O PCB-PPS e a Cultura Brasileira: Apontamentos

Ivan Alves Filho


V


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Se a palavra e a imagem formam um poder, sobretudo nos dias que correm, como reunir os homens de cultura, que têm uma tendência, por vezes, a realizar seu trabalho de forma quase isolada? A própria realidade vem dando algumas respostas a isso, por intermédio das diversas associações e grêmios artísticos, grupos de reflexão filosófica e científica, formações folclóricas, escolas de arte, bandas de música, centros culturais, e ainda universidades, colégios, academias, conselhos e sociedades profissionais, jornais e revistas de cultura impressos ou eletrônicos — revelando que o fazedor de cultura também sabe se equilibrar entre a necessária inserção em uma coletividade e a imperiosa expressão de uma individualidade. Assim as ideias e as ações podem perfeitamente caminhar juntas. Afinal, conforme lembrou certa vez o psicanalista Erich Fromm, o ser humano nasce só e morre só — mas vive junto com os demais. “Somos feitos uns para os outros”, vaticinou Marco Aurélio e essa é uma regra básica da nossa existência. O Eu é também o Outro. Assim se forma o Nós. Os nós.

Que fique claro, no entanto, que nenhum setor pode falar em nome de toda a sociedade, e muito menos se arvorar em redimi-la. A noção de sujeito histórico pode ser considerada, nesse sentido, mais uma mistificação.

Seja como for, a História demonstra que, sob o regime feudal, havia duas grandes classes sociais: os senhores e os servos da gleba. Mas foi o artesão — de onde se originou tanto o burguês quanto o proletário — que desempatou a disputa: o capitalismo realmente revolucionário surgiu da esfera produtiva capitaneada por esse artesão, nos burgos. Sob o regime capitalista, em sua fase atual, ocorre o mesmo: burgueses e proletários disputam espaços na sociedade, mas o fazedor de cultura, de ciência e de tecnologia é aquele que aponta frequentemente as saídas. Ainda que não represente o setor majoritário da sociedade hoje. Mas seu peso qualitativo é inegável.

O trabalho material está no imaterial e o imaterial no material. A mercadoria não é um mero objeto e sim uma relação social, resultante da ação do capital nas sociedades contemporâneas. E, a rigor, o que vai importar é a relação que o trabalho humano estabelece com o capital. É isso que o torna produtivo ou não. Em grande parte dos países centrais — e, também, em algumas áreas consideradas emergentes do ponto de vista econômico —, os trabalhadores da ciência (engenheiros, pesquisadores, técnicos), os professores dos mais diversos níveis, os intelectuais e artistas, os artesãos representam um contingente cada vez mais significativo no conjunto da massa trabalhadora do século XXI. Inversamente, o papel da classe operária tradicional tende a se reduzir, passando, na França, de quase 40% do conjunto dos trabalhadores para algo em torno de 25%, no espaço de apenas três décadas (isto é, do final dos anos 70 do século XX a meados da primeira década do século XXI).

No Brasil, o chamado setor secundário representa apenas 16% do total da população economicamente ativa. A revolução industrial soterrou a escravidão e submeteu a seus fins o campesinato tradicional. A revolução tecnocientífica em curso — ao alargar as fronteiras do trabalho em direção a atividades de cunho mais cultural, científico, técnico e artístico — vai tornando obsoleta, desta feita, faixas consideráveis do próprio trabalho operário tradicional. Não é o fim do trabalho — mas a entrada em cena do trabalho criativo em faixas cada vez mais consideráveis da produção, em substituição ao trabalho embrutecedor, às tarefas mais duras e repetitivas. A massa cinzenta é a matéria-prima da sociedade do conhecimento.

“Na medida em que a grande indústria se desenvolve, a criação efetiva de valor passa a depender menos do tempo ou do montante de trabalho empregue e mais do poder dos agentes postos em ação durante o tempo de trabalho, agentes esses cuja ‘poderosa efetividade' está, por sua vez, fora de qualquer proporção com o trabalho direto gasto na sua produção, dependendo antes do estado geral das ciências e do progresso da tecnologia, ou seja da aplicação da ciência à produção...” Este trecho foi escrito por Karl Marx, em 1858.

Difícil imaginar uma esquerda contemporânea sem repensar o papel do homem na economia e também uma reforma democrática do Estado. Algo que caminhe no sentido de aproximar governantes e governados. E que aponte para uma situação — como queria Marx — que implique a administração das coisas e não dos homens. Como também não dá para imaginar uma esquerda atual sem estender a democracia ao cotidiano, fundindo formas tradicionais de representação com a adoção de plebiscitos e práticas de poder local (e por isso entendemos poder exercido nos locais de trabalho, estudo, moradia). Mais: não dá para entender uma democracia que não questiona a divisão da renda, hoje tão favorável ao capital, em detrimento do trabalho.

O conhecimento é um meio de produção e como ele pertence ao trabalhador abrem-se perspectivas novas para ele. Ainda que o capitalismo tenha sempre integrado o saber às suas práticas produtivas, é também verdade que nunca o fez com tanto vigor como agora. Se, por um lado, é fato que o capital tem uma tendência a suprimir trabalho humano, por outro, é preciso constatar que ocorre uma mudança profunda no próprio caráter do trabalho, com a entrada em cena do trabalhador do conhecimento. Mesmo que continue a produzir um valor superior àquele de sua força de trabalho, a gerar mais-valia, a presença do trabalhador do conhecimento resulta de uma inegável ampliação do campo produtivo. E como o que cria valor é a parte do capital investida na força de trabalho, a renovação atual vem se dando na esteira do conhecimento. Mais, até: esse novo tipo de trabalhador corresponde a mutações que se processam na base material do capitalismo, notadamente a automação, a qual exige de quem trabalha uma qualificação cada vez maior, enquanto aponta para a base técnica de um mundo sem classes sociais antagônicas. A chamada sociedade do conhecimento — com seus novos sujeitos e suas novas tecnologias avança inegavelmente sobre o terreno do capitalismo tradicional, industrial.

A outra ponta — nunca é demais lembrar — também revela uma realidade para lá de verdadeira: a precariedade do trabalho humano e a concentração do capital conhecem um surto jamais visto na História. Dados da ONU destacaram, há alguns anos, que apenas 358 pessoas na Terra detinham mais recursos do que metade da população mundial. E apenas três indivíduos — isso mesmo: três indivíduos — possuem um capital equivalente ao produto interno bruto anual de 40% dos países. Em setembro de 2008, a ONU revelava mais um dado estarrecedor: um bilhão e 400 milhões de pessoas no mundo viviam com menos de 1,25 dólar por dia! E aumenta também a defasagem entre as nações desenvolvidas e as regiões mantidas à margem, praticamente, das vantagens do desenvolvimento social e econômico. E, muitas vezes, das condições mínimas de sobrevivência: afinal, cerca de um bilhão de pessoas — um sétimo da humanidade, praticamente — sequer possuem água potável para beber.

A desigualdade é a outra face do desenvolvimento — ao menos desse tipo de desenvolvimento. Seja como for, em um palco em constante movimento, acontece a mudança, também constante, do papel dos atores.

Conforme destacou o pensador palestino Edward Said, o revolucionário italiano Antonio Gramsci foi quem “pela primeira vez, viu os intelectuais, e não as classes sociais, como essenciais para o funcionamento das sociedades modernas...”. Com efeito, Gramsci analisava o papel histórico dos intelectuais, dividindo-os em intelectuais tradicionais — professores, clérigos, administradores em geral — e intelectuais orgânicos — aqueles mais diretamente ligados a interesses de classes, dominantes ou subalternas. Ora, a sociedade do conhecimento é o campo por excelência da atuação desse último tipo de intelectual ou fazedor da cultura — esse o ponto que queremos destacar. Nas indústrias do conhecimento, a que mais cresce nas chamadas sociedades centrais, o papel do intelectual no sentido gramsciano do termo não para de crescer. Ainda em meados dos anos 40, o sociólogo norte-americano Wright Mills percebeu igualmente essa mutação, dedicando-se ao estudo do “aparelho cultural” por enxergar nos intelectuais “uma possível agência de mudanças”.

E talvez fosse o caso de se dizer ainda: o grande denominador é a cultura. Precisamos de algo como um Partido do Conhecimento, que reconheça o papel cada vez mais central exercido pela cultura. Pois é ela que estrutura a vida contemporânea, define as opções e, finalmente, projeta novos atores sobre a cena social, econômica e política.

O velho Antonio Gramsci ensinava que o intelectual sabe, mas não sente. E que o povo sente, mas não sabe. É fundamental começar a romper com essa dicotomia. A própria cultura aponta aqui e ali para isso. Essa, talvez, a maior revolução cultural a ser realizada no decurso do século XXI. Uma cultura fundamentalmente humana. Afinal, a História ensina que o homem se faz homem pela cultura. É por intermédio dela que ele se desgarra da natureza, aventurando-se pelo caminho da criação e da beleza. Pelos caminhos da vida. Doravante, o cultural e o natural são inseparáveis no homem.

Ou seja, o homem é a soma de todas as suas experiências sociais. É aqui que entra a cultura, como fator que agrega sentido às nossas vidas. Entendemos que a cultura não tem como ser reduzida à mera produção de artigos para a venda. Vale dizer, a cultura é, acima de tudo, um posicionamento diante do que aí está. E ela só faz unir, o que é ainda melhor.

É o que muitos desejam: que a cultura corresponda, de fato, e cada vez mais, à identidade do homem. O mínimo que podemos dizer é que essa identidade — ao menos no que toca ao homem brasileiro — está profundamente comprometida. A nossa autoestima encontra-se severamente abalada. Não que tenhamos parado de criar. Há muitos exemplos disso. Mas é impossível negar: há uma inquietação no ar. Estamos perdendo a nossa cordialidade e a cultura do crime que se espalha pela sociedade, parece, por momentos, querer destruir a nossa alma, o nosso patrimônio civilizatório.

Dialeticamente, a vida põe e dispõe. Assim, experiências recentes levadas a cabo em determinadas prefeituras e estados brasileiros, ou implementadas por organizações do chamado terceiro setor e do poder local — apoiadas em rede cada vez maior de cursos voltados para a dança, a música, as artes, a jardinagem e o artesanato em geral, dentro e fora das escolas — demonstram que há luz no fim do túnel. E também revelam esses experimentos que a violência recua — e o faz drasticamente, por sinal — diante da recuperação (e em certos casos até da criação, para lá de desejável) de uma real identidade por parte das pessoas.

Pois identidade é crucial e implica constante criação. Como sabemos, nada é estático na vida. Um povo que não se afirma, que não cultiva o amor-próprio ou abre mão de pensar por sua conta e risco, está fadado a viver novas aventuras autoritárias. A História ensina que tudo que é feito violando o contexto cultural raramente alcança êxito.

Cultura e política atuam na comunidade. Isto é, dividem o mesmo espaço. Ajudam a mudar a vida. Ajudam a mudar de vida. E a vida tem mostrado que a cultura precisa da política para ultrapassar por vezes a erudição acadêmica e o tecnicismo e a política precisa da cultura para não se limitar a ser a arte da manutenção do poder a qualquer preço. Afinal, nada melhor do que a cultura para dar uma razão à nossa existência. A cultura cria. A cultura indaga. A cultura inclui. A cultura afirma seu compromisso com o homem, lutando à sua maneira por uma nova ordem ambiental mundial, pelo fim da opressão das minorias, pelo bom combate sempre.

As sociedades são submetidas a determinadas leis e essas leis são mutáveis. Essa, a única certeza que temos em relação a elas. Assim, questionamos hoje cada vez mais o que comemos e o que vestimos, a maneira como moramos e nos transportamos. São sinais claros de mudança de marco civilizatório, que nada mais é do que a busca por uma forma de se viver em níveis razoáveis de harmonia e bem-estar. Estamos mudando e queremos mudar mais. Nesse processo, não se pode negar que o espaço para o afeto nas relações privadas e/ou familiares contribui para irrigar de tolerância e concórdia a sociedade em seu conjunto. Isso também é mudar

Atualmente, existe como que um retorno às formas de produção presentes na segunda metade do século XIX até o começo da segunda metade do século seguinte. No sentido de que é possível cumprir determinadas funções de trabalho de modo quase autossuficiente (mas não isolado). Só que o produtor, dono do capital, controla o processo produtivo com um aparato tecnológico infinitamente superior.

As classes — e as lutas entre elas — só poderão ser superadas historicamente por relações de trabalho que deixem de recorrer à exploração do homem pelo homem —, como já o aponta o recurso à robótica. Somente uma nova base material pode sustentar, no topo, relações de produção de outro tipo. Em 1917 na Rússia, durante a primeira grande rebelião proletária, havia as condições políticas para a Revolução — mas não tinham despontado ainda as condições econômicas. O Ocidente era mais avançado em matéria de desenvolvimento econômico — mas não em conteúdo político-revolucionário. É como se a Revolução Russa tivesse colocado a política na frente da economia (ou das forças produtivas) e o Ocidente capitalista fizesse justamente o contrário disso.

Se o desenvolvimento das forças produtivas é muito mais favorável atualmente às mudanças — devido ao nível técnico da produção, ademais altamente socializada —, perdemos não obstante, momentaneamente, as condições políticas. Contudo, a base material para uma nova sociedade — a sociedade da cooperação — já está dada. Ao menos tecnicamente. É um alento. Uma razão para o otimismo.

Vale dizer, o capitalismo só vicejou porque forjou uma base material própria — a unidade fabril. A sociedade da cooperação, ou que outro nome tenha a sociedade comunista do futuro, também precisa forjar a sua, desenvolvendo a automação, tornando desnecessária assim a exploração do trabalho de um homem por outro. As máquinas a serviço do homem e não do capital. E essa é uma grande esperança. E esperanças são símbolos. Mas é preciso buscar a adequação entre os diferentes níveis da realidade. E isso não se faz sem clareza.

Assim, é preciso irrigar de cultura o terreno da política, em ampla mobilização para humanizar o próprio homem.


Inclusão 16/08/2019