As Lutas dos Moradores e a Constituição de 1976

Amadeu Lopes Sabino, Saúl Nunes, e Luis Felipe Sabino

1977


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ANEXO 3

DECLARAÇÃO DE VOTO DE VENCIDO NO JULGAMENTO DO RECURSO CÍVEL N.º [sic] DA SECÇÃO DA RELAÇÃO DE LISBOA

Estamos perante uma acção de despejo intentada com fundamento em falta de pagamento de rendas — alínea a) do n.º 1 do art.º 1093.º do Código Civil — em que, além de se ter pedido a desocupação do espaço locado, foi pedida igualmente a condenação no pagamento das rendas vencidas e a vencer até ao despejo efectivo.

O arrendamento destinava-se a habitação e a renda estipulada era no montante de Esc. 2,750$00 mensais.

Na contestação, o Réu, ora apelante, requereu simultaneamente a concessão do benefício da Assistência Judiciária na modalidade da dispensa do prévio pagamento de preparos e custas.

Pelo que respeita à defesa veio dizer — entre outras coisas que de momento não estão em causa — que em reunião plenária de moradores realizada em 19 de Agosto de 1975 (com o apoio da respectiva «comissão de moradores», da Câmara Municipal de Oeiras e do próprio MFA) foi decidido, com o fim de pôr cobro às rendas especulativas, que cada um dos moradores da área passasse a pagar uma renda correspondente a Esc. 500$00 por assoalhada, o que, para o Réu ora apelante, se traduziu numa renda de Esc. 1.000$00 mensais.

Tal deliberação não obteve o acordo dos senhorios, que recusaram receber a renda assim reduzida, pelo que o Réu ora apelante, e os demais moradores, passaram a depositar as rendas assim reduzidas na Caixá Geral de Depósitos, Crédito e Previdência.

Entende que a movimentação colectiva então desenvolvida em pleno período revolucionário, criou uma realidade jurídica que é fonte de direito, devendo considerar-se liberatórios os depósitos efectuados, com a consequente improcedência da acção,

Mas, por despacho de fls. 27, o Mmo. Juiz «a quo» indeferiu liminarmente o pedido de concessão do benefício da assistência judiciária, decisão esta de que ó R. interpôs recurso de agrávo.

E, no despacho-sentença de fls. 37-42, além 115 de ter julgado a acção inteiramente procedente, ainda condenou o R. como litigante de má-fé por oposição injustificada, mandando dar cumprimento ao disposto no art.º 459.º do Código de Processo Civil para efeito de responsabilização do seu advogado.

Ora, parecendo-nos que nenhuma das decisões seria de manter — o R. também interpôs recurso de apelação da segunda — votámos o inteiro provimento do recurso de agravo e o parcial provimento do recurso de apelação, nos termos que vamos passar a expôr:

I — Recurso de Agravo:

Dispõe o n.º 2 da Base Ill da Lei n.º 7/70, de 9 de Junho, que o pedido de assistência judiciária deve ser liminarmente indeferido quando «for evidente que a pretensão do requerente não pode proceder».

No despacho liminar em apreço, o Mm.º Juiz «a quo», ao pretender fundamentar a sua decisão, limitou-se a dizer laconicamente o seguinte: — «A leitura da contestação convence-me que é evidente que a pretensão do requerente da assistência judiciária não pode proceder».

E, sem mais considerações, indeferiu o pedido.

Pelo que ficamos sem saber se o julgador considerou evidente a improcedência da pretensão por entender ser manifesta a insuficiência económica do requerente para custear as despesas do pleito (n.º 116 1 da base 11), ou porque lhe pareceu evidente que a oposição deduzida pela requerente (contestante na acção) ao pedido formulado pelos AA. carecia em absoluto de qualquer fundamento jurídico.

1.1. Se foi aquela a ideia que presidiu no despacho de indeferimento, i. e., a da manifesta insuficiência económica para custear as despesas do pleito, o Mmo. Juiz não tinha razão!

Com efeito, no art.º 2 do regulamento da Assistência Judiciária, aprovado pelo decreto n.º 562/7O de 18 de Novembro, dispõe-se que: — «1. Na petição, mencionará o requerente os rendimentos e vencimentos que percebe, os seus encargos pessoais e da família e as contribuições e impostos que paga. 2. Destes factos não cárece o requerente de oferecer prova, mas o Juiz mandará investigar a sua exactidão quando tiver por conveniente.»

Isto significa que, em princípio, resultando dos elementos fornecidos pelo requerente (que o Juiz poderá mandar investigar) a sua insuficiência económica, mostrar-se-á preenchido o requisito do n.º 1 da Base 1l da Lei n.º 7/70, para a concessão do benefício da Assistência Judiciária.

No caso de o Juiz duvidar dos elementos fornecidos e querer investigar, então o requerente pode colaborar nessa investigação, oferecendo a prova documental a que aludem o n.º 1 da Base III da mencionada Lei e o art.º 7.º do Regulamento.

Nos presentes autos o requerente veio afirmar (artigo 1.º da contestação) que aufere apenas o 117 vencimento de Esc. 6.500$00 mensais para o sustento próprio e do seu agregado familiar, composto da mulher e de um filho, o que manifestamente lhe não permite custear as despesas do pleito.

E, não tendo o Mm.º Juiz sentido a necessidade de mandar investigar tais elementos, eles tinham de ser aceites como verdadeiros.

1.2. Mas pode ter sido outra a ideia que presidiu ao despacho de indeferimento liminar, ou seja a de que a oposição deduzida pelo requerente seria manifestamente inviável.

E que o seria de forma evidente (n.º 2 da Base Il da Lei n.º 7/70).

Ora, a questão suscitada na contestação (além de outras) e a que atrás aludimos, prende-se com um problema muito delicado e que se traduz na questão de saber se os preceitos do Código Civil de 1966 reguladores da resolução dos contratos de arrendamento, se bem que não expressamente revogados, se mantêm totalmente em vigor, mesmo na medida em que não se adaptem inteiramente a uma nova ordem jurídica que se pretende criada após o movimento do 25 de Abril de 1974.

Ou, ao menos, se não serão passíveis de uma interpretação actualizante, capaz de os integrar nessa mesma ordem jurídica nova, que teria vindo substituir a anterior.

Por melindrosa que tal questão possa ser (capaz de traumatizar a sensibilidade classicista de muitos juristas), nem por isso ela deve ser desconhecida, 118 ou repudiada liminarmente como sacrílega

Trata-se de questão que deve ser pensada e meditada, com a serenidade que é sempre de exigir na boa administração da Justiça... E-não é nos estreitos limites de um mero despacho liminar, sobre um pedido de assistência judiciária, que ela pode ser convenentemente apreciada.

De resto, neste tipo de despachos liminares em que se pretende conhecer da inviabilidade de uma pretensão, corre-se sempre (ou quase sempre) o risco de fazer um pré-julgamento da questão de fundo, com o gravíssimo inconveniente de se poder tolher, ao Réu, toda a possibilidade de defesa.

Porque, dadas as razões expostas, tivemos por não evidente a inviabilidade da pretensão do requerente da assistência judiciária, e porque entendemos não ter possibilidades económicas que lhe permitissem custear as despesas do pleito, votámos a concessão do respectivo benefício na modalidade requerida.

E não nos convenceu o vencimento da opinião contrária,

II — Recurso de Apelação:

No início da fundamentação da parte decisória do despacho-sentença em apreço, e querendo referir-se manifestamente à questão relacionada 119 com a invocada existência de um «direito novo» ainda que não escrito, o Mmo. Juiz «a quo» escreveu o que passamos a transcrever:

«Relativamente ao teor geral da contestação só me cabe repetir que o Juiz deve aplicar as leis existentes, as «deis legais»; as «não legais» desinteressam absolutamente; este é um princípio básico que se impõe a qualquer técnico de Direito. Existem leis a modificar, melhorar ou suprimir? Ninguém o discute; mas que sejam os Juizes a fazê-lo é pretensão indefensável enquanto. na sociedade dominar o princípio da separação. de poderes. E os Juizes decidem aqui e agora; isto é por demais sabido, a ponto de dispensar quaisquer considerações». — (sic. a fls. 40 e v.º).

Em consequência deste pensamento, o Mmo. Juiz «a quo», passou a decidir em obediência estrita aos comandos legais do Código Civil de 1966 sobre matéria de resolução dos contratos de arrendamento, como se o Direito fosse apenas a «lei escrita», e como se em Portugal nada tivesse sido modificado a partir de 25 de Abril de 1974.

E com ele, esta Relação através do acórdão que acaba de ser proferido!

Isto significa uma adesão pura e simples à chamada tese «legalista-positivista». que, defendida embora por certos autores (v. g. Pires de Lima, in Rev. Leg. Jus. 97/49 segs. e Bol. Fac. Dir. Coimbra 36.º-1961-70), tem vindo a ser rejeitada mais recentemente por grande número de conceituados 120 juristas portugueses, táis como Castanheira Neves («Questão de Facto», págs. 531 e segs.), Eduardo Correia («Rev. Leg. Jur.» 96.º/377 e segs.), Rui de Alarcão («intr. Estudo do Direito», 1972/73, pág. 49 e segs.).

II.1. Dever de Obediência à Lei:

Assim, e em primeiro lugar, não nos parece exacto que o Juiz deve sempre e em todos os casos, uma cega «obediênica à lei», no sentido que parece resultar, quer do art.º 110.º do Estatuto Judiciário, quer do n.º 2 do art.º 8.º do Código Civil.

Com efeito, parecendo embora resultar de tais preceitos que o Juiz não pode deixar de aplicar a lei sob o pretexto de ser injusto ou imoral o seu conteúdo, a realidade jurídica é bem diferente (e já o era antes do 25 de Abril de 1974).

Neste sentido, passemos a palavra a Figueiredo Dias.

Reportando-se precisamente aos aludidos preceitos, este autor veio dizer o seguinte:

«Parece, deste modo, que o dever do Juiz de obediência à lei é concebido, no nosso sistema jurídico positivo, por forma tal que vincula o julgador a uma actividade estritamente legalista e positivista.

Quem assim pensasse esqueceria no entáânto, para além de tudo o mais, à norma expressa do art.º 4.º da Constituição segundo o qual o Estado 121 Português — e portanto os órgãos de soberania, entre os quais os Tribunais — reconhece como limite a moral e o direito. Por esta via, os dados do sistema positivo português vêm afinal a coincidir com a mais actual e esclarecida consciência metodológica do pensamento jurídico, na delineação do sentido e do limite do dever de obediência à lei. E, na verdade, com um duplo alcance... mostrando, por um lado, que a lei só tem força obrigatória para o Juiz se e enquanto puder apresentar-se e aceitar-se como direito (com à consequente postergação da aplicabilidade da chamada «dei injusta»); revelando, por um lado, que os Tribunais devem obediência não apenas ao direito positivado na lei, mas a todos os critérios objectivos de juridicidade que devem representar-se como válidos para a solução de um concreto problema jurídico (com a consequente postergação do dogma positivista-legalista da «aplicação subsuntiva» das normas legais gerais e abstractas)» — (In «Dir. Proc. Penal», I Vol. págs. 311 a 312 — Coimbra Editora, 1974).

Ora este pensamento, quê tomou como um dos seus pontos de apoio um preceito expresso da Constituição Política de 1933, não pode considerar-se atingido pelo facto de, na Constituição de 1976, o aludido preceito não ter encontrado inteira correspondência no plano da expressão verbal.

O que seria absurdo, sabido como é que a nova lei fundamental, ão invés de restringir, procurou assegurar uma maior garantia na defesa da 122 dignidade da pessoa humana (um dos pontos em que assenta a soberania do Estado — art.º 1.º da actual Constituição), passando pela dignificação e pelo reforço da independência dos Tribunais.

De resto, e ainda que sem inteira correspondência na expressão verbal, vamos encontrar o correlativo daquele preceito no n.º 4 do art.º 3.º da actual Constituição da República Portuguesa segundo o qual: «O Estado está submetido à Constituição e funda-se na legalidade democrática».

Mas esta «legalidade democrática», que é fundamento do próprio Estado, não pode entender-se como divorciada da moral e do direito (tomado este como o conjunto dos critérios objectivos de juridicidade representados como válidos para a solução de um concreto problema jurídico e que muitas vezes transcendem a própria lei escrita, podendo mesmo prevalecer sobre esta).

Sem o que essa mesma «legalidade democrática» poderia entrar em conflito com a «dignidade da pessoa humana» em que se baseia a «soberania», conforme se reconhece expressamente no art.º 1.º da actual Constituição.

E é neste contexto que tem de entender-se o preceito constitucional do art.º 208.º quando dispõe que «Os Tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à Lei».

Na verdade, a referência aqui feita à «lei» não significa (nem pode querer significar) que se quis sujeitar o Poder Judicial a uma obediência cega a 123 toda e qualquer norma escrita que possa ter emanado de qualquer órgão legislativo, querendo antes significar — e apenas — que os Tribunais devem obediência à «legalidade democrática» em que se funda o Estado, que constitui a actual ordem jurídica (que não pode estar em contradição com a «moral» e com o «direito»), que terá de ser a própria expressão do ideal de Justiça.

Assim, quando eventualmente a norma escrita possa contrariar essa mesma «legalidade democrática», os Tribunais não lhe devem obediência, sob pena de — ao invés da missão de realizadores da Justiça e do Direito — se transformarem em órgãos realizadores da «injustiça» no caso concreto.

A este respeito, já salientara Cunha Gonçalves que «A missão de Juizes é, acima de tudo, fazer Justiça... e não cultivar o fanatismo da fórmu!a, sobrepondo esta à Justiça e às regras de probidade» — (In «Tratado» VIll.- 274).)

E mais «esclarecedoras são as palavras do próprio Cristo: — «Porque eu vos digo que, se a vossa justiça não for melhor do que a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no reino dos Céus». — «Math.» 5.20).

II.2. A jurisprudência como fonte de direito:

Pode suceder que determinado preceito legal, não estando embora em flagrante contradição com ordem jurídica no seu conjunto, seja por si mesmo 124 insuficiente para solucionar, com justiça, determinado problema concreto.

É que, destinando-se a lei a traçar as linhas gerais reguladoras da vida social, só é capaz de ter uma visão panorâmica e muito genérica dos vários tipos de conflitos de interesse que se propõe solucionar.

Acontece, porém, que, no quotidiano da vida, os problemas concretos não se adequam inteiramente à abstracta previsão legal.

Há sempre aspectos particulares e diferenciados, impossíveis de serem subsumidos ao preceito legal abstracto, e que não podem ser desprezados, sob pena de se cometer injustiça no caso noncreto.

Daí decorre à necessidade de, através da jurisprudência, o Estado-Soberano exercer uma outra forma «criativa do Direito», para além das demais fontes criadoras.

Se assim não fosse, os tribunais nem sequer seriam «órgãos da soberania»... mas meros autómatos — executores da vontade soberana do legislador.

A este respeito, citaremos uma vez mais Figueiredo Dias ao afirmar que: —

«Ao lado do direito «legal» tem um lugar de relevo o direito judicial, criado por via jurisprudencial. Se não temos na jurisprudência uma fonte em sentido formal, cabe-lhe todavia, em certa medida e em certo sentido, uma função criadora do direito... a sua força deriva toda de o direito ter deixado de ser um mero conjunto de princípios gerais e abstractos (que, como um 125 padrão, se decalcariam por sobre qualquer situação concreta) para vir, ele próprio, inserir-se em situação. Por isso não basta a norma geral e abstracta para, através dela, se obter sem mais, por puros métodos lógico-formais, a decisão cabida a uma certa situação; esta é sempre uma decisão no âmbito do particular e do contingente, que só a jurisprudência está em condições de viver» (Ibidem, pág. 89 e também «O problema da consciência da ilicitude em Direito Penal», 1969, pág. 4 e seg.).

Nesta conformidade, o invocado «princípio da separação dos poderes» de que se quis socorrer o Mmo. Juis «a quo», não foi correctamente entendido na decisão em recurso.

Deste princípio não decorre que a função criativa do direito (que transcende a feitura de leis) caiba exclusivamente aos órgãos do poder com funções legislativas; mas antes que, a estes órgãos cabe a formulação do direito numa das suas formas abstractas, enquanto que ao poder judicial compete a criação do direito «in concreto»... na medida em que a norma legal abstracta possa ser, por si mesma, incapaz de poder resolver, com justiça, cada um dos casos particulares que exijam a intervenção dos tribunais.

De resto — e repetimos — só assim se compreende que os tribunais sejam órgãos da soberania do Estado... pois, de contrário, em breve poderiam ser substituídos (com vantagem) por máquinas 126 computadoras especialmente programadas para subsumirem à lei escrita cada caso concreto.

II.3 — Função interpretativa:

Para além das funções de «garante» da ordem jurídica .(repressão da violação da legalidade democrática — art.º 206 da actual Constituição) e de «criador do direito no caso concreto», cabe também ao Poder Judicial a função de intérprete do direito abstracto constituído.

E o conjunto de todas estas funções é de tal modo importante que, consideradas também a independência e a imparcialidade (esta de exigir a todo o julgador independentemente de eventuais tendências ou de preconceitos de classe), se entendeu ser o Poder Judiical quem melhor é capaz de defender os legítimos interesses dos cidadãos.

Daí que o n.º 1 do art.º 210.º da actual Constituição tenha vindo atribuir às respectivas decisões uma força obrigatória que prevalece sopre as de quaisquer outras autoridades.

O que exige dos Juizes um esforço de isenção tal, que seja capaz de os subtrair ao risco (ainda que involuntário) de se deixarem impressionar por factores (que até podem ser de ordem ideológica) susceptíveis de os fazerem atraiçoar a sua missão.

Por outro lado, e designadamente para que à função de intérprete do direito abstracto seja convenientemente exercida, os Juizes não podem 127 limítar-se a um mero exercício de indagação da vontade legal em determinado momento e sem olharem ao condicionalismo que a possa ter inspirado.

O Direito (no qual se contém a própria lei) não é uma realidade estática que possa manter-se indiferente à permanente evolução do fenómeno social, muito ao contrário, o Direito é uma realidade viva, uma expressão da própria vida em constante mutação, que tem de acompanhar a dinâmica desse mesmo fenómeno.

Tampouco ele deve ser uma ciência hermética, exclusivamente reservada aos «doutores da lei», cuja tendência muitas vezes se inclina no sentido de transformar o Direito em um fim a atingir em si mesmo, que não como instrumento que deve servir à realização da Justiça.

Tendência essa que, por reprovável, mereceu do próprio Cristo o anátema seguinte: — «Ai de vós, doutores da lei, que usurpastes a chave da ciência e nem entrastes vós, nem deixastes entrar os que vinham para entrar». — «Lucas» — 11.52.

Porque se trata de uma ciência da própria vida, o Direito deve ser acessível a todos quantos o desejam encontrar.

E o respectivo trabalho de exegese tem de respeitar a evolução, seguindo o método dialéctico capaz de permitir uma adequação à realidade do momento jurídico vivido no caso concreto.

E a este trabalho não pode ser alheio o momento político vivido pela sociedade, à qual o 128 Direito se destina.

Não porque o Juiz deva julgar segundo a sua opção política, mas porque a realidade política em si mesma é a determinante de certos comportamentos humanos sujeitos à apreciação do julgador.

Nem sequer pode dizer-se que, ao preconizarmos um método dialéctico de interpretação, estejamos a resvalar para uma opção marxista e a fazermos — nós mesmos — uma opção ideológica.

Com efeito, e embora nascendo de linguagem diferente, até Marcelo Caetano aceitou como bom o mesmo método exegético, tendo escrito o que passamos a transcrever:

«Compreendido o objectivo da lei é necessário não perder de vista que ela é mero elemento de uma ordem jurídica, membro de um sistema dominado por certos princípios fundamentais e disciplinares; produto de um Estado que se propõe a realização consciente de certos fins. Torna-se, pois, indispensável integrar a norma no sistema de que faz parte e compreendê-la de harmonia com ele, pondo de acordo o seu sentido com o pensamento e a vontade do Estado, expressos ou implícitos na Constituição Política. A norma não pode considerar-se em contradição com os princípios gerais do Direito em dada época e em dado país, nem em oposição com os ideais do governo do Estado cujos órgãos a aplicam. Resulta daqui o elemento sistemático da interpretação.» — In «Man. Dir. Adm.», Tomo I, págs. 130-131 — Lisboa/73).

129 E este mesmo pensamento foi — de um modo geral — aceite pelo art.º 9.º do Código Civil de 1966, embora com certa timidez.

Ora, esta necessidade de interpretação actuálizante do Direito abstracto constituído na lei, existe mesmo dentro do esquema ideológico de um regime político que tenha chegado a atingir uma relativa estabilidade, exigindoó-se uma «constante» de adaptação à realidade, sempre renovada, do fenómeno social.

Mas ela mais se agudiza quando, de súbito, um regime político é substituído por outro, de raiz ideológica diversa.

III — O Direito em Período de Transformação Política:

Quando ocorre um movimento revolucionário, em qualquer País, não é possível — de um momento para o outro e mau grado a substituição de ideologias políticas — modificar toda uma legislação de um Estado.

Daí que, nos chamados períodos de transição, importa manter em vigor aquelas «leis antigas» que, podendo embora ter sido inspiradas pela ideologia do regime vencido não estejam em manifesta oposição com a ideologia do regime vencedor.

Isto até porque, entre as leis antigas, muitas pode haver que são capazes de servir a mais do que um sistema ideológico.

130 Assim, v. g., os preceitos reguladores do trânsito que se contêm no código da Estrada.

Só que os preceitos respectivos terão de passar a funcionar à luz de uma nova óptica sócio-política.

Assim sucedeu na Alemanha, quer na transição da República de Weimar para o «nazismo», quer na transição deste regime para o que actualmente vigora na República Federal.

Em ambos os casos, subsistiram leis anteriores, que passaram a ser interpretadas segundo cada uma das ideologias reinantes.

Deste fenómeno se dá conta Karl Engisch (in «Introdução ao Pensamento Jurídico» — Manuais Universitários — F. C. Gulbenkian — Lisboa).

E foi esta a solução também adoptada em Portugal após o Movimento de 25 de Abril de 1974 e que veio a ser consagrada, designadamente, pelo n.º 1 do art.º 293.º da actual Constituição da República.

E se, em período de transformação revolucionária, a necessidade de uma interpretação dialéctica mais se agudiza ... do mesmo modo mais se torna permanente a postergação da chamada «lei injusta» pelos Tribunais, assim como mais indispensável se torna que estes exerçam a sua função de criadores do Direito no caso concreto... ainda que, para tanto, tenham de fazer frequente apelo aos princípios de equidade.

E isto é tanto mais certo quanto é verdadeiro 131 que o chamado fenómeno revolucionário (como a História nos ensina) não é um fenómeno tão # simples como o da passagem das trevas à claridade... pela simples acção de abrir uma janela. Com efeito, de um modo geral e conforme a correlação momentânea das várias forças interessadas no processo revolucionário, assim este sofre avanços, recuos e mudanças de direcção... tudo com implicações na vida jurídica da sociedade e até no comportamento jurídico de cada cidadão.

E é manifesto que, ao Juiz (que deve preoccupar-se apenas com o seu dever de fazer Justiça no caso concreto) não podem ser indiferentes tais vicissitudes e as suas implicações.

Dentro de um tal condicionalismo a lei escrita (anterior ao desencadeamento do processo revolucionário) pode não ter tido sequer ocasião de se inserir convenientemente numa nova Ordem Jurídica relativamente estável.

O que torna extremamente difícil a sua adequação a cada momento vivido em concreto... Mesmo quando se pretenda utilizar o processo dialéctico de interpretação.

Assim se tornando imperiosa a necessidade de correcção da lei, ou mesmo da criação do Direito no caso concreto... ainda que por recurso aos princípios de equidade.

Então — mais do que nunca — se requer uma atitude corajosa do Juiz (liberto de preconceitos) que lhe permita vencer uma certa tradição de 132 conformismo ao «tabu» da lei escrita, ao mesmo tempo que se requer um seu esforço de humildade perante a responsabilidade moral de uma decisão e face à grandiosidade do poder-dever de fazer justiça que lhe é exigido.

Sem o que correrá o risco de se tornar iníquo e de «a sua Justiça» não ser melhor do que a dos «escribas» e dos «fariseus»!

IV— O Caso Concreto:

Postas estas considerações, é altura de nos debruçarmos sobre o caso concreto dos presentes autos.

IV.1 — O condicionalismo do caso: por contrato escrito de fls. 5 os AA. deram arrendamento ao Réu, para efeito de habitação e pela renda mensal de Esc. 2.750$00, o primeiro andar esquerdo frente de um prédio de que são donos.

Este contrato foi celebrado em 1 de Agosto de 1975.

Entretanto, com o apoio do MFA, que então exercia efectivamente a supremacia do poder político em "Portugal, foram criadas organizações populares de base, destinadas a exercer o Poder Popular conforme a intenção da chamada «Aliança Povo-MFA».

Dentre elas, foram criadas as chamadas «Comissões de Moradores», a quem ficaria competindo a defesa dos interesses do Povo no sector dos problemas 133 habitacionais.

Em movimentos colectivos que se generalizaram por grande parte do País, essas «Comissões de Moradores» (de um modo geral apoiados pelo MFA e pelas Autarquias Locais), considerando especulativas muitas das rendas contratualmente fixadas, tomaram a iniciativa de promover plenários em que o problema foi discutido e que, de um modo geral, deliberaram reduzir para importâncias que lhes pareciam justas um grande número das mencionadas rendas.

Assim, em 19 de Agosto de 1975, a Comissão de Moradores da Quinta dos Cedros, em cuja área se situa o prédio em causa, promoveu um plenário de cerca de 200 moradores, no qual se considerou especulativa toda a renda para além da importância de Esc. 500$00 por «assoalhada», tendo deliberado a correspondente redução das rendas contratualmente estipuladas.

No caso do Réu, a nova renda ficaria sendo de Esc. 1.000$00/mês.

Dado conhecimento do facto aos senhorios AA., estes não aceitaram a renda assim reduzida, pelo que o R. passou a depositá-la na Caixa Geral de Depósitos.

É o que tudo resulta dos factos articulados pelo R. (arts. 12.º, 13.º, 14.º, 20.º, 21.º e 22.º da contestação) e que não foram impugnados, e ainda dos documentos de fis. 18-23.

Daí resultou a presente acção.

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V — O direito no caso concreto:

Face a esta matéria fáctica, e a ser aplicado rigoristicamente o direito sobre inquilinato contido. no Cód, Civil e no Cód. de Proc. Civil, é manifesto que a acção teria de proceder inteiramente.

E foi assim que se julgou, por mera obediência a uma lei escrita que ainda não foi expressamente revogada.

Mas, entendemos que se julgou mal!

Com efeito, para além de se poder entender que esse mesmo direito escrito, por encontrar assento numa ordem jurídica de inspiração essencialmente capitalista, é dificilmente harmonizável com a «transição para o socialismo» a que aludem os artigos 1.º e 2.º da Constituição vigente... outras razões nos levariam a decidir de maneira diferente.

Assim, começaremos por fazer notar que, algum tempo após o Movimento do 25 de Abril de 1974, e ante a gravidade do problema habitacional, O Estado sentiu a necessidade de iniciar uma reformulação da respectiva política, chegando a adoptar medidas de emergência, tais como a suspensão do andamento de algumas acções de despejo (v. Dec.-Leis n.os 445/74 de 12/9 e 198-A/75 de 14/4).

Por outro lado, e com as iniciativas tomadas nos plenários de moradores (que todavia não foram acompanhadas de legislação que lhes desse inteira cobertura) sucedeu que, confiada na autoridade que supunha dimanar do MFA, muita gente 135 houve de boa-fé que passou a tomar como «legais» as deliberações pelo MFA apoiadas, passando a agir em conformidade com elas.

E disto veio dar conta o próprio Relatório que precede o Dec.-Lei n.º 366/76, de 15 de Maio, ao afirmar que «muitos locatários terão deixado de pagar pontualmente as rendas acordadas por razões conjunturais, quiçá com a complacência de entidades responsáveis».

E pretendeu o aludido Dec.-Lei remediar o problema, preceituando no seu art.º 3.º o seguinte:

«Nas acções pendentes com fundamento na falta de pagamento de renda, o Réu poderá sobrestar ao despejo se, no prazo de oito dias a contar da data da entrada em vigor deste diploma demonstrar documentalmente que pagou ao Autor ou depositou na Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência o montante das rendas em dívida, em conformidade com o contrato escrito de arrendamento, acrescido do juro de 10% pela mora».

Mas, quer o Relatório, quer o citado art.º 3.º, deixando entrever certa mudança de orientação quanto ao que parecia ser o início de uma nova política habitacional... mostram-se hesitantes, ambíguos e até certo ponto injustos nas suas linhas gerais.

Com efeito, deixam entrever uma mudança de orientação na medida em que vieram — ao fim e ao cabo — a sancionar em toda a sua amplitude (pelo menos enquanto não for convenientemente 136 regulamentada a política preconizada pelo art.º 65.º da Constituição) o princípio da liberdade contratual, que antes teria começado a ser posto em causa.

Por outro lado, deu-se a entender que «muitos locatários» deixaram de pagar pontualmente as rendas mercê de «razões conjunturais» (aliás já conhecidas, mas que o diploma não quis esclarecer quais foram) e com a «complacência» (melhor se diria «com o apoio») de «entidades responsáveis» (que também não foram indicadas, mas que igualmente já conhecemos).

Seguidamente, limitou-se o «remédio» às acções já pendentes à data da publicação do diploma, deixando-se no esquecimento todas aquelas que ainda não haviam sido intentadas (talvez a maioria) e que só começaram a sê-lo a partir de 25 de Novembro de 1975, ainda dentro do prazo de caducidade previsto pelo art.º 1094.º do Código Civil... como sucedeu no caso concreto.

Imputou-se aos «locatários» a responsabilidade pela «mora» no pagamento das rendas quando, mercê das ditas razões «conjunturais» e mercê de uma posição política do Estado em determinado momento (se foi boa, ou má, é coisa que não interessa para a solução do pleito, nem cabe aos Tribunais apreciar), só ao Estado tal responsabilidade deveria caber... por não haver «culpa» da parte do devedor (art.ºº 798.º e 804.º n.º 2 do Código Civil), uma vez que este confiou na autoridade dessas 137 mesmas «entidades responsáveis».

Fixou-se a taxa de 10% pela mora, quando o juro legal seria de 5% nos termos dos preceitos combinados do n.º 2 do art.º 806 e do n.º 1 do art.º 559, ambos do Código Civil.

E não se esclareceu se o «remédio» preconizado pelo art.º 3.º do mencionado Decreto-Lei é exclusivo para os casos de falta total do pagamento de rendas, ou também para aqueles casos (como o dos autos) em que, mercê das deliberações dos plenários de moradores, foram depositadas as «rendas reduzidas» na Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência.

Além de que o prazo de «oito dias» para a prova documental do pagamento ou de depósito era manifestamente exíguo.

Triste remédio este que, muito estrategicamente, deixou aos tribunais o encargo de resolver problemas que não existiam se tivessem sido convenientemente solucionados por via legislativa!...

VI — Solução preconizada pelo Juiz vencido:

Criada que foi uma tal situação, e uma vez que o poder legislativo diexou ao tribunal o encárgo de «tirar as castanhas do lume» — perdoe-se-nos a expressão vulgar — seria natural que o Tribunal, considerando o período de excepção então existente, tivesse exercido (ou viesse a exercer) aquelas funções que, para além da cega 138 obediência à lei escrita, se relacionam com o poder correctivo sobre a própria lei, com a sua interpretação actualizante... e com a criação do direito no caso concreto, com apelo à equidade.

Nesta conformidade, entendeu o Juiz signatário do voto de vencido que, dado o condicionalismo largamente exposto, seria injusto privar o réu do direito ao arrendamento pela simples circunstância de, mercê de razões conjunturais resultantes de insentivação do próprio poder político, ele ter entendido em determinado momento que só era obrigado a pagar a renda «reduzida».

Tanto mais que sendo neste aspecto, a situação do R. idêntica à de centenas de locatários por esse país fora, a concluir-se pelo direito dos senhorios à resolução dos respectivos contratos, teremos centenas de famílias postas na rua... o que implica um problema social da mais alta gravidade, ao qual não devem ser indiferentes os Juizes por mais legalistas que possam ser.

Não podemos deixar de entender que, em situações deste género, o Juiz que se limita à atitude de «lavar as suas mãos» ao abrigo do brocardo «dura lex, sed lex»... se torna conscientemente iníquo.

Assim, tínhamos proposto que os depósitos efectuados, mesmo com a renda reduzida, fossem considerados liberatórios para o efeito apenas de não ser decretado o despejo.

Mas, dado que o Decreto-Lei n.º 366/76, já 139 posterior ao início do processo revolucionário, veio reconhecer que continuam a ser devidas as rendas contratualmente estipuladas, é manifesto que os depósitos efectuados não podem libertar o R. da obrigação (pecuniária) de pagar aos AA. a diferença de quantitativos havida entre esses depósitos e o montante das rendas estipuladas.

Pelo que nos pronunciamos no sentido da subsistência da obrigação pecuniária.

E entendemos também que, sobre tais diferenças, não deveriam recair juros... não só porque o R. não foi culpado pela mora, mas também porque os AA. não pediram a condenação em juros.

Por outro lado, e uma vez que não seria decretado o despejo, não haveria lugar à condenação em rendas vincendas, já que a obrigação do seu pagamento continuaria a resultar dos próprios termos do contrato.

Mas, importava a fixação de um prazo para o pagamento das diferenças vencidas, parecendo-nos que seria razoável o de seis meses.

E as consequências do eventual incumprimento desse prazo seria as que resultam do regime geral do não cumprimento das obrigações.

Além de que, como é óbvio, não seria de manter a condenação do R. como litigante de má-fé.

Finalizaremos com as considerações seguintes:

1.º — A presente declaração de voto não obedeceu à «mênção sucinta das razões de discordância» a qual alude o n.º 1 do art.º 713 do Código de 140 Processo Civil, o que lamentamos... Mas, era-nos impossível escrever menos, sem que atraiçoássemos o nosso pensamento.

2.º — Temos a consciência de que as soluções preconizadas vão contra um certo tradicionalismo. Mas, pareciam-nos justas! É é necessário que os Tribunais, quebrando tradicionalismos estéreis, entrem no caminho da busca da Justiça no caso concreto.

Lisboa, 29 de Outubro de 1976

a) Pedro de Lima Cluny


Inclusão: 24/04/2020