande materialista Dionísio Diderot.

O papel dirigente na luta antifeudal e antirreligiosa, na França, cabe aos materialistas Lamettrie (1709-1751), Holbach (1723-1789), Diderot (1713-1784) e Helvécio (1715-1771). O materialismo francês do século XVIII foi o grau supremo da evolução da filosofia materialista anterior a Marx. Era uma arma de combate nas mãos da burguesia revolucionária em sua luta contra o feudalismo.

"Em toda a história moderna da Europa, e especialmente nos fins do século XVIII na França, onde se travou a batalha decisiva contra a muralha medieval, contra a servidão nas instituições e nas ideias, o materialismo ficou acreditado como a única filosofia consequente, fiel a todas as teorias das ciências naturais, hostil à superstição, à beatice, etc."(64).

O aguçamento da luta de classes na França no século XVIII, condicionou também o nível de desenvolvimento superior (para aquela época) e o caráter ateu-revolucionário do materialismo francês. Esta mesma significação tiveram os êxitos das ciências naturais às quais o materialismo francês estava indissoluvelmente ligado. Nos séculos XVII e XVIII alcançaram seu maior esplendor a matemática, a mecânica, a astronomia. Kepler, Galileu, Descartes, Newton, Leibnitz, Euler, Gauss descobriram e elaboraram os princípios fundamentais dessas ciências. Ampliou-se consideravelmente o conhecimento do mundo orgânico. Linneu realizou um grande trabalho de descrição e classificação de todos os vegetais conhecidos. Em 1744, começou a aparecer o trabalho-resumo do experimentalista-naturalista francês Buffon, "História Natural", em que seu autor aproximou-se do pensamento da unidade do mundo. O invento do microscópio revelou à ciência o mundo dos micro-organismos. As grandes descobertas geográficas dos séculos XVII e XVIII desempenharam também grande papel no desenvolvimento das ciências naturais.

Mas a mesma circunstância histórica que fez o materialismo francês se elevar a um dos graus mais importantes na história do materialismo anterior a Marx, condicionou simultaneamente sua limitação histórica.

As ciências naturais do século XVIII, não obstante seus êxitos colossais, atravessaram todavia o período metafísico de seu desenvolvimento, não chegando a elevar-se à criação das teorias evolucionistas. Os princípios matemáticos mecânicos imprimiram uma característica mais forte nas demais ciências naturais, dotando-as de um caráter mecanicista e metafísico. Na ciência do mundo orgânico imperava o dogma da imutabilidade das espécies:

"Existem tantas espécies quantas foram criadas no princípio pelo criador", dizia Linneu.

O materialismo francês, síntese filosófica dos progressos das ciências naturais dos séculos XVII e XVIII, não pôde elevar-se acima do nível destas últimas, sendo, em geral, um materialismo mecanicista e metafísico.

Engels, como já se indicou antes, fez notar três manifestações fundamentais nessa limitação metafísica do materialismo francês:

  1. o mecanicismo, a aplicação da mecânica à interpretação de todos os fenômenos da natureza;
  2. o caráter metafísico e anti-dialético, isto é, a incompreensão da ideia de evolução na natureza e na sociedade;
  3. o idealismo e o anti-historicismo na interpretação dos fenômenos sociais.

Os materialistas franceses são os sucessores diretos dos grandes filósofos do século XVIII, Bacon, Hobbes, Locke, Descartes, Spinoza, Toland. Não se limitaram, porém, a continuar simplesmente as doutrinas destes filósofos, mas desenvolveram-nas, tratando de superar sua limitação. Lutavam contra o dualismo de Descartes, contra a metafísica e os adornos teológicos da filosofia de Spinoza, contra os momentos idealistas da teoria do conhecimento de Locke, etc. Não é em vão que Marx e Engels indicam na "Sagrada Família" que

"... o materialismo francês representa não só a luta contra as instituições políticas existentes, contra a religião e a teologia da época, mas também uma luta aberta e declarada contra a metafísica do século XVIII e contra a metafísica em geral, contra a metafísica de Descartes, Malebranche, Spinoza e Leibnitz."

Trazendo à luz as raízes históricas do materialismo francês, Marx e Engels escrevem:

"existem duas tendências no materialismo francês: uma tem sua origem em Descartes; a outra em Locke. A segunda é composta, principalmente, pelo elemento culto francês e conduz diretamente ao socialismo; a primeira, o materialismo mecanicista, liga-se às ciências naturais francesas. Ambas as tendências se entrecruzam no curso de seu desenvolvimento"(65).

As ciências naturais são a primeira fonte teórica do materialismo dos franceses, que, na sua maioria, foram naturalistas e médicos.

"Essa escola começa com o médico Leroy, atinge seu ponto culminante com o médico Cabanis, e o médico Lamettrie ocupa-lhe o centro"(66).

Holbach foi um químico notável; Robineau, um biólogo. A reelaboração da teoria lockeana da origem material dos nossos conhecimentos e a luta, sobre tal base, contra a teoria cartesiana das ideias inatas, é a segunda fonte teórica do materialismo francês. As teorias de Locke, emancipadas em suas tendências idealistas, foram dirigidas contra a metafísica idealista do século XVII e utilizadas para fundamentar as teorias sociais-revolucionárias. Se o homem extrai sua experiência do mundo que o rodeia, é necessário mudar a sociedade de forma que inculque no homem propriedades verdadeiramente humanas. Da estrutura social depende a coincidência do interesse pessoal com o social. O materialismo francês, em seu desenvolvimento, conduziu, portanto, ao socialismo utópico que se apoia nesses princípios.

Nas opiniões filosóficas e científico-naturais do materialismo francês há certas diferenças. Holbach manteve mais consequentemente a linha mecanicista. Helvécio especializou-se nos problemas de educação, ética e política do Estado. Robineau, como indica Marx, expressou mais fortemente a metafísica que os demais representantes do materialismo francês. O representante mais notável dessa plêiade gloriosa foi Diderot, pois foi o que mais se aproximou da dialética. Contudo, nas teses de princípio não há divergência entre eles. Por isso, é preciso considerar o materialismo francês do século XVIII como uma escola filosófica única.

Julian Offry Lamettrie foi o representante mais claro da tendência do materialismo francês que tem origem na física de Descartes e, como materialista mecanicista, fundiu-se com as ciências naturais francesas.

Lamettrie, filho de um comerciante francês remediado, estudou teologia durante a juventude, mas logo passou ao estudo da medicina e concluiu sua instrução médica em Leiden, sob a direção do famoso médico holandês do século XVIII, Burgaw. Lamettrie, por suas obras, audazes e críticas, queimadas pelo carrasco, foi objeto de perseguições e viu-se obrigado a emigrar para a Holanda e, em seguida, refugiar-se na Corte do destacado representante do "absolutismo ilustrado do século XVIII", o rei prussiano Frederico II. As obras de mais importância de Lamettrie são: "História Natural da Alma" (1745), "Homem-máquina" (1748), "Homem-planta" (1748), "Os Animais São Mais do Que Uma Máquina" (1750), "Sistema de Epicuro" (1750).

O materialismo de Lamettrie formou-se sob a influência do materialismo atômico de Epicuro, das teorias materialistas de Spinoza sobre a substancia única, do ponto de vista físico de Descartes e do sensualista de Locke. Lamettrie lutou contra a metafísica dos idealistas e fundamentou o conceito materialista da natureza. Contrariamente a Descartes, demonstrou a insolvência da ideia da alma imaterial e imortal, considerando a alma como uma função e manifestação da atividade do cérebro. Em sua obra "Homem-máquina", propõe-se a tarefa de refutar o ponto de vista cartesiano que considera os animais máquinas insensíveis, e demonstrar que o homem é tão animal como os outros animais superiores, distinguindo-se deles apenas pelo grau de desenvolvimento da inteligência.

A concepção filosófica de Lamettrie representa um ateísmo militante. Seu materialismo, porém, sofre dos defeitos comuns a todo o materialismo francês do século XVIII: no fundamental é mecanicista.

Algum tempo depois de Lamettrie apareceu Cláudio Adriano Helvécio, filho de um médico da corte. Herdou grandes propriedades e foi arrecadador geral. Sob a influência das teorias de Locke, ingressou nas fileiras dos "ilustrados" e aproximou-se dos enciclopedistas.

Suas formidáveis obras "Sobre a Razão" e "Sobre o Homem" (impressas em 1773, após sua morte) exerceram uma influência poderosa na formação das concepções revolucionárias da burguesia francesa. O termo de acusação judicial qualificou seu livro "Sobre a Razão" de

"código das paixões mais vergonhosas e ignominiosas, apologia do materialismo e de tudo que se possa chamar incredulidade para despertar o ódio ao cristianismo e ao catolicismo".

Helvécio prestou a máxima atenção aos problemas sociais. Atacando a moral religiosa, defende a que se baseia na coincidência dos interesses pessoais com os sociais e na nova teoria do caráter humano, como produto da educação.

Helvécio foi o representante mais destacado da tendência do materialismo francês que, conforme indicou Marx, conduziu diretamente ao socialismo utópico.

Paul Henrich Dietrich Holbach foi um dos criadores e inspiradores da enciclopédia francesa, autor do famoso livro "Sistema da Natureza", código do materialismo e do ateísmo do século XVIII. Barão de origem, grande proprietário, recebeu uma instrução múltipla e variada na França e pôs-se à frente do grupo avançado dos enciclopedistas e materialistas. No salão de Holbach reuniam-se os pensadores mais notáveis da época: Diderot, D'Alembert, Helvécio, Rousseau, Montesquieu, Condillac e também Hume, Franklin, Priestley e muitos outros.

Holbach escreveu antes brilhantes panfletos: "O Cristianismo a Nu", "Religião e Senso Comum", "Dicionário Teológico de Bolso", livros sobre problemas de moral e política, como "Sistema Social ou Princípios Naturais da Moral e da Política", "Etocracia ou Governo Baseado na Moral". A obra mais considerável de Holbach, pelo papel que desempenhou na ampla divulgação da concepção materialista do mundo, é o "Sistema da Natureza, ou Sobre as Leis do Mundo Físico e do Mundo Espiritual". Apareceu em 1770, alcançando várias dezenas de edições e sendo traduzida em uma série de línguas europeias. Holbach morreu em 1789, ao começar a revolução, dias após a proclamação da Assembleia Nacional e dias antes da destruição da Bastilha pelas massas parisienses sublevadas.

Quem mais claramente exprimiu a ideologia revolucionária da burguesia francesa do século XVIII foi Dionísio Diderot.

Diderot provinha das camadas trabalhadoras, era filho de um artesão cutileiro. Recebeu sua instrução, a princípio, num colégio de jesuítas, passando pouco depois para uma das melhores escolas leigas de Paris. Ao terminar os estudos, entrou nas fileiras dos intelectuais plebeus que observavam a produção capitalista em desenvolvimento. Suas concepções teóricas formaram-se sob a influência de Spinoza, dos materialistas ingleses (particularmente Locke e Toland) e dos experimentalistas naturalistas, (Newton e outros).

Diderot passou rapidamente do deísmo ao materialismo e ao ateísmo abertos e decididos. Suas obras filosóficas mais notáveis são: "Cartas Sobre os Cegos para Uso dos Que Vêm" (1749), "Pensamentos Sobre a Interpretação da Natureza" (1754), "Conversação de D'Alembert com Diderot" (1769).

Nestes livros, Diderot manifesta-se contra a superstição e o clericalismo; ataca com violência apaixonada a moral religiosa e a beatice, defendendo a liberdade individual e a liberdade de pensamento. Os livros de Diderot foram condenados à fogueira pelo Parlamento de Paris.

Os problemas de arte e de crítica literária, nos quais Diderot defendia o realismo, ocupam um lugar considerável em suas obras. Engels caracterizou seu diálogo, "O sobrinho de Rameau", como brilhante modelo de dialética.

Por suas opiniões políticas, Diderot não foi um revolucionário consequente. Acreditava na possibilidade da transformação do regime absolutista por meio de reformas; acreditava na onipotência da razão e da "ilustração", confiava na boa vontade dos monarcas "ilustrados". A convite de Catarina II, foi a Petersburgo, onde elaborou amplos planos para o desenvolvimento da economia e da instrução pública na Rússia. Aconselhou insistentemente Catarina a abolir a servidão. É claro que seus conselhos e planos não foram realizados. Desiludido e doente, regressou à França, onde morreu pouco depois. Pela audaz concepção do mundo, pela convicção sobre o caráter ilimitado do progresso humano e pela abnegação na defesa dos conceitos, exerceu enorme influência em seus contemporâneos.

"Os materialistas franceses, diz Engels, abrigavam esta convicção (sobre o caráter ilimitado do progresso de forma quase fanática), realizando em seu benefício, não poucas vezes, os maiores sacrifícios pessoais. Se alguém consagrou toda a vida à "paixão da verdade e da justiça" — tomando a frase no bom sentido, foi, por exemplo, Diderot"(67) (Ludorf, pág. 24).

As Teorias dos Materialistas Franceses Sobre a Matéria e o Movimento

O materialismo francês tem suas raízes científico-naturais em Descartes e Newton. Os materialistas franceses deram um grande passo à frente, em comparação com seus predecessores, Descartes, Spinoza, Toland, na compreensão do problema da matéria e do movimento. Spinoza, por exemplo, chamou a matéria de deus. Os materialistas franceses, em compensação, falam sempre, direta e claramente, de matéria. Tudo que existe é material; matéria é o que age sobre nossos órgãos sensoriais. O materialismo francês, em sua definição de matéria, supera a limitação de Descartes e Spinoza, que reduziram a matéria à extensão. Para os materialistas franceses, a extensão não é a própria matéria, mas apenas um de seus atributos. De forma exatamente igual resolveram o problema do tempo: o tempo é um atributo da matéria. Porém o espaço e o tempo são tratados pelo materialismo francês de uma maneira mecânica; em sua interpretação tomavam Newton como ponto de partida.

O materialismo francês considera a matéria, não como um corpo geométrico abstrato, como extensão abstrata, mas como realidade física concreta. A matéria compõe-se de partículas menores, moléculas e átomos. Fora dos corpos concretos não existe a matéria. Do ponto de vista dos materialistas franceses, os átomos são partículas homogêneas e indivisíveis da matéria. Diderot, contudo, emitiu o pensamento da multiplicidade e variedade qualitativa dos átomos. A afirmação da homogeneidade e indivisibilidade dos átomos é, evidentemente, mecanicista; porém nas condições do século XVIII era uma teoria progressista, posto que tendia a demonstrar a unidade do mundo. Neste mesmo sentido estava também orientado o reconhecimento, por alguns dos materialistas franceses, do caráter orgânico de toda a natureza. Segundo Robineau, a partícula básica da matéria é a "animálcula", um organismo pequeno, que primitivamente acha-se em estado de germinação latente e que depois se desenvolve em corpo adulto. Até certo ponto Diderot também compartilhava desse modo de ver. Para ele, a partícula elementar da matéria é uma molécula dotada de sensibilidade.

O maior mérito do materialismo francês está em que ele reconhecia a indissolubilidade entre a matéria e o movimento. O movimento é uma propriedade inalienável da matéria, não pode haver matéria sem movimento.

"Se me perguntarem onde apareceu o movimento na matéria, escrevia Holbach em seu "Sistema da Natureza", responderei que esta deve ter-se movido durante toda a eternidade, porque o movimento é o resultado necessário de sua existência, de sua essência, de suas propriedades primordiais, tais como a extensão, o peso, a forma, etc."

Toda a natureza é una e acha-se em movimento perpétuo e em ação recíproca universal.

O materialismo francês, porém, tratava o movimento sob um ponto de vista mecanicista. O movimento é um simples deslocamento mecânico no espaço. Só Diderot aproximou-se duma interpretação mais profunda da natureza do movimento. Distinguiu o movimento externo — o deslocamento no espaço —, e o movimento interno, o "esforço" oculto, molecular do corpo. Diderot escreve que

"a força que age sobre a molécula (ou seja, a força externa) esgota-se; a força inerente à molécula não se esgota, é imutável, eterna".

Refutou a divisão newtoniana das forças em ativas e passivas (segundo Newton, a gravitação é uma propriedade ativa da matéria, a inércia, uma propriedade passiva). Toda partícula material é ativa e acha-se numa ação recíproca universal com o resto da matéria.

"A molécula dotada da propriedade que lhe é inerente, diz Diderot, é por si mesma uma força ativa. Influi sobre outra molécula a qual por sua vez influi sobre a primeira".

Assim chegou Diderot a uma conclusão completamente justa: a de que o repouso é relativo e o movimento absoluto.

Os materialistas franceses, não obstante reconhecerem o movimento como atributo da matéria, não se elevaram à compreensão da ideia da evolução. A matéria acha-se em movimento perpétuo; o ser nasce e morre; porém consideravam este processo como um simples processo circular, de cujo resultado não resulta uma evolução. Os materialistas franceses não negavam as mutações que sucedem na natureza. Consideravam-nas apenas como aumento ou diminuição quantitativas das coisas, nas quais não se efetua nenhuma transformação qualitativa. Não compreenderam a evolução como movimento de formas inferiores e superiores, como geração de novas qualidades.

A incompreensão da ideia evolucionista obrigou alguns materialistas franceses a adotarem um ponto de vista hilozoísta (animação geral da natureza). Toda matéria possui sensibilidade, diziam. Entre a consciência de uma pedra e a de um homem, a diferença é apenas de caráter quantitativo. Esses pontos de vista foram sustentados por Lamettrie, Helvécio, Robineau.

"A sensibilidade, escrevia Robineau, debilita-se muito fortemente à medida que descemos do homem para a ostra. A sensibilidade das plantas é mais débil ainda; a dos minerais, ainda mais. Contudo não há um único ser na natureza que seja absolutamente destituído de sensibilidade".

Holbach inclinava-se a crer que a consciência é própria só de uma determinada forma da matéria orgânica. Mas interpretava como um acontecimento puramente causal o nascimento de tal organização da matéria capaz de engendrar uma consciência. No processo do movimento e da ação recíproca dos átomos formou-se uma tal combinação destes que começou a engendrar o pensamento. Esta coincidência pode não se repetir no transcurso de um tempo infinitamente longo.

Nesse problema Diderot elevou-se acima dos demais. A seu ver, toda a matéria é sensível, porém é preciso distinguir entre a sensibilidade inerte e a ativa. A sensibilidade ativa, diligente, manifesta-se abertamente; em troca, a inerte acha-se em estado potencial e manifesta-se abertamente só numa determinada forma da matéria organizada.

"Como a força viva, diz Diderot, manifesta-se pelo movimento, e a morta pela pressão, assim a sensibilidade ativa caracteriza-se no animal, e talvez também na planta, por estas e outras ações notáveis, e só é possível a pessoa convencer-se da existência da sensibilidade inerte quando esta passa para o estado ativo".

Lenin considerava estes pensamentos de Diderot uma conjectura genial que se aproxima do ponto de vista dialético-materialista sob a origem da consciência.

Entre alguns materialistas franceses há, pois, pontos de vista que- se aproximam da ideia de evolução. Assim, por exemplo, Lamettrie e Diderot acentuaram a unidade na organização de muitos seres vivos: pássaros, anfíbios, mamíferos e o homem. Esta unidade interpretam- na como originando-se no fato desses animais provirem de um antepassado comum. A seu ver, uma série de transformações inacessíveis conduzem, com o correr do tempo, a uma diferenciação pronunciada entre os animais.

Os materialistas franceses tentaram superar a crença, então vigorante, nas ciências naturais sobre a separação existente entre os três "reinos" da natureza. Supunham que, com o tempo, seriam descobertas as formas intermediárias entre esses reinos, o que conduziria à eliminação das facetas absolutas na natureza. Numa de suas primeiras obras, "Pensamentos Sobre a Interpretação da Natureza", Diderot escrevia:

"se a religião não nos houvesse ensinado que os animais saíram das mãos do criador tal como os vemos... o filósofo não poderia... supor que tudo o que vive tivesse desde tenra idade, elementos particulares, disseminados e mesclados na massa da matéria; que todos esses elementos se houvessem reunido casualmente... que o embrião formado desses elementos atravessou um número infinito de fases de evolução e de organização" até chegar ao homem.

Este caminho de evolução, segundo Diderot, é o seguinte:

"movimento, sensação, representação, faculdade de pensar, reflexão, consciência, sentimentos, paixão, signo, gesto, som, fala desarticulada, língua, lei, ciência e arte. Entre cada uma dessas fases de evolução escoaram-se milhões de anos... Todavia virão sucessivas fases de evolução para uma possível morte ou aniquilamento, ou para transição da forma atual da matéria para qualquer outra forma".

Nessas conjeturas isoladas, Diderot e Lamettrie colocam-se no ponto de vista dialético espontâneo, embora sem se emanciparem do mecanicismo. Reduzem as trocas qualitativas e quantitativas. Não admitem a evolução por saltos. Não puderam reforçar suas conjeturas e hipóteses com um material científico naturalista suficiente.

O mecanicismo impera também nas concepções dos materialistas franceses quanto à causalidade, à casualidade, à necessidade, à liberdade e às demais formas de relação universal. Mantiveram uma luta encarniçada contra a teleologia então imperante nas ciências naturais. Tiveram que opor a teleologia, segundo Spinoza, o princípio da causalidade mecânica como única forma de relação universal. Os materialistas franceses tratavam a causalidade exclusivamente como uma ação recíproca mecânica, como a transmissão do impulso duma molécula à outra. À correlação entre a causalidade e a casualidade era encarada por eles duma forma metafísica: à casualidade contrapunham a causalidade; consideravam a casualidade como uma incausalidade, e por este motivo, negavam-na. Posto que todo o mundo está causalmente condicionado, nada há casual, diziam os materialistas franceses. O resultado foi se colocarem no terreno do fatalismo. A liberdade, diziam, é apenas um fenômeno aparente. Cada passo do homem está tão pré-estabelecido como a conduta do átomo ou a da molécula. Diderot escrevia que a vontade não é menos mecânica do que a razão. Marx considera negação da atividade da consciência e da vontade humanas e, por isso, da contemplatividade, um dos defeitos principais de todo o velho materialismo.

O reconhecimento do movimento como força interna da matéria, a negação absoluta da teleologia, a interpretação de todos os sucessos do mundo sob um ponto de vista da causalidade e da necessidade mecânica, tudo foi ligado pelos materialistas franceses à negação completa de deus. Os materialistas mantiveram uma profunda luta de princípio contra a religião em geral, criando uma interpretação materialista pura do mundo. O ateísmo de Diderot e de Holbach foi um ateísmo militante. Plekhanov escreve que os materialistas franceses guilhotinaram deus, ao qual odiavam como a um inimigo pessoal, muito antes do invento do bom doutor Guillotin. Não era em vão que Lenin tinha em tão alto conceito suas obras antirreligiosas e insistia na necessidade de reeditá-las. Sem embargo, os materialistas franceses não souberam descobrir as verdadeiras raízes da religião. A seu ver, a religião provinha do erro, da ignorância, e a ilustração das massas podia destruí-la facilmente.

A Teoria do Conhecimento Segundo o Materialismo Francês

O ponto de partida dos materialistas franceses na teoria do conhecimento foi Locke, que considerava a sensação como fonte do conhecimento. Tiraram de Locke a interpretação materialista da sensação, rejeitando sua inconsequência idealista (o reconhecimento da experiência interna do "reflexo da alma"). O conhecimento é o reflexo do mundo objetivo na cabeça humana. O ponto de partida do conhecimento é a sensação como produto da influência da matéria sobre os órgãos dos sentidos.

"Conhecer qualquer objeto, diz Holbach, significa senti-lo".

Por conseguinte, a sensação reflete o mundo exterior. Para os materialistas franceses, a alma não é uma substância, mas um acúmulo de sensações.

"Todas as particularidades da alma, afirma Lamettrie, dependem da estrutura do cérebro e de todo o corpo".

Os materialistas franceses, porém, tampouco eram empíricos vulgares que negassem o valor do conhecimento racional. As sensações fornecidas pelos órgãos dos sentidos representam uma espécie de prova testemunhal. A razão, pois, intervém como um juiz que comprova a exatidão de tal testemunho. A razão não pode separar-se dos testemunhos sensuais, mas tampouco deve fiar-se excessivamente neles. A separação entre a razão e os sentidos torna impossível o conhecimento.

Os materialistas franceses reconheciam a cognoscibilidade do mundo. Não eram agnósticos. Plekhanov, e depois Deborin, referindo-se a expressões soltas das obras dos materialistas franceses, achavam que estes sustentavam ser impossível o conhecimento do mundo exterior. Lenin chamou de "mentirosa"(68) esta afirmação de Deborin, que ligou os franceses com Kant.

Os materialistas franceses acentuavam na realidade a imperfeição dos conhecimentos humanos só numa determinada etapa da evolução. Ligados estreitamente às ciências naturais, compreendiam que, embora a ciência ainda houvesse penetrado pouco na profundidade da natureza, teria de realizar ainda muitos esforços para submeter definitivamente a natureza ao homem. E não o agnosticismo ou o ceticismo, mas absolutamente o contrário, a fé inexpugnável na potência da razão humana, respiram nas seguintes palavras de Diderot:

"talvez a humanidade, conjugando esforços, consiga algum dia penetrar no próprio santuário da natureza e descobrir seus mistérios até agora ocultos obstinadamente às nossas investigações".

O mesmo dizia Lamettrie, demonstrando que nossas sensações põe-nos em relação com as coisas e não nos separam delas apesar da imperfeição dos órgãos dos sentidos.

"No fundo, escreve, os sentidos só nos enganam quando, apoiados neles, tiramos conclusões muito precoces; nos demais casos são servidores fiéis".

O materialismo francês manteve uma luta decidida com o idealismo. Diderot diz, criticando Berkeley:

"idealistas são os filósofos que, afirmando serem os únicos a possuir consciência de sua existência e das sensações internas relevantes, não admitem isto nos demais. É um sistema estranho que, segundo me parece, só pode nascer entre os cegos; sistema que, para vergonha da razão e da filosofia humanas, é o mais difícil de refutar, não obstante ser o mais absurdo de todos".

Diderot compara o idealista subjetivo com o

"piano presumido que imaginasse ter em seu bojo toda a harmonia do mundo".

Os Pontos de Vista Sociais dos Materialistas Franceses

Os materialistas franceses afirmavam que a consciência dos homens é determinada pelo meio que os rodeia. Todos os homens são, por origem, iguais e idênticos. A diferença intelectual e moral entre os homens provém da diferença de educação e de condições de vida. Para tomar o homem um ser moral e eliminar a delinquência é preciso criar um meio social, instituições sociais (Estado e Legislação), que inculquem nos homens bons costumes e não os empurrem para a delinquência. É necessário, portanto, uma transformação revolucionária das normas sociais existentes.

Em seus conceitos políticos, os materialistas franceses partiam das leis mutáveis da natureza, às quais também o homem está sujeito. A separação do homem da natureza, a falta de observância dos seus direitos naturais, ocasiona todas as desgraças sociais. Por isso, os materialistas franceses deduziam conclusões revolucionárias sobre a reconstrução da sociedade de acordo com as leis da natureza.

Os materialistas franceses idealizavam a sociedade burguesa com sua democracia exterior, com sua liberdade do homem, com sua livre concorrência. Apresentavam o direito à propriedade privada e os demais direitos burgueses como direitos naturais universais, próprios de todos os tempos e de todas as nações. A violação desses direitos, a violência feudal, era um fenômeno temporário. A tarefa da revolução não é a de fazer a sociedade marchar para a frente mas a de fazê-la volver ao "século de ouro" da humanidade.

Engels escreve sobre os conceitos ético-sociais do materialismo francês:

"Todas as velhas formas da sociedade e do Estado, todas as noções tradicionais foram reconhecidas como irracionais e refutadas como trastes velhos. Chegou-se à conclusão de que o mundo se tinha deixado governar só por puros preconceitos até então, e que todo o seu passado não merecia senão comiseração e desprezo. Agora, pela primeira vez, surgia o sol, aparecia o reino da razão e, dentro em pouco, a superstição e a injustiça, os privilégios e a opressão cederiam lugar à verdade eterna, à justiça eterna, à igualdade natural e aos direitos inalienáveis do homem.

Agora já sabemos que esse reino da razão não era outro senão o reino idealizado pela burguesia; que a justiça eterna se corporificou sob a forma da justiça burguesa; que a igualdade se reduziu à igualdade dos cidadãos ante a lei e, como o mais essencial dos direitos do homem, foi declarado o da propriedade burguesa. O "estado da razão" e o "contrato social" de Rousseau transformaram-se, na prática, como não podia deixar de ser, na república democrática burguesa. Os pensadores do século XVIII, da mesma forma que todos os seus predecessores, não podiam sair dos limites de sua própria época"(69).

Os materialistas franceses declararam a natureza e a ética independentes por completo e diretamente hostis à religião, sobre a qual se baseava a moral do feudalismo. A base da ética deve ser, não o ascetismo, mas absolutamente o contrário, a aspiração do homem ao prazer material, à felicidade.

"As emoções sensíveis e o amor próprio, o prazer e o interesse pessoal bem entendidos são os fundamentos da moral", escreve Marx sobre esse aspecto das doutrinas dos materialistas franceses(70).

Em vista de o homem viver na sociedade, seus interesses pessoais entram inegavelmente em contacto com os interesses sociais. As aspirações pessoais dos homens, se forem bem entendidas, coincidem com a utilidade da sociedade; por isso a moral é a ciência prática sobre as relações mútuas dos homens.

Alguns materialistas franceses aproximaram-se muito da interpretação do caráter histórico da moral. Helvécio, que, num grau maior que seus companheiros, aproximou-se do historicismo na interpretação dos fenômenos sociais, indicou que as noções do bem e do mal dependem da sociedade, da organização do Estado. Fez notar as trocas de conceitos da moral das diferentes nações em épocas distintas.

Na interpretação dos fenômenos sociais, os materialistas franceses continuaram sendo idealistas. A origem da sociedade foi considerada por eles como resultado de um acordo estabelecido entre os homens. A troca do regime social, segundo eles, depende da extensão da instrução e da luta contra os preconceitos.

Os materialistas franceses souberam descobrir a influência das superestruturas políticas, o Estado e o Direito, sobre a ideologia social, coisa que estava ligada à sua luta contra o regime feudal. Contudo, como ideólogos da burguesia, não souberam fazer uma análise mais profunda e descobrir o papel da base econômica e da luta de classes. Em consequência, caíram numa tautologia sem saída. Para transformar a consciência e o costumes dos homens é preciso modificar as instituições sociais, porém para modificar as instituições sociais é preciso transformar a consciência dos homens. Só tendo consciência do caráter irracional do regime existente, os homens podem derrubá-lo.

As doutrinas políticas e éticas dos materialistas franceses não deixaram de desempenhar por isso um extraordinário papel revolucionário. Marx e Engels acentuam, na "Sagrada Família"; que as exigências práticas dos materialistas franceses e suas doutrinas éticas se enlaçam com o comunismo utópico.

"Não é preciso maior sagacidade para descobrir a ligação que existe entre o comunismo e o socialismo e as teorias do materialismo sobre a inclinação inata para o bem, sobre a igualdade da capacidade intelectual dos homens, sobre a onipotência da experiência, do costume e da educação, sobre a influência das circunstâncias exteriores do homem, sobre o alto significado da indústria, sobre o direito moral ao prazer, etc. Se o homem extrai todos os seus conhecimentos, suas sensações, etc., do mundo sensível e da experiência que recebe neste mundo, é preciso organizar o mundo que o envolve de tal forma que o homem possa conhecer nele o que é verdadeiramente humano, que se habitue a educar em si as propriedades humanas. Se o interesse bem entendido é o princípio de toda a moral, é preciso procurar que o interesse particular do homem coincida com os interesses gerais da humanidade..." é preciso "...destruir as fontes antissociais da delinquência, e dar a cada um o espaço social necessário para suas manifestações essenciais na vida... Se o homem é por natureza um ser social, só em sociedade pode desenvolver sua verdadeira natureza, e é preciso não julgar o caráter dessa natureza baseado em indivíduos particulares, mas em toda a sociedade"(71).

Marx assinala que o socialismo utópico de Fourier, Owen, Cabet, o comunismo de Babeuf, partem desses conceitos do materialismo francês. Os próprios materialistas franceses, porém, não eram socialistas de forma alguma, nem sequer utópicos. Sua ideologia refletia de forma absoluta os interesses da classe que se elevava, — a burguesia revolucionária. A burguesia considerava-se então intérprete dos interesses da terceira camada, pois que na derrocada do feudalismo todo o povo estava interessado; por isso os ideólogos da burguesia revolucionária consideravam suas reivindicações como gerais, humanas, como "direitos naturais" dos homens.

Marx acentuou que o defeito fundamental de todo o velho materialismo (pré-marxista) consistiu em ter sido um materialismo contemplativo. Considerava a natureza contemplativamente, como objeto de estudo e não como objeto da prática humana. Estudava o mundo para conhecê-lo; Marx, em compensação, demonstrou que era preciso transformá-lo. A intervenção política ativa dos materialistas franceses não destrói o caráter contemplativo de seu materialismo. Este último era, no fundamental, uma corrente "ilustrada"; propunha-se à tarefa de "ilustrar" as massas, transformar-lhes a consciência e, desta forma, modificar as instituições sociais. Só o materialismo dialético de Marx e Engels pôde superar o caráter contemplativo do materialismo metafísico.


Notas de rodapé:

(40) Engels, Ludwig Feuerbach, páginas 20 e 21, versão espanhola, Moscou 1941. (retornar ao texto)

(41) Marx e Engels. A Sagrada Família. Obras, tomo III, página 157, edição russa. (retornar ao texto)

(42) Idem. (retornar ao texto)

(43) Engels. Anti-Dühring. Obras de Marx e Engels, tomo XIV, edição russa, página 21. (retornar ao texto)

(44) Marx e Engels. A Sagrada Família. Obras, tomo III, edição russa, página 157. (retornar ao texto)

(45) Marx. O Capital, página 407, versão espanhola, "Cenit", 1934, Madrid. (retornar ao texto)

(46) Marx e Engels. A Sagrada Família. Obras, tomo III, página 154, edição russa. (retornar ao texto)

(47) Engels. Dialética da Natureza. Obras, tomo XIV, páginas 426-427, edição russa. (retornar ao texto)

(48) Marx e Engels. A Sagrada Família. Obras, tomo III, página 155, edição russa. (retornar ao texto)

(49) Idem, página 168. (retornar ao texto)

(50) Lenin. Cadernos Filosóficos. Edição russa, página 77. (retornar ao texto)

(51) Idem. Página 80. (retornar ao texto)

(52) Marx e Engels. Obras, tomo XVIII, página 279. Edição russa. (retornar ao texto)

(53) Lenin. Materialismo e Empírio-Criticismo. Edição russa, página 103. (retornar ao texto)

(54) Engels. Anti-Dühring. Obras, tomo XIV, página 21. Edição russa. (retornar ao texto)

(55) Marx e Engels. A Sagrada Família. Obras, tomo III, página 158. Edição russa. (retornar ao texto)

(56) Idem, página 158. (retornar ao texto)

(57) Marx e Engels. Obras, tomo I, página 64, edição russa. (retornar ao texto)

(58) George Berkeley. Tratado (1) Sobre os Princípios do Conhecimento Humano. Edição russa, 1905, Capítulo 96, página 131. (retornar ao texto)

(59) Solipsismo das palavras latinas ‘‘solus ipse" — "só mesmo". (retornar ao texto)

(60) Marx e Engels. Obras, tomo XIV, página 244, edição russa. (retornar ao texto)

(61) Idem, página 243. (retornar ao texto)

(62) Hume. Investigações Sobre o Entendimento Humano. Edição russa, 1902, página 18. (retornar ao texto)

(63) Citado por Lenin. Obras, tomo XIII, página 27; ver também Hume. Investigações Sobre o Entendimento Humano. Edição russa, página 178. (retornar ao texto)

(64) Lenin. Três origens e três partes integrantes do marxismo. Obras escolhidas, tomo I, versão espanhola. Moscou 1941, páginas 53 e 54. (retornar ao texto)

(65) Marx e Engels. A Sagrada Família. Obras, tomo III, páginas 153 e 154, edição russa. (retornar ao texto)

(66) Idem, página 154. (retornar ao texto)

(67) Engels. Ludwig Feuerbach, página 24. Versão espanhola, Moscou 1941. (retornar ao texto)

(68) Ver Lenin. Cadernos Filosóficos. Edição russa, página 414. (retornar ao texto)

(69) Engels. Anti-Dühring. Obras, tomo XIV, páginas 17 e 18, edição russa. (retornar ao texto)

(70) Marx e Engels. A Sagrada Família. Obras, tomo III, página 159, edição russa. (retornar ao texto)

(71) Idem, página 160. (retornar ao texto)

Inclusão 28/11/2015