O PCB-PPS e a Cultura Brasileira: Apontamentos

Ivan Alves Filho


II


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Vamos ver rapidamente o que entendemos por cultura.

O termo cultura possui uma longa história — tão longa quanto a própria história dos homens, nunca é demais lembrar. Ligado inicialmente à ideia de cultivo — o que nos remete a algo naturalmente prático — , o termo cultura passou a designar, genericamente, as atividades relacionadas às coisas do espírito. Hoje, o termo cultura tende a sofrer uma nova mutação, refletindo um certo estar no mundo. Essa noção tem a vantagem de unificar aquilo que é prático ao que é também reflexão, e, mesmo, lúdico. A rigor, esse sempre foi o papel da cultura. O diferencial que pode emergir hoje é a autonomia crescente do fato cultural, impondo-se diretamente sem instituições intermediárias ou matrizes tradicionais, como as igrejas e o próprio Estado.

Enquanto conjunto de representações imaginárias e sensitivas da população, a cultura é, na verdade, uma forma de vivenciar o mundo. Ou seja, um elemento gerador de identidades. Uma criação coletiva, a qual pressupõe um objeto e um sujeito (sem que haja dominação e, sim, interação, entre eles). Por isso, ela não pode ser reduzida à simples dimensão de um produto. Algo para a venda, apenas. Pois ela vai muito além disso — a cultura, pode-se dizer, estrutura nossas personalidades. Ela é depositária das nossas memórias. Das nossas recordações de infância. Dos ritmos, cores e cheiros da nossa vida. Dos nossos gostos, paladares, sonhos, tatos, devaneios, ritmos. Dos nossos olhares e dos nossos pesares. A cultura é tudo isso e muito mais. Ou seja, ela forja cidadãos — os mais completos possíveis. Cidadãos que se valem da sua principal arma: os cinco sentidos que humanizam o homem.

O Brasil se apresenta hoje como um dos países mais importantes do mundo, tanto em extensão territorial quanto em densidade populacional ou presença industrial. Mais: ao longo do século XX, o país se configurou como um dos países mais criativos nos marcos da chamada cultura ocidental. Da arquitetura de Brasília ao Cinema Novo, da música de Villa-Lobos à Bossa Nova e à MPB, da Semana de Arte Moderna de 1922 ao Teatro do Oprimido e deste às manifestações esportivas as mais diversas, a cultura brasileira tomou parte ativa na construção do mundo moderno. Intelectuais, artistas, escritores e desportistas do porte de Oscar Niemeyer, Josué de Castro, Celso Furtado, Pelé, Jorge Amado, Milton Santos, Ferreira Gullar, Darcy Ribeiro, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e outros são admirados em vários pontos do mundo. Talvez por isso, a trajetória cultural brasileira nos pareça tão vigorosa quanto aquela da Espanha republicana, a Espanha de Garcia Lorca, Rafael Alberti, Luis Buñuel, Antonio Machado, Pablo Casals e Pablo Picasso. Ou aquela da Rússia, com Vladimir Maiacovski, Serguei Eisenstein, Dziga Vertov, Marc Chagall, Malevitch, Máximo Gorki, Kandinsky e muitos outros. Ou ainda da própria Itália, com Antonio Gramsci, Norberto Bobbio, Italo Calvino, Vittorio de Sica e a turma do neorrealismo, Umberto Eco e outros. Isso, para não aludirmos à verdadeira explosão de criatividade manifestada pela cultura judaica na Europa Central, revelando ao mundo nomes como Franz Kafka, S. Freud, G. Lukács, Walter Benjamin e W. Reich — todos homens de expressão alemã. Justiça seja feita, os EUA, país que não se pautou pela existência de uma cultura politizada como os demais países ou regiões citados, brilharam também com uma música popular — blues, jazz — de altíssimo nível, além de um cinema extraordinariamente rico, sobretudo nos anos 40 e 50. Por sinal, seus intelectuais e escritores também sofreriam tremendas perseguições no chamado período das caças às bruxas. Mais para a segunda metade do século XX, a cultura acadêmica marxista norte-americana se firmou no mundo inteiro, por intermédio de nomes como Leo Huberman, Paul Sweezy e Marshall Berman.

Então, sem medo de errar, diríamos que Brasil, Espanha, Itália, Rússia, faixas da Europa Central, e a região de Nova York, sobretudo, foram os grandes centros irradiadores da modernidade neste século XX. E, não por acaso, essas áreas enfrentaram a fúria do autoritarismo, tiveram seus destinos marcados pela truculência política. Mas não se dobraram. A cultura, no fundo, é o outro nome da liberdade.

Acreditamos que a cultura tenha um papel cada vez mais destacado na luta mais geral pela reconstrução do Brasil, sobretudo na era da sociedade do conhecimento e das chamadas indústrias criativas. A extensão dos nossos problemas é realmente preocupante, tamanha a velocidade do desmoronamento da esfera pública no Brasil. Há uma verdadeira esquizofrenia social entre nós. Os números e indicativos econômicos são alvissareiros, alardeia uma certa imprensa — mas a tensão social só faz aumentar, a verdade é essa. Cerca de 50 mil pessoas são assassinadas por ano no país. Outras 40 mil — os números são de 2011 — morrem anualmente em acidentes de trânsito. O fosso entre aqueles que muito possuem e aqueles que praticamente nada possuem só faz crescer e o mesmo acontece com a desesperança no coração das pessoas. Impressiona o número de jovens desempregados e a falta de perspectivas de muitos deles: dados oficiais admitem que metade dos jovens entre 18 e 24 anos não encontra trabalho. O cinismo de determinados governantes, a decadência que toma conta das nossas ruas, tudo isso assusta o povo brasileiro. O Estado vai para um lado e a sociedade para outro, em uma valsa do desencontro. A cultura talvez possa estabelecer determinadas pontes.

Nós arriscaríamos até a dizer que houve um tempo em que se discutia a questão agrária, a questão do voto eleitoral para este ou aquele setor da sociedade, debatia-se até mesmo a questão das relações raciais — tudo sob a ótica da chamada questão nacional. Classificar uma questão como nacional era, a rigor, uma maneira de salientar sua importância para o momento presente. Sua dimensão estrutural, digamos. Outro não era o sentido das reformas de base no Governo Jango, às vésperas do Golpe de 64. Hoje, com a ampliação do desgaste das instituições e das funções do Estado e o acúmulo de problemas em todos os setores da vida do país, nós quase ousaríamos dizer que o Brasil é, por si só, uma questão nacional brasileira. No sentido de que o país todo precisa urgentemente ser questionado por cada um de nós, em suas múltiplas práticas.


Inclusão 16/08/2019