Marx e a Liberdade

Terry Eagleton


2. Antropologia


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O pensamento (pós-)moderno tende a ser “anti-fundacionalista”, na medida em que tudo aquilo que tem tendência para aparecer-nos como um fundamento objectivo da nossa existência para ele surge-lhe como uma ficção arbitrária; pelo contrário, Marx é um pensador mais clássico ou mais tradicional para quem o fundo do nosso ser reside nesta forma partilhada de natureza material que ele qualifica como “ser genérico”. Tal como a expressão “natureza humana”, este conceito oscila ambiguamente entre a descrição e a prescrição, o facto e o valor, o exame sobre aquilo que somos e a medida daquilo que deveríamos ser: se naturalmente somos animais sociais que dependemos uns dos outros para a nossa sobrevivência mútua, este dado natural deve tornar-se tanto num valor político como numa realidade antropológica... é este o problema! Enquanto pensador historicista, Marx propõe-se salvar as instituições humanas da falsa eternidade com que o pensamento metafísico as investiu: ele considera que aquilo que foi criado historicamente pode sempre ser mudado através de meios históricos; mas é igualmente, de uma forma um pouco paradoxal, uma espécie de essencialismo aristotélico que acredita na existência de uma natureza ou de uma essência humana e define as sociedades justas como sociedades em que esta natureza pode apoderar-se de si própria. Como é que ele resolve esta aparente contradição teórica?

Na esteira de Hegel, ele resolve-a ao considerar a mudança ou o desenvolvimento como a quintessência da realidade humana: ele afirma que, por natureza, o ser humano procura realizar as suas potencialidades. Mas em que consistem estas potencialidades, e em que contextos somos susceptíveis de as actualizar? Segundo ele, trata-se de questões propriamente históricas. Para o jovem Marx dos Manuscritos Económicos e Filosóficos de 1844, somos humanos apenas na medida em que partilhamos um género específico de “ser genérico” com os nossos irmãos e irmãs em humanidade:

“A essência humana da natureza só existe primeiramente para o homem social; pois é apenas assim que a natureza é para ele um laço com o homem, é assim que ele vive para o outro e o outro para si, é assim que ela é o fundamento da sua própria existência humana e o elemento vital da humana realidade. É assim apenas que a sua vida natural é a sua vida humana, que a natureza se tornou para ele humana. A sociedade é a unidade essencial e perfeita do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo consumado do homem e o humanismo consumado da natureza. [...] Acima de tudo, devemos evitar fixar a própria “sociedade” como uma abstracção face ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. A sua vida — mesmo se não aparece sob a forma directa de uma manifestação comum de existência, consumada simultaneamente com outros — é uma manifestação e uma afirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diferentes [...]” (EP, p. 82).

Este “ser genérico” tende para um fim e um objectivo? Ou, dito de outra forma, Marx será um pensador teleológico?

Em certo sentido, sim, noutro, não. Porque a finalidade do nosso “ser genérico”, enuncia ele recorrendo a uma espécie de tautologia criadora, consiste precisamente em autorealizar-se — para Marx, como para tantos outros adeptos daquilo que poderíamos designar como “romantismo radical”, a existência humana não pode, nem deveria, atribuir-se nenhum desígnio que não seja o do seu desenvolvimento harmonioso:

“Quando os operários comunistas se reúnem, a sua intenção visa em primeiro lugar a teoria, a propaganda, etc. Mas, ao mesmo tempo, desta maneira eles apropriam-se de uma nova necessidade, a necessidade de toda a sociedade, e aquilo que parecia não passar de um meio torna-se um fim. Deste movimento prático podem observar-se os mais brilhantes resultados quando vemos reunirem-se operários socialistas franceses. Fumar, beber, comer, etc., deixam então de ser simples ocasiões para se reunirem, meios de união. A companhia, a associação, a conversa que visa o conjunto da sociedade preenche-os; para eles a fraternidade humana não é uma frase, mas sim uma verdade, e das suas figuras endurecidas pelo trabalho irradia a nobreza da humanidade” (EP, pp. 98-99).

Esta noção romântica de uma natureza cujo auto-desenvolvimento constituiria um fim em si opunha-se a duas correntes de pensamento, ambas muito poderosas na época de Marx. A primeira estava marcada pelo ferro de um raciocínio metafísico que impunha à humanidade a prestação de contas dos seus actos perante este ou aquele alto tribunal: o tribunal do dever, da moralidade, dos castigos religiosos, da Ideia Absoluta, etc. Marx era profundamente hostil a esta orientação metafísica, por muito profundo que fosse o seu próprio moralismo: o processo de desenvolvimento das nossas faculdades e capacidades criativas constituía para ele, precisamente, o único critério admissível de moralidade, excluindo qualquer referência a uma lei superior ou a qualquer augusta série de objectivos que pretendessem ultrapassar este processo — ele estimava que esta dinâmica precisava tanto de ser justificada quanto um sorriso ou uma canção: tal dinâmica procedia simplesmente da nossa natureza comum, achava ele.

Mas esta ética entrava igualmente em conflito com essa forma de razão instrumental à luz da qual os indivíduos só existiriam para contribuir para alcançar este ou aquele nobre objectivo: a construção do Estado político, por exemplo, ou (como a corrente então dominante do utilitarismo recomendava) a promoção da felicidade universal. Para Marx, este modo de raciocínio que consiste em relacionar os meios com os fins era típico do género de racionalidade que prevalecia nas sociedades de classes, na medida em que, em tais sociedades, a energia da maioria é posta ao serviço do proveito de alguns poucos. Nas sociedades capitalistas, escreve ele,

“[o] trabalho, a actividade vital, a vida produtiva aparecem de imediato ao homem como um simples meio de satisfazer uma necessidade — a necessidade de conservar a sua existência física. A vida produtiva é a vida da espécie; é a vida criadora de vida. O modo de actividade vital encerra todo o carácter de uma espécie (species), o seu carácter genérico, ao passo que a actividade livre, consciente, é o carácter genérico do homem. [Sob o capitalismo, a] própria vida surge como um simples meio de viver" (EP, p. 63).

Nas sociedades de classes o indivíduo é constrangido a transformar o que comporta de menos funcional — a auto-realização do seu ser genérico — num simples instrumento de sobrevivência material.

Bem entendido, Marx não recusa completamente estes modos de raciocínio instrumentalistas: aceita que eles são a condição indispensável para qualquer actividade racional, e o seu projecto revolucionário necessitava, aliás, que relacionasse fins com meios. Mas com isto não aspira menos ao surgimento de uma sociedade em que os seres humanos, homens ou mulheres, tivessem a possibilidade de aceder a um desenvolvimento que procurasse nunca menos do que a realização radical daquilo que transportassem já em si, e é nisto que o seu pensamento pode dar a impressão de roçar o paradoxo: é precisamente porque concede ao indivíduo um valor muito alto que Marx rejeita as ordens sociais que, celebrando na teoria o valor do individualismo, na prática reduzem os seus membros dos dois sexos a nada mais do que unidades de produção anónimas e trocáveis entre si.

Se nos pedissem para caracterizar a ética de Marx, o termo “estética” poderia, portanto, não ser a pior escolha. Porque se entende tradicionalmente por “estética” uma forma de prática humana que não necessita de qualquer justificação utilitária ainda que se relacione com objectivos, responda a motivações e seja regida por lógicas que lhe são próprias: é um exercício que não procede de nenhum outro impulso que não seja o de cumprir algo que em si dá prazer. Ora, para Marx, ser socialista consiste precisamente em esforçar-se por fazer de modo a que realizações desta ordem sejam praticamente acessíveis a um máximo de indivíduos — poderíamos dizer, a humanidade deverá surgir onde estava a arte... Eis porque é tão favorável à automação: só nas sociedades em que o trabalho esteja automatizado ao máximo, sublinha ele, é que os homens e as mulheres terão a possibilidade de desenvolver mais completamente as suas personalidades deixando de ser utilizados como meros instrumentos de produção. Tal como a redução da duração da jornada de trabalho lhe aparece como a condição sine qua non do desenvolvimento geral que o socialismo pode permitir:

“Neste domínio [o do trabalho], a liberdade só pode consistir nisto: os produtores associados — o homem socializado — regulam de forma racional as suas trocas orgânicas com a natureza e submetem-nas ao seu controlo comum em vez de serem dominados pelo poder cego destas trocas; e concretizam-nas despendendo o menos possível de energia, nas condições mais dignas, as mais conformes à sua natureza humana. Mas o império da necessidade não deixa de subsistir. É para além dele que começa o desenvolvimento do poder humano que é o seu próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade que, no entanto, só pode florescer assente nesse reino da necessidade. A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental para esta libertação” (C, Livro terceiro, Fragmentos, Em jeito de conclusão, pp. 1487-1488).

Podemos dizer também, para exprimir a mesma ideia de outra maneira, que Marx pretende libertar o “valor de uso” dos seres humanos da sua submissão ao “valor de troca”. Na sua óptica, um objecto é uma realidade sensível que deveríamos utilizar e de que deveríamos gozar considerando apenas as suas qualidades específicas: tal é o que ele entende por “valor de uso”. Contudo, nos regimes capitalistas, os objectos não são mais do que mercadorias: existem apenas em função do seu valor de troca, isto é, apenas enquanto bens comprados e vendidos; por este facto, duas quaisquer mercadorias do mesmo valor acabam inevitavelmente por ser reduzidas à relação de igualdade abstracta que se estabelece entre elas — como a identidade prevalece sobre a diferença, as suas particularidades naturais são danosamente ocultadas.

O mesmo sucede com os seres humanos quando vivem neste género de sistemas sociais. Nas sociedades regidas pela lei do mercado, os indivíduos são confrontados uns com os outros como entidades abstractas e trocáveis entre si; os operários tornam-se mercadorias que vendem a sua força de trabalho pela melhor oferta; e os capitalistas só pensam em tirar lucro daquilo que eles produzam. Ora, aquilo que vale no domínio económico vale também na esfera política: se os Estados burgueses tratam os seus naturais como iguais abstractos quando se dirigem à cabina de voto, só lhes conferem esta igualdade abstracta para os fazerem esquecer as suas desigualdades sociais específicas. Assim incumbe à democracia socialista colmatar este hiato entre a forma política e o conteúdo social, para que o nosso modo de existência enquanto membros de um Estado político e cidadãos participantes na vida da comunidade a que pertencemos corresponda à nossa existência enquanto indivíduos reais:

“É apenas quando o homem individual, real, tiver recuperado em si mesmo o cidadão abstracto e se tiver tornado, ele mesmo, homem individual, um ser genérico na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais; quando o homem tiver reconhecido e tiver organizado as suas forças próprias enquanto forças sociais e portanto não separar de si a força social sob o aspecto de força política; é então, apenas nesse momento, que a emancipação humana será consumada” (AEP, “Apropos de la questionjuive”, p. 373).

Da mesma forma que pretende abolir a troca de mercadorias na esfera económica para que a produção seja regida pelo uso e não pelo lucro, Marx procura semelhantemente “desmercantilizar” a pessoa humana para libertar a “riqueza da sensibilidade subjectiva do homem” da lógica abstracta utilitária prevalecente até então. Dado que, nos regimes capitalistas, os nossos próprios sentidos se tornam mercadorias, apenas a abolição da propriedade privada poderia conduzir a uma emancipação autêntica do corpo humano, sinónimo de uma reapropriação verdadeira de todos os sentidos humanos:

“A abolição da propriedade privada é a emancipação de todos os sentidos e de todas as qualidades humanas; mas ela é esta emancipação precisamente porque estes sentidos e estas qualidades se tornam humanos, tanto subjectiva como objectivamente. O olho torna-se o olho humano, tal como o seu objecto se torna um objecto social, humano, vindo do homem e conduzindo ao homem. Os sentidos tornaram-se, assim, “teorizadores” na sua acção imediata. Eles relacionam-se com o objecto por amor do objecto, mas o objecto relaciona-se humanamente a si próprio e ao homem, e vice-versa. Por isso a necessidade e o prazer perdem a sua natureza egoísta, enquanto que a natureza perde a sua simples utilidade para tornar-se utilidade humana” (EP, p. 83).

A antropologia política de Marx enraíza-se, consequentemente, numa concepção muito larga do trabalho na medida em que estabelece que a fonte da vida social reside no corpo humano.

Quanto mais complexa se torna a vida social, tanto mais o trabalho tende a especializar-se, repartindo-se formas de actividades diferentes entre produtores diferentes: é aquilo que Marx chama a “divisão do trabalho”. Necessário ao desenvolvimento e ao aperfeiçoamento das forças produtivas, este processo induz igualmente uma espécie de “alienação” ao suscitar uma realização unilateral dos potenciais humanos que vem contra o ideal marxista do “indivíduo completo” desdobrando generosamente os seus talentos pessoais; de modo que a “divisão do trabalho” fornece um exemplo perfeito deste género de divórcio que as sociedades de classes instauram entre o individual e o universal pela própria razão dos funcionamentos parcelares que induzem — o trabalho mecânico do operário de uma fábrica fecha-o, por exemplo, dentro de uma actividade exclusiva que o impede de exprimir todas as potencialidades do seu “ser genérico”:

“Por fim, e a divisão do trabalho fornece-nos de imediato o primeiro exemplo; enquanto os homens estão inseridos numa sociedade primitiva, ou seja, enquanto subsiste a divisão entre o interesse particular e o interesse geral, e que a actividade não é dividida voluntariamente mas naturalmente, o próprio acto do homem ergue-se à sua frente como um poder estranho que o submete em vez de ser ele que o domina. Com efeito, desde o momento em que o trabalho começa a ser repartido, cada um entra num círculo de actividades determinado e exclusivo, que lhe é imposto e de que não pode evadir-se; ele é caçador, pescador, pastor ou “crítico crítico”, e tem de continuar a sê-lo sob pena de perder os meios que lhe permitem viver. Na sociedade comunista é o contrário: ninguém está fechado num círculo exclusivo de actividades e cada um pode formar-se num qualquer ramo à sua escolha; é a sociedade que regula a produção geral e que me permite assim fazer hoje determinada coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar da parte da tarde, ocupar-me do rebanho à noite e aplicar-me na crítica depois da ceia, de acordo com a minha vontade, sem nunca tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico” (IA, p. 1065; OE, I, pp. 25-26).

Esta especulação conta-se seguramente entre as mais utopistas de todas aquelas a que Marx se dedicou.

A ética política de Marx levanta os mesmos problemas que qualquer outro tipo de ética. Este conceito de um sujeito humano livre de moldar-se à sua vontade não constituiria simplesmente uma versão mais generosa do modelo burguês e patriarcal do homem visto como auto-produtor laborioso? O ser humano ideal pintado por Marx não equivaleria a uma espécie de proletário prometeico? Não estaremos a lidar com uma versão de esquerda do ideal pequeno-burguês da rentabilização ilimitada ou faustiana de uma riqueza interior apreendida como mera posse material? Do mesmo modo, esta doutrina poderia parecer marcada por um activismo demasiado implacável que não reconhece suficiente importância a estas facetas do ser humano que Wordsworth qualificava de “sábia passividade” e Keats de “capacidade negativa”... Estaremos mesmo destinados a utilizar todas as nossas faculdades e capacidades latentes? Que fazer com aquelas que parecem mórbidas ou destruidoras? Talvez Marx estime que as nossas faculdades só se tornem destruidoras a partir do momento em que são travadas, caso em que está certamente enganado. E como distinguir as nossas aptidões positivas das negativas se esta distinção assenta no único critério do processo histórico relativo que permite estabelecê-la? Alguns argumentaram que mais vale cultivar verdadeiramente um único talento criativo do que aspirar a um desenvolvimento “completo” de si próprio, da mesma maneira que outros preferiram o auto-sacrifício à auto-afirmação.

Algumas destas críticas caem por si. Antes de mais, Marx era um materialista agudo demais para poder acreditar na possibilidade de um desenvolvimento humano ilimitado — estava tão consciente dos limites da nossa condição como da riqueza das nossas potencialidades:

“O homem é imediatamente ser natural. Enquanto ser natural vivo, está, por um lado, dotado de forças naturais, de energias vitais, é um ser natural activo [...]. Por outro lado, enquanto ser físico, corporal, sensível, ele é também um ser passivo, dependente e limitado, tal como o animal e a planta. Isto significa que os objectos dos seus impulsos existem fora de si e independentemente de si; mas correspondem às suas necessidades e são essenciais, indispensáveis para o exercício e para o desenvolvimento das suas energias” (EP, p. 130).

Por outro lado, talvez tenha feito demasiado caso da “produção”, mas também nunca utilizou este vocábulo na sua acepção mais estreitamente economista — pelo contrário, esta concepção era para ele sintomática do género de empobrecimento espiritual que o capitalismo tende tipicamente a favorecer. Na sua óptica, a “produção” é um conceito muito vasto que equivale mais ou menos à noção de “auto-actualização de si”; no sentido em que ele entende o termo, saborear um pêssego ou escutar um quarteto de cordas são comportamentos que participam de igual modo na nossa autocons- trução como a edificação de barragens ou o fabrico de cabides:

“No entanto, quando despojamos a riqueza dos limites da sua forma burguesa, o que vemos? Na verdade, uma coisa: a riqueza é a universalidade das necessidades, capacidades, desfrutes, forças produtivas, etc., dos indivíduos, universalidade produzida pela troca universal; é o domínio plenamente desenvolvido do homem sobre as forças naturais, tanto sobre a que lhe é própria como sobre aquela a que se chama natureza. É o florescimento dos seus dons criadores, que pressupõe apenas o desenvolvimento de todas as faculdades humanas como tais, sem as medir segundo um padrão dado. O homem reproduz-se, desse modo, não segundo um determinado carácter, mas na sua totalidade; não procura manter-se uma coisa fixa, mas participa no movimento absoluto do devir” (PCEP, p. 327).

Para Marx, portanto, o nosso ser genérico é naturalmente produtivo, na medida em que é pela transformação do mundo que as nossas faculdades nos são desvendadas:

“Ao produzir praticamente um mundo de objectos, ao dar forma à natureza não orgânica, o homem afirma-se como um ser genérico consciente, isto é, um ser que se liga à espécie como à sua própria natureza, ou a si próprio como ser genérico. É verdade que o animal também produz. [...] Mas produz apenas aquilo de que tem necessidade imediata para si e para a sua progenitura; produz de um modo parcial, enquanto o homem produz de um modo universal: ele só produz sob o império da necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo quando está liberto da necessidade física, e só produz verdadeiramente quando dela se liberta” (EP, pp. 63-64).

Somos livres quando, tal como os artistas, produzimos sem sermos agrilhoados por este ou aquele constrangimento físico; e é via esta actividade natural, de acordo com Marx, que todo o indivíduo particular afirma a sua humanidade naquilo que ela tem de mais essencial: quanto mais desenvolvo a minha personalidade individual ao dar forma ao mundo, mais compreendo que é através deste traço que me ligo mais profundamente aos outros seres humanos, e mais, por consequência, o meu ser individual e o meu ser genérico são um só, fazendo-me as minhas produções existir aos olhos de outrem exactamente como elas pressupõem que outrem existe para mim. Ora, não obstante o estatuto de verdade ontológica deste processo que decorre do próprio tipo de criaturas que somos, não deixa de haver certas formas de vida social que se entalam entre estas duas dimensões do nosso “eu” que constituem o individual e o comunitário: a “alienação”, tal como Marx a definiu nas suas obras de juventude, conduz a este mecanismo. Em certo sentido, a existência de uma falha desta ordem é inevitável: dado que o ser humano é atreito por essência a “materializar” a sua natureza em objectos de que se separa, a nossa liberdade enraíza-se inevitavelmente nestas “objectificações”. Mas, nas sociedades de classes, os objectos produzidos pela maioria dos trabalhadores masculinos e femininos são, além disso, apossados pela minoria daqueles ou daquelas que possuem e controlam os meios de produção, de modo que estes produtores já não conseguem reconhecer-se no mundo que criaram — deixando a sua auto- realização de constituir um fim em si, acabam por ser pura e simplesmente instrumentalizados por todos aqueles possuidores que prosperam em seu detrimento:

“É o mesmo que dizer que o produto do trabalho vem opor-se ao trabalho como um ser estranho, como uma potência independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou, materializou num objecto, é a transformação do trabalho em objecto [Vergegenständlichung], materialização do trabalho. A realização do trabalho é a sua materialização. Nas condições da economia política, esta realização do trabalho surge como a dissipação do operário, a materialização como perda e servidão materiais, a apropriação como alienação, como despojamento. [...]

Separando o homem, 1.° da sua natureza, 2.° do seu próprio “eu”, da sua própria função activa, da sua actividade vital, o trabalho alienado torna a espécie humana estranha ao homem: impõe ao homem a vida na espécie como uma substituição da sua vida individual” (EP, pp. 58 e 63).

O operário, aponta Marx, só tem o sentimento de pertencer a si próprio quando não trabalha, e sente-se exterior a si próprio quando trabalha; de forma que a alienação é um processo com aspectos múltiplos: não só separa o trabalhador da natureza e/ou do seu próprio corpo despojando-o desse corpo não orgânico constituído pelo objecto da sua produção e/ou o processo do seu trabalho, mas torna-o ainda estranho a esta actividade comunitária que o pode, só por ela, transformar num ser humano verdadeiro.

“De uma forma geral, a tese segundo a qual o homem é tornado estranho ao seu ser genérico significa que os homens são tornados estranhos uns aos outros e cada um é tornado estranho à essência humana” (EP, p. 65).

Enquanto suportam esta espécie de “perda de realidade”, os produtores reforçam paradoxalmente através do seu trabalho, o sistema que os espolia:

“Posto isto, é evidente que quanto mais o operário se despende no seu trabalho, mais poderoso se torna o mundo estranho, o mundo dos objectos que ele cria diante de si, e mais ele se empobrece a si mesmo, mais o seu mundo interior se torna pobre, menos possui algo de si. É exactamente como na religião. Quanto mais o homem atribui a Deus, menos conserva em si próprio. O operário põe a sua vida no objecto e assim ela já não lhe pertence, ela é do objecto. Quanto maior é esta actividade, mais o operário fica sem objecto. Ele não é o produto do seu trabalho. Quanto mais importante é o seu produto, menos ele é ele próprio. A desapropriação [Entausserung] do operário em proveito do seu produto significa não só que o seu trabalho se torna um objecto, uma existência exterior, mas também que o seu trabalho existe fora dele, independentemente dele, estranho a ele, e se torna um poder autónomo face a ele. A vida que ele entregou ao objecto opõe-se-lhe, hostil e estranha” (EP, pp. 58-59).

Os bens produzidos pelo trabalhador escapam ao seu controlo e adquirem um poder autónomo, acabando assim por exercer esse poder quase mágico que Marx qualificará mais tarde de “fetichismo da mercadoria” — sendo que para ele uma “mercadoria” é um objecto capaz de ser trocado por outro objecto cuja produção tenha necessitado de uma quantidade de trabalho equivalente. Como o explica em O Capital:

“Tomemos ainda duas mercadorias, sejam trigo e ferro. Seja qual for a sua relação de troca, ela pode sempre ser representada por uma equação na qual uma dada quantidade de trigo é igualada a uma qualquer quantidade de ferro, por exemplo: 1 quarter de trigo = a quilogramas de ferro. Que significa esta equação? Que em dois objectos diferentes, 1 quarter de trigo e a quilogramas de ferro, existe algo de comum. Os dois objectos são portanto iguais a um terceiro que em si mesmo não é um nem outro. Cada um deles, enquanto valor de troca, tem de ser redutível ao terceiro, independentemente do outro. [... ]

Este algo de comum não pode ser uma propriedade natural qualquer, geométrica, física, química, etc., das mercadorias. As suas qualidades naturais só entram em consideração na medida em que lhes dêem uma utilidade que delas faça valor de uso. Mas, por outro lado, é evidente que nos abstraímos do valor de uso das mercadorias quando as trocamos e que qualquer relação de troca é precisamente caracterizada por essa abstracção. [...] Como valores de uso, as mercadorias são, antes de mais, de qualidade diferente; como valores de troca apenas podem ser de diferente quantidade.

Quando posto de lado o valor de uso das mercadorias, apenas lhes resta uma qualidade, a de serem produtos do trabalho” (C, Livro primeiro, primeira secção, capítulo primeiro, I, pp. 564-565; Ca, I, pp. 47-48).

Para Marx, as mercadorias são então entidades subtis que vivem uma espécie de dupla vida exactamente na medida em que esse “não-sei-quê” que faz delas mercadorias é curiosamente independente das suas propriedades materiais. Em primeiro lugar existem com o único fim de serem trocadas; e, apesar das aparências, de seguida um dado objecto é exactamente igual a qualquer outro objecto que necessite do emprego de uma mesma quantidade de força de trabalho. As mercadorias são, enquanto tais, fenómenos totalmente abstractos que se relacionam com outras mercadorias sem que essa relação entre coisas tenha a ver com a vida concreta dos seus produtores:

“O misterioso da forma mercadoria reside portanto simplesmente no facto de ela reflectir para os homens os caracteres sociais do seu próprio trabalho enquanto propriedades materiais dos próprios produtos do trabalho, como propriedades naturais, sociais, dessas coisas, e por isso também a relação social dos produtores com o trabalho colectivo como uma relação social de objectos que existe fora deles. Eis como esses produtos se convertem em mercadorias, isto é, em coisas evidentes ou não evidentes, ou coisas sociais. [... ] Mas a forma valor e a relação de valor dos produtos do trabalho nada têm a ver com a sua natureza física. É apenas uma determinada relação social dos homens entre si que aqui reveste para eles a forma fantástica de uma relação das coisas entre elas. Para encontrar uma analogia com este fenómeno é preciso entrar na região nublada do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano têm o aspecto de seres independentes, dotados de corpos particulares, em comunicação com os homens e entre si. O mesmo se passa com os produtos da mão do homem no mundo mercantil. É o que se pode chamar o fetichismo apegado aos produtos do trabalho, logo que eles se apresentam como mercadorias, fetichismo inseparável desse modo de produção” (C, Livro primeiro, primeira secção, capítulo primeiro, IV, p. 1639, n. 1 da p. 606 e p. 606; Ca, I, p. 88).

Em resumo, o capitalismo é um mundo em que o sujeito e o objecto estão invertidos — um regime económico no qual os produtores estão submetidos a e são determinados pelas suas próprias produções, revestindo os produtos do trabalho humano uma forma opaca e imperiosa que prevalece sobre a vida humana: o sujeito humano cria um objecto que se torna um pseudo-sujeito, capaz de rebaixar o seu próprio criador para o nível de coisa manipulada. Quando o capital emprega o trabalho em vez do inverso, os mortos acabam mesmo por vampirizar os vivos por intermédio desse trabalho “morto” ou “acumulado” que o capital constitui:

“Quanto menos comes, bebes, compras livros; quanto menos vais a espectáculos, ao baile, ao cabaré; quanto menos pensas, amas, estudas; quanto menos cantas, pintas, fazes versos, etc., mais poupas, mais aumentas o teu tesouro que nem os mitos nem a poeira hão-de comer, e mais aumenta o teu capital. Quanto menos tu fores e te exteriorizares, mais possuirás, maior será a tua vida alienada, mais acumulas o teu próprio ser alienado. [...] Tudo o que não possas fazer, o teu dinheiro pode-o” (EP, p. 94).

Este processo de reificação sob o efeito do qual o animado e o inanimado são invertidos e os mortos tiranizam os vivos é designadamente atestado pelo poder sem limites do dinheiro, verdadeira “mercadoria universal”, segundo Marx:

“Tal a força do dinheiro, tal a minha força. As minhas qualidade e a força do meu ser são as qualidades do dinheiro; elas não são minhas, seu possuidor. O que eu sou, o que eu posso não é portanto de modo algum determinado pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar a mais bela mulher; então não sou feio, porque o efeito da fealdade, a sua força repulsiva é anulada pelo dinheiro. Como indivíduo sou estropiado, mas o dinheiro dá-me vinte e quatro pés; portanto não sou estropiado; sou um homem mau, desonesto, sem escrúpulos, estúpido: mas o dinheiro é venerado, e eu, que o possuo, também” (EP, pp. 115-116).

O dinheiro, acrescenta Marx, “é a prostituta universal, o alcoviteiro universal dos homens e dos povos” (EP, p. 116), uma espécie de linguagem confusa que confunde e inverte todas as qualidades humanas, permitindo que tudo se transforme como por magia, noutra coisa qualquer.

Segundo Marx, é através do comunismo que os homens e as mulheres se apropriarão do seu mundo, reencontrarão o uso pleno de todos os seus sentidos corporais, se entregarão plenamente a todas as actividades vitais e serão devolvidos ao seu ser comum: para ele, apenas este género de sistema político poderia permitir-nos retomar a posse do nosso ser alienado ao restituir-nos esses poderes que as sociedades de classes colocam como estranhos a nós próprios. Se os meios de produção fossem possuídos em comum e democraticamente controlados, acha ele, o mundo que criaríamos juntos tornar-se-ia a nossa propriedade comum, e a auto-produção de cada um acabaria então por fazer parte integrante da auto-realização de todos.


Inclusão 14/08/2018