Lutas de Classe em Portugal de 25 de Abril a 25 de Novembro
(e suas Relações com as Lutas de Independência na África)

Partido Comunista Internacional


Farsa Portuguesa, Tragédia Africana


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Um sexto da superfície da França; uns 8 milhões de habitantes; uma população ativa de 3 milhões de pessoas; 2 milhões de operários que emigraram para não morreram de fome; uma agricultura favorecida pelas ótimas condições naturais, mas atrasada devido a falta de equipamento; uma indústria raquítica e concentrada essencialmente em Lisboa; uma economia nas mãos de 8 grandes grupos financeiros; uma renda média que oscila era torno de 300 dólares anuais por habitante (a mais baixa da Europa, menos da metade da renda média na Espanha, o que já diz tudo!); um aumento dos preços que atingiu 21% em 1973: eis, em poucas palavras, o Portugal que acaba de sair de 40 anos de ditadura.

Uma ditadura bitolada, mais conservadora e corporativa que propriamente fascista no sentido estrito do conceito, que, por um lado, não possuía aquele quê de "empresarialismo" dos tecnocratas espanhóis e que, por outro lado, não conheceu a tenaz e incansável resistência operária clandestina que, apesar da tremenda sangria da guerra civil, nunca cessou de perturbar o sono de Franco.

Mas, por detrás dessa Gata Borralheira da Europa "civilizada" que a ultrademocrática a superindustrializada Inglaterra (ironia da história!) sempre considerou como sua protegida, há um imenso império colonial, o único que subsistiu depois dos acontecimentos do segundo pós-guerra: a enorme Angola, com seus 1,25 milhões de km2 e 6 milhões de habitantes, dos quais no máximo 400 mil são portugueses; o vasto Moçambique, com 730 mil km2 e 7 milhões de habitantes, dos quais apenas 100 mil são portugueses; a pequena Guiné-Bissau, com 36 mil km2 e 500 mil habitantes; mais algumas ilhas e territórios menores. Um império dotado de imensas riquezas agrícolas (café, cacau, algodão, cana-de- açúcar, amendoim) e minerais (fosfatos, cobre, zinco, urânio, bauxita, níquel, diamante, ouro), em que prosperam grandes companhias multinacionais e em que, por um salário de forno os nativos, tratados como bestas de carga, são sugados ate a última gota de seu sangue e de seu suor. Em poucas palavras, um paraíso para os capitalistas de meio mundo e para a "alta sociedade" que se bronzeia ao sol dessas benditas plagas, um inferno para as plebes exploradas e miseráveis.

Que aconteceu no dia 25 de abril, que veio perturbar os doces sonhes dos lusitanos e encher de entusiasmo uma democracia internacional reduzida, era sua impotência senil, a confiar as pálidas flamas de seu renascimento a generais e coronéis (de preferência, ex-franquistas, ex-nazistas e ex-massacradores de infortunados negros) tocados repentinamente pela graça divina no caminho de Lisboa, como outrora no de...Compostela ? Não foi, como pretendem em sua gritaria demagógica os partidos da oposição, que reapareceram à luz do dia por decreto da junta militar, não foi um movimento interno de renovação, ainda que timidamente democrático. A grande pedra no caminho do salazarismo, que o fez finalmente cair, foi a indomável guerrilha desencadeada a partir de 1959-61 primeiro na Guiné-Bissau, depois em Angola e em Moçambique, por todos aqueles que, sem pretender construir o socialismo, lutam (e não com palavras!) pela almejada independência nacional. Uma guerrilha que o exército metropolitano de 400 mil homens (quase 1/20 da população portuguesa, contando com mulheres, velhos e crianças), que se alternam em tropas de 150 mil nos territórios coloniais, um exército que absorve 50% do orçamento do Estado e que traz marcada em sua fronte a "vergonha suprema" de 100 mil desertores, não tinha conseguido e não consegue domar, nem mesmo com bombas de napalm e massacres no melhor estilo colonial anglo-franco-belga da "belle époque". Uma guerrilha que não só ameaçava esgotar completamente a metrópole, como também provocar a perda do império, seja graças aos formidáveis golpes dos insurretos, seja através da ávida intervenção de rodesianos, sul-africanos e brasileiros (e viva a fraternidade luso-brasileira!), agindo por conta própria ou de terceiros (adivinhem de quem!).

Era preciso tentar salvar o que podia ser salvo, antes que fosse tarde demais. Não foi sem nostalgias degaullistas de primeiro tipo, mas cuidando em não cair na "descolonização à De Gaulle" (Le Figaro, 23/4/74), que o ex-massacrador Spínola e seus colegas lançaram o plano de uma União portuguesa "multi-racial" e federal, em que os massacrados conviveriam em doce harmonia com seus algozes seculares, em que as caixas-fortes de Lisboa se encheriam novamente de escudos "limpos" e em que a "missão cristã e civilizadora" dos descendentes de Camões tornasse a velar com suas brancas asas sobre territórios tão distantes entre si como as costas do Atlântico Sul e o Oceano Índico, territórios cujos habitantes, apesar de terem a "infelicidade” de serem de pele negra, têm, porém, o incomparável privilégio de falar português. O preço a ser pago para virar a casaca e passar do estilo colonial puro ao estilo neocolonial era a volta da pátria-mãe lusitana ao constitucionalismo liberal-democrático.

É esse o significado do 25 de abril português, desse dia em que o "regime" desaparece ao toque da varinha de condão de Spínola, as prisões se abrem, as insígnias à lapela desaparecem, as pessoas abraçam-se nas ruas (a burocracia permanece em seus postos, mudando apenas o retrato oficial nas repartições); em que gritam-se os lemas fatídicos de "a guerra continua!" e "abaixo os extremistas, que fazem o jogo da reação!" e em que todos os partidos, dos liberais aos socialistas, dos conservadores aos comunistas — a Igreja abençoando a todos do alto dos céus ou, antes, de baixo de suas férteis terras —, precipitam-se em colocar-se à disposição dos puríssimos heróis de um exército que tornou-se novamente sensato em nome da civilização, dos direitos do homem, das reformas e de uma eventual;..via lusitana ao socialismo.

Reivindicando, sem sombra de hesitação, o direito e a honra de colaborarem com o ex-voluntário franquista Spínola, os partidos que se dizem "representantes do proletariado" foram ouvidos: seus ministros foram admitidos no seio de um verdadeiro governo de salvação nacional, que sabe manifestamente utilizar as aptidões dos mesmos, já que o ministério do trabalho foi confiado a um "comunista" (sábia medida, pois, como nos faz saber Le Monde de 13/5/74, o PCP esforça-se em moderar as reivindicações operárias que irrompem por toda parte). Esses pretensos "socialistas" e "comunistas" precipitam-se num governo cujo programa é o do "movimento das forcas armadas", do qual os civis só conhecera as declarações de Spínola. E fazem-no justamente no momento em que esse último explica que, em relação às colónias, poder-se-á falar no máximo de autodeterminação (no âmbito, é claro, da União multi-racial e federal) quando as populações subjugadas tiverem adquirido "uma preparação suficiente" (ver Le Figaro de 30/4/74) que hoje não possuem e que a "civilização" superior da metrópole deverá ter a suprema bondade de proporcionar-lhes; no momento em que Spínola e seu vice Costa Gomes pedem aos guerrilheiros da FRELIMO, do MPLA e do PAIGC (que já constituiu, na Guiné, uma república "volante") para "saírem a céu aberto e deporem as armas incondicionalmente, caso contrário a guerra será intensificada" (Corriere della Sera, 12/5/74), já que, para os eminentíssimos generais de Lisboa, a "solução política", como eles dizem, do angustiante problema colonial consiste em que os "rebeldes" devem autodesarmar-se frente à "autoridade legitima", armada, ela, até os dentes; no momento em que a Junta clama contra os "extremistas irresponsáveis" no continente, no que todos, em coro, lhe dão razão.

Assim, Mário Soares exprime ter "toda confiança no exército" (Le Figaro, 3/5/74), preparando-se evidentemente para reencarnar Allende e o socialismo na ponta das baionetas de um exército reconvertido. Assim, Cunhal e seu partido saúdam "calorosamente as forças armadas, desejando que seja realizada a mais sólida unidade das forças democráticas, a aliança das forças populares e militares contra o aventureirismo de esquerda" que pode abrir facilmente o caminho à repressão e "frear o processo de união entre o povo e as forças armadas" (L'Humanité, 29/4/74).

Não satisfeitos com isso, exortam, num ignóbil apelo, os desertores a apresentarem-se "imediatamente a seus quartéis", já que "o afluxo de quase 200 mil jovens que recusaram-se a participar das guerras coloniais (que entrementes continuam!) fortaleceria a possibilidade de renovação democrática e a vigilância das forças armadas (!!!) contra toda tentativa de desforra fascista", já que os militares "representam uma corrente revolucionária democrática" e a aliança com eles — como repetia a três por dois o falecido Allende — "é a chave da vitória definitiva" (entrevista concedida ao Unità de 3/5/74)!

E o que é que esses "socialistas" e esses "comunistas", para não falarmos de seus colegas da "esquerda católica", oferecem aos povos coloniais? Algo do diferente do que oferece Spínola, quem sabe? Que nada! O que lhes propõem é um "debate em torno desse problema crucial da vida nacional" e a abertura de "negociações imediatas" em vista, sim, da "independência completa" mas no terreno democrático do "diálogo", da diplomacia, do abraço fraterno; em poucas palavras, mais uma vez do autodesarmamento dos rebeldes (entrevista de Cunhal ao Humanit é de 23/4/74)! Não é por nada que Mário Soares declarou considerar os "comunistas" como um "partido de portugueses (ou seja, de patriotas) como nós", dignos de figurar numa "ampla frente popular, que englobe também liberais e católicos" para "combater as forças económicas ainda poderosas" (L'Humanité, 3/5/74). E tudo isso com a bênção dos bispos, também tocados pela graça divina e reunidos em Fátima para exortar os fiéis "e todos os outros portugueses de boa vontade" a darem prova de sua virtude cívica apoiando a Junta.

Que importa aos "representantes dos trabalhadores" que Spínola, presidente da República e chefe do exército que se democratizou, tenha-se comprometido solenemente a respeitar as ligações internacionais do "velho" Portugal e, em particular, a não sair da OTAN? Numa época em que Kissinger e Gromiko intercambiam seus papéis na peça da "pacificação" do Oriente Médio, uma pedra "comunista" até que fica bem na coroa dos neocolonialistas de monóculo, "heróis lúcidos de um exército cansado de sacrifícios inúteis", na expressão do jornal da grande burguesia francesa, Le Figaro de 26/4/74, os quais só anseiam por uma coisa: dobrar, com o ramo de oliveira das "negociações de paz", aqueles que os canhões e o napalm não tinham conseguido dobrar!

Até agora (meados de maio de 1974), os movimentos armados de libertação nacional responderam que não querem saber de cândidas pombas da paz, nem de ramos de oliveira: resposta digna de um passado feito não de negociações pacíficas, mas de lutas sem quartel. Para esses movimentos também a guerra continua (e nós os saudamos com entusiasmo). Se porventura vierem a ceder, seguindo o exemplo de equívocos movimentos coloniais moderados, como o GUMO de Moçambique, que se apressou a propor a Lisboa "o diálogo no seio das instituições legais criadas pela Junta" (Le Monde 4/5/74), ou sob a pressão reacionária da Rodésia e da África do Sul, ou ainda por seu isolamento trágico ter esgotado suas forças levando-os a sentarem-se à mesa de negociações, verdadeira armadilha para eles, caminho esse que o PAIGC parece tomar; se isso acontecer, a culpa será dos que, fazendo-se torpemente passar por socialistas ou até por comunistas, só têm olhos para a pátria e para a democracia, e que, em nome dessas divindades burguesas, estão prontos a porem-se a servido do primeiro Spínola que aparecer, convencidos de que este será tão fiel à "liberdade reencontrada" como ontem tinha sido a Salazar.

Quando Carlos Altamirano, o líder socialista chileno escapado dos massacres que tiveram por cena seu país, declarou que os teóricos e os "práticos" da via pacífica ao socialismo nunca mais cometeriam o erro de depositar sua confiança no exército — as armas alheias —, em vez de empunhar armas suas, nós lhe respondemos:- são "erros que vocês sempre farão", justamente porque não se trata de uma escolha pessoal, mas porque os caminhos, uma vez tomados, agem como inexoráveis determinações objetivas e materiais. Se Portugal continuar a seguir o mesmo caminho que hoje segue — a Junta à frente, os socialistas, comunistas, católicos e "progressistas" atrás —, não é difícil prever uma espécie de allendismo bendito por um exército pronto para sacar, se preciso for, de um seu Pinochet nacional e, enquanto isso, a ir massacrando os africanos com democraticíssima metralha. O que viria a ser o enésimo troféu conquistado pelas vias nacionais, democráticas e pacíficas ao socialismo...

(Il Programma Comunista, nº 10, 18/5/74
Le Prolétaire, nº 173, 20/5 — 2/6/74)


Inclusão 25/04/2019