As Lutas dos Moradores e a Constituição de 1976

Amadeu Lopes Sabino, Saúl Nunes, e Luis Felipe Sabino

1977


II. O INSTITUTO DO ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO FACE À NOVA ORDEM JURÍDICO-POLÍTICA

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ORDEM PÚBLICA E DIREITO À HABITAÇÃO

Transcrição das alegações da parte apelante nos autos de recurso cível n.º 17.104 da 3.º Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I

A transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista traduz-se, ao nível da instância jurídica, no aparecimento do «sujeito jurídico».

É à economia mercantil e monetária, cujo campo se alarga e aprofunda nos séculos XV, XVI e XVII, que dá origem ao sujeito jurídico.

As condições em que, como necessidade histórica, surge este conceito são as do desenvolvimento, no seio da sociedade feudal, das forças que haveriam de conduzir à destruição desta sociedade 20 e à sua substituição por uma sociedade de tipo novo — a sociedade capitalista.

À produção e circulação de mercadorias, não já para um círculo fechado mas para um mercado anónimo e, por vezes, distante, corresponde no plano do direito, o delinear da figura do sujeito jurídico que se relaciona com os outros sujeitos jurídicos — doravante iguais como ele perante a lei — com os quais compra, vende, contrata, etc.

A implantação e desenvolvimento do modo de produção capitalista carece de «liberdade» para todos os homens sem distinção de origem de classe ou de religião. Todos estes problemas a revolução capitalista pretende marginalizar — não existem homens mas apenas cidadãos iguais em direitos e deveres, com livre vontade de escolha: apenas os liga o dinheiro e por causa dele contratam. Todos eles têm a mesma possibilidade de enriquecer e de empobrecer.

Os burgueses ingleses compreenderam esta «necessidade de liberdade» muito cedo — à «tirania» dos Tudors e Stuarts sucede a Revolução. (1640 e 1688) e a esta o «regime de liberdade»; num ápice, as questões religiosas que tantas mortes causaram são relegadas para a prateleira quando, já na segunda metade do século XVII, é decretado o princípio da tolerância religiosa; o que significava que cada um podia ter a religião que quisesse desde que isso não fosse obstáculo à relacionação com os outros, ou melhor, desde que tal 21 não fosse impedimento à livre circulação de mercadorias.

Os caracteres gerais do modo de produção capitalista podem assim ser encontrados no país que fez a primeira revolução burguesa — a Inglaterra: igualdade perante a lei, atribuição do poder legislativo a uma câmara representativa, liberdades cívicas...

É esta a ordem pública que, como já se referiu, explica e justifica o sujeito jurídico, sendo esta categoria fundamental que permite ocultar os conflitos de classe ou trazê-los deformados e diluídos aos processos judiciais e aos tribunais.

Esta concepção (a do sujeito jurídico com a sua capacidade de auto-determinação) serve de base à crítica feita pelo marxismo à ideologia burguesa da liberdade, da igualdade, da fraternidade e da democracia formal, a democracia em que a «república do mercado» mascara o «despotismo da fábrica» (Pasukanis, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, Centelha, Coimbra).

Todo o edifício jurídico é construído sobre o sujeito jurídico: o direito privado regula os contratos, os deveres e obrigações dos sujeitos; o direito do trabalho regulamenta as relações entre sujeitos iguais pois que o que o patrão tem não tem o trabalhador, e vice-versa; o direito penal disciplina a actividade dos sujeitos perante o Estado (entidade 22 e árbitro acima das classes); o direito processual peneira os conflitos apenas deixando chegar ão momento fundamental da actividade judicial (julgamento e sentença) o que é «pertinente» e tem a Ver com a «relação material controvertida» e nada mais, etc.

Todos estes elementos podem ser observados no ordenamento jurídico português, como ordenamento que é de uma formação social capitalista.

No ponto concreto que mais directamente nos interessa nos presentes autos de despejo, veja-se como o direito do inquilinato é erigido na nossa lei — «Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição (art.º 1022 do Código Civil; os sublinhados são meus).

Na verdade resume esta disposição o ponto de vista do direito capitalista sobre as relações entre senhorio e inquilino — «as partes» — que «trocam» uma coisa (igual a tantas outras que existem no comércio jurídico) por dinheiro (art.º 1089 do Código Civil) pago em prestações.

Esta concepção do contrato de arrendamento não nasceu com o regime implantado em 28 de Maio de 1926, sucedendo sim que a ordem pública do fascismo deu novo vigor a um contrato em relação ao qual o primeiro regime republicano interviera em defesa de um dos contraentes — o locatário ou inquilino.

Com efeito, os princípios vigentes na ordem pública 23 republicana — sendo esta resultante dos conflitos sociais que em vários planos então ocorreram — traduziram-se em intervenções do Estado no problema da habitação, mediante diplomas aos quais passarei a referir-me.

II

Em 30 de Março de 1919, toma posse em Lisboa o governo republicano chefiado pelo democrático Domingos Pereira, contador no Tribunal da Boa-Hora. Pouco antes caáira à resistência monárquica de Monsanto e a rebelião do Porto.

Foi neste ambiente de ascenso da luta de classes em Portugal que viu a luz do dia o importante Decreto n.º 5.411 de 17 de Abril de 1919, que reunia a legislação relativa ao arrendamento de prédios urbanos e rústicos.

Meses antes, em Novembro de 1918, fracassava a greve geral contra a carestia de vida, decretada pelos sindicalistas portugueses em 18 daquele mês.

«A greve geral, ao fracassar, tinha dado ao governo ditatorial o pretexto para tentar exterminar o sindicalismo, mas tinha, por outro lado, permitido ao movimento operário um sério esforço organizativo, um alargamento da sindicalização, uma perspectiva mais larga sobre os objectivos da luta. A greve de 1918 marca um período de transição entre o crescimento tumultuoso e desorganizado do 24 movimento operário sindicalista e a sua estabilização organizativa no período de apogeu revolucionário que se atinge em 1919». (José Pacheco Pereira, As lutas operárias contra a carestia de vida em Portugal — A grêve geral de Novembro de 1918. Textos de Apoio, Porto, 1971)

III

Como se disse, foi este o clima social que presidiu à publicação do Decreto-Lei n.º 5.411.

A condensação legislativa, operada por este diploma, tinha para os locatários a vantagem de melhor condução da sua luta no plano legal, visto o fácil acesso — porque reunida num só texto de lei — à matéria reguladora do inquilinato e habitação. Veja-se outra perspectiva sobre a compilação (no Código Civil vigente) da matéria do inquilinato em Antunes Varela. (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 161 pág. 37.)

Evitava-se, pois, em parte, a. possibilidade, de o locador ou senhorio lançar mão de disposições legais que os locatários (na sua esmagadora maioria trabalhadores sem qualquer preparação jurídica e sem capacidade económica para se socorrerem de juristas) desconhecessem.

Os direitos e deveres das partes eram, pois, os constantes daquele diploma, exprimindo o seu 25 artigo 3.º o importante princípio de se considerarem «nulas e de nenhum efeito quaisquer cláusudas insertas, de futuro, nos contratos de arrendamento, que contrariem ou inutilizem as garantias que nesta lei se concedem aos senhorios, arrendatários e sublocatários».

Disposições que igualmente favoreceram, então, os locatários são as do artigo 106.º — proibição de aumento de certas rendas ainda que com o consentimento do inquilino e renovação obrigatória dos arrendamentos urbanos, mesmo que ao senhorio não conviesse a continuação do arrendamento —, a do artigo 110.º que proíbe ao senhorio e ao arrendatário sublocador, a título de cedência de chave, ou qualquer outro, receber recompensa ou outra remuneração, para além da renda; a do artigo 113.º que estabelece a presunção juris et de jure de que o consentimento do locatário foi extorquido por coacção pelo locador nos contratos em que se mostre haver fraude às disposições do referido decreto-lei; a do artigo 115.º, que declara sem efeito. certos aumentos de renda.

Quanto aos fundamentos de despejo — índice relevante — fixou o Decreto-Lei n.º 5.411, entre outros, o da falta de pagamento de renda. É em torno deste motivo que se reflectem muitos dos avanços e recuos, força e debilidade das movimentações populares, contra a carestia de vida, de que a habitação é um dos elementos.

O Decreto-Lei 5.411 dispôs, em certos pontos, 26 favoravelmente às massas trabalhadoras mas, em outros, expressou-se iniludivelmente em favor dos detentores da propriedade, dos locadores, até porque os governos republicanos buscavam o «entendimento» entre os «parceiros sociais». É neste último sentido que deve ser entendida a manutenção do fundamento «falta de pagamento de renda» que vinha já do Código Civil de 1867. Assim, pois, se reproduzem num texto legal as contradições da vida material, facto que é inevitável e acontece em todos os momentos da produção legislativa.

IV

Em 7 de Julho de 1924 é constituído o governo chefiado pelo oficial de Marinha e membro do partido democrático, Rodrigues Gaspar. Era então Presidente da República Manuel Teixeira Gomes.

Um autor, de declarada e assumida simpatia para com o «Estado Novo» (Jesus Pabon, «A Revolução Portuguesa», Porto 1961) descreve assim aqueles tempos:

«A desordem alcança agora um dos momentos culminantes. O voo Lisboa-Macau, que os aviadores Sarmento Beiras, Brito Pais e o mecânico Manuel Gouveia realizam é a única acção luminosa no decurso sombrio destes dias. A greve geral de funcionários civis, a dos transportes urbanos de Lisboa, e a dos Correios e Telégrafos desorganizam 27 a vida portuguesa. As Juntas de Paróquia iniciam uma manifestação contra a carestia de vida substituindo as bandeiras nacionais por bandeiras negras e sendo o cortejo dominado pelas organizações operárias subversivas (...)».

(...) «O Governo (de Rodrigues Gaspar) arrasta uma vida miserável, entre bombas e tiros, no meio de conflitos armados de força pública, fazendo frente a várias tentativas radicais que o descontentamento fomenta» (...)

É nesta situação instável, ou de «crise de autoridade» segundo alguns autores, que, em 4 de Setembro de 1924 é publicado outro diploma fundamental em matéria de habitação — a Lei n.º 1.662.

Produto do seu tempo, em que subiam de tom os ataques da direita contra o regime, também este diploma procurou satisfazer gregos e troianos.

A desvalorização monetária posterior à guerra de 14-18 e ainda a proibição constante do art.º 106.º do Decreto-Lei 5.411, acima aludido, explicam o recurso amplo, por parte dos locadores, a acções de despejo imediato entre as quais figuravam as que se fundavam na falta de pagamento de renda.

A Lei n.º 1.662 admitiu a instauração e prosseguimento das acções de despejo com. aquele fundamento — tal como no domínio do Decreto-Lei 5.411 — mas com algumas especialidades formuladas por via de excepção (8 1.º do art.º 5.º).

A proibição de despejos constante do corpo do. art.º 5.º tinha inúmeras excepções que figuravam 28 a seguir, entre as quais, como já referi, a do fundamento da acção ser a falta de pagamento da renda.

Reflexo das contradições da vida material na formulação das leis é a inserção de «princípios gerais» seguidos de «excepções». É uma forma de «conciliação» a que governos conciliadores como foram os da I República recorriam com frequência.

V

Muitas contradições tiveram uma «solução» de direita com o 28 de Maio de 1926. A intervenção estatal adquire então uma orientação reaccionária, recuperando para o senhorio algumas das faculdades (que o anterior regime restringia) com o fim de «restabelecer a ordem».

As relações entre senhorio e inquilino readquirem a forma de relações contratuais normais, i. e., como se de um vulgar contrato se tratasse: algum significado teria a não inclusão, na Constituição de 1933, do direito de habitação, ao passo que o direito de propriedade era reconhecido como direito fundamental (n.º 15 do art.º 8.º).

A propriedade, que as lutas populares da época anterior tinham atingido, readquire a sua posição: as normas que a limitam têm carácter excepcional.

Era a ordem pública do fascismo que inaugurava o 29 seu período de regime anti-democrático e anti-popular.

Textos posteriores à Lei n.º 1.662 de 1924 alargaram os fundamentos de despejo.

Como produto da «Nova Época» surgem diplomas que, parcelarmente, vão alterando a matéria de arrendamento. É assim que surgem o Decreto n.º 13.980 de 25 de Julho de 1927, o Decreto n.º 15.076 de 14 de Janeiro de 1928, o Decreto n.º 15.289 de 30 de Março de 1928...

O Código do Processo Civil de 1939 vem reduzir termos processuais e acelerar prazos, indicando o processo sumário como o meio processual próprio para.o locador obter a cessação do contrato — a celeridade processual interessa sobremaneira ao senhorio.

Enfim, a. Lei n.º 2.030 publicada três anos depois do termo da Il Guerra Mundial — em 22 de Junho de 1948 — na altura em que o regime se encontrava mais forte para realizar uma remodelação da legislação sobre inquilinato, vem permitir as «actualizações de rendas» e derrogar o princípio da redução a escrito dos contratos, entre outras disposições.

O Código Civil vigente veio recolher a «lição» da Lei n.º 2.030.

O que a lei começara a jurisprudência conclui — a interpretação das normas sobre inquilinato, guiando-se pela reconstituição do pensamento do «legislador», adoptou uma atitude de estática e de regresso às origens.

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VI

O papel do intérprete da lei e, principalmente, do que à vai aplicar ao caso concreto, pode ser progressista ou conservador. Não existe um intérprete neutro.

Os princípios gerais reinantes em dado momento de uma formação social concreta também comandam o intérprete que, em muitos casos, se socorrerá dos critérios actualistas que lhe proporcionam os artigos 9.º e 10.º do Código Civil actual.

Decerto que terá influído bastante na interpretação de certas disposições legais uma afirmação como esta, constante do relatório de apresentação do projecto do Código Civil, elaborado pelo Ministério da Justiça em 1966: (...) «Não vai (o Código), porém, até ao extremo absurdo de proclamar a igualdade jurídica dos cônjuges, a qual acabaria por destruir a necessária unidade da família» (...).

Quão longe estamos hoje de tal «absurdo» que os teóricos do Código Civil actual apresentavam como verdade imutável e universal!

E se hoje tal disposição tem para nós um significado de peça de museu é porque as condições sociais se alteraram — os princípios vigentes, a ordem pública hoje em Portugal são radicalmente diversos dos que presidiram à à elaboração do Código Civil em vigor.

Como já se referiu, a jurisprudência, neste campo do inquilinato, serviu de «travão» a qualquer 31 interpretação da lei que não fosse a mais difundida.

E não se diga que a função do juiz é é exclusivamente a de aplicar a lei ao caso concreto, pois que os textos legais, por muito minuciosos que o sejam, jamais contemplam toda a realidade que visam regularmentar.

O juiz tem muitas vezes que colmatar as lacunas da lei, actuando então como verdadeiro criador. Esta intervenção do juiz pode verificar-se de várias formas:

E a actividade criadora do juiz está perfeitamente resumida no n.º 1 do art.º 8.º do Cód. Civil

— «O tribunal não pode abster-se de julgar, invocando à falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio». É pois o próprio direito positivo que impõe ao Juiz a tarefa de participar na criação da lei.

E este papel criador de direito assume relevo excepcional em períodos revolucionários — assim em Portugal onde houve um processo revolucionário a seguir ao 25 de Abril de 1974.

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Nestes períodos, como em Portugal, a legalidade tradicional é recusada — as massas populares reconhecem nessa legalidade tudo aquilo que sempre as prejudicou: a burocracia infindável das repartições, os despejos, as caixas de previdência, os despedimentos, etc.

Por contraponto surge uma legalidade» paraleia ou um conjunto de convicções para-legais mais ou menos difundidas: citem-se dois exemplos: muitos moradores iniciaram a partir de certa data, e por variadíssimas razões, o depósito sistemático de rendas na Caixa Geral de Depósitos inteiramente à revelia da lei tradicional, crendo com isso que estavam a actuar de acordo com uma lei; também a partir de certo momento, verificou-se nos centros urbanos grande vaga de ocupações de fogos, julgando os ocupantes que estavam a exercer um direito reconhecido por uma lei.

(Algumas destas ocupações, aliás vieram a ser reconhecidas como facto consumado pelo Decreto-Lei n.º 198-A/75 de 14 de Abril).

Por seu lado, os tribunais encarregados de aplicar a lei tradicional deparam-se com uma realidade inteiramente nova e que aquela lei não podia de modo algum prever, quer por

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estando aí o ponto de possíveis fracturas.

Está aí também o ponto em que uma actividade jurisprudencial inteligente e progressista pode recuperar para os tribunais o respeito que se pretende seja devido às suas decisões...

A jurisprudência — essa «legalidade quotidiana» — pode ser na mão dos nossos julgadores um instrumento de progresso; entre a lei e o facto o juiz é chamado muitas vezes a assumir um «compromisso» que se guia mais por um sentido de «oportunidade» do que de legalidade estrita.

O juiz vê que a composição dos interesses terá de ser feita em favor da parte mais débil porque, por exemplo, será levado a escolher entre o princípio, consagrado na lei (n.º 1 do art.º 406.º do Cód. Civil), segundo o qual os contratos devem ser pontualmente cumpridos, e os ditames da ordem pública e dos bons costumes, usando, para integração destes dois conceitos, da sua capacidade criadora e de investigação da realidade social.

A jurisprudência, pois, não se pode limitar à observação estática da relação lei-facto, a qual deve ser interpretada em função da realidade que se destina a regular.

Como se disse, o período subsequente ao 25 de Abril sensibilizou mais este papel de charneira da jurisprudência. Os tribunais foram chamados a pronunciar-se sobre questões inteiramente novas que, nos tempos do anterior regime, tinham um tratamento meramente policial, por vezes.

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Veja-se o caso das centenas de ocupações de fogos e empresas «e a redução unilateral de rendas especulativas por parte de centenas de moradores (Quinta dos Cedros em Oeiras, Sacavém, Setúbal, etc.).

Esta irrupção popular nos domínios que anteriormente pertenciam em exclusivo a patrões e senhorios alterou, substancialmente a ordem pública tradicional; hoje a ordem pública vigente — os princípios de relações sociais vigentes — ressumam imediatamente da Constituição Política de 1976, os quais não podem ser derrogados por qualquer lei ou contrato.

Entre esses princípios figuram o do direito a habitação condigna com uma renda não especulativa (art.º 65.º) e o do desenvolvimento pacífico do processo revolucionário (art.º 10).

Face a estes princípios de ordem púbiica — entendida esta não no sentido meramente policial de «ordem nas ruas», como era hábito fazer-se antes de 25-4-74...— os tribunais (e a jurisprudência) podem actuar de modos diversos:

VII

Por outro lado, no caso dos autos o abaixamento da renda paga pelo recorrente (devido ao montante especulativo e à impossibilidade temporária de pagamento) foi efectuado por via da Comissão de Moradores local.

Assim, opera-se no contrato de arrendamento existente entre o recorrente e o senhorio a intervenção de uma terceira entidade — a Comissão de Moradores — ainda não inteiramente regulamentada: na lei mas, de qualquer modo, com existência reconhecida na Constituição Política de 1976 (art.º 65.º n.º 2 alínea b); 118.º e 264.º).

A intervenção do embrião de poder político — a Comissão de Moradores — actuando em defesa dos mais desfavorecidos é inteiramente legítima (consulte-se toda a legislação post 25 de Abril, e os princípios que a informam, e, por exemplo, o n.º 3 do. art.º 1.º da Lei n.º 3/74 de 14 de Maio).

Quebra-se assim, e mais uma vez, em matéria de direito de habitação, o princípio da autonomia das vontades — através da Comissão de Moradores o «interesse público» impõe a valoração maior do interesse do inquilino face ao do locador.

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O direito da habitação está hoje informado de princípios novos e radicalmente diversos dos que, até certa data, foram defendidos. A «ordem pública» exige a «desprivatização» do contrato de arrendamento, pelo que grande parte das normas reguladoras deste «contrato» devem ser objecto de interpretação e integração das suas lacunas em conformidade com os novos princípios.

A actuação da Comissão de Moradores faz parte da «constituição de um novo aparelho de Estado» que vença e substitua a actual máquina de Estado, pesada e burocrática (Programa de Acção Política, P.A.P., aprovado pelo Conselho de Revolução em 21 de Junho de 1975, ponto 4.2).

Como exemplo significativo da defesa de uma nova «ordem pública», veja-se o que dispõe o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 198-A/75 de 14 de Abril («decreto das ocupações», Cfr. «Justice», Revista do Sindicato da Magistratura Francesa, Setembro 1975).

Pelo que precede — e ao contrário do que pretende o M. Juiz a quo — a pretensão do recorrente não é inviável nem é ditada por má fé.

Termos em que se conclui como segue:

  1. A sentença recorrida violou o artigo 1093.º n.º 1, alínea a) do Código Civil, não interpretando esta disposição à luz da ordem constitucional vigente 38 (única interpretação que é legal fazer-se);
  2. A sentença recorrida violou o Programa do MFA (disposição B,6- alínea a) e b), Lei Constitucional 3/74) e o artigo 65.º da Constituição de 1976, e de um modo geral todos os princípios constitucionais & a ordem pública resultante da Revolução do 25 de Abril de 1974, sendo certo que a Constituição impõe o desenvolvimento pacífico do processo revolucionário;
  3. Nestes termos e nos demais de direito, atentos e ponderados os motivos expostos, deverá revogar-se a sentença recorrida e em consequência ser a acção julgada improcedente e não provada, como é de
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Julho de 1976
O advogado
Luís Filipe Sabino


Inclusão: 24/04/2020