A Alternativa Italiana do PCI


A Natureza Laica do PCI
Giorgio Amendola(9)


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Polémicas recentes: levantaram de novo a questão da natureza do PCI e do seu internacionalismo. Não me parece que se deva deixar cair o problema; no entanto, devemos lembrar, antes de mais, como a natureza do Partido Comunista tem vindo a ser renovada e transformada no decurso dos seus cinquenta anos de existência. Felizmente os homens aprendem com a experiência, e os partidos também. Por isso, temos que olhar para as diferenças existentes entre o Partido Comunista de hoje, enquanto presente na realidade italiana (de si muito diferente do que era antes) e o Partido Comunista da Itália, ramo da Internacional Comunista, fundado em Livorno em 21 de Janeiro de 1921.

O primeiro ponto a sublinhar é a natureza secular do partido, que é um instrumento político para a realização de certos objectivos de transformação democrática e socialista. Uma concepção secular do Estado e do partido político reconhece a liberdade de consciência de cada cidadão, e por isso também do militante comprometido numa actividade consciente e disciplinada do partido. O integralismo, pelo contrário, confunde religião e política e tenta subordinar todos os aspectos da vida individual, mesmo os mais íntimos recônditos da consciência, ao controle exterior.

Naturalmente, há várias formas de integralismo. Há um integralismo católico, cujas manifestações continuam a envenenar a vida política italiana, transformando, por exemplo, o problema civil do divórcio num factor de cisão e de discriminação na vida nacional. Há um integralismo islâmico, que tenta encontrar o redespertar nacional do povo árabe na doutrina de Maomé. Há um integralismo judeu (sionismo) o qual tenta confundir o destino de um Estado teocrático territorialmente circunscrito, comprometido numa política de anexação condenada pelas Nações Unidas, com a necessidade universal de salvaguardar a liberdade religiosa e a personalidade cultural dos Judeus contra toda a intolerância anti-semítica.

Liberdade de consciência

Contra o integralismo, como fonte de intolerância e fanatismo, levanta-se a concepção secular da vida, que distingue a política da religião e deixa a solução dos problemas mais importantes da vida à livre escolha à liberdade de consciência do indivíduo. Na sua luta para emancipar os trabalhadores, o movimento socialista retomou a liberdade de consciência conquistada pela revolução democrática de 89 e fê-lo parte do seu património inalienável. Naturalmente, existiu, e ainda existe, um integralismo socialista, o qual se exprime particularmente numa concepção dogmática do partido revolucionário, omnipresente em todas as esferas do pensamento e da, acção — da política à cultura, à arte, à filosofia e à religião. A responsabilidade desta concepção, que nós partilhámos durante algum tempo, de um partido que usa critérios ideológicos na avaliação de correntes artísticas e culturais, muito para lá dos limites da política e do dever revolucionário, não pode ser apenas atribuída a Estaline. A experiência mostrou, muito antes do XX Congresso, que nem sequer o encontro generoso de revolucionários pôde salvar um partido, assim concebido, dos perigos do dogmatismo e do sectarismo. Por esta razão, já desde o período da Resistência, Togliatti quebrou com o velho esquema do partido, que reclamava dele a última palavra em todos os campos, mesmo na ciência, e moldou o «novo» partido como um instrumento essencialmente político.

O artigo 2.° do Estatuto do PCI estabelece que os cidadãos que aceitarem o programa político do partido e que estejam dispostos a trabalhar para o realizar podem entrar no PCI «sem olhar à sua raça, fé religiosa e posições filosóficas». Embora a presença de um artigo no Estatuto não implique uma aplicação imediata e convicta, indica, pelo menos, a existência de uma experiência a caminho. Tendências dentro do movimento da classe operária e dentro do próprio partido para o considerar como uma entidade omnipresente e englobante continuam a existir não somente em relação com memórias nostálgicas dos velhos tempos «heróicos», mas também por causa do sentimento religioso que leva tantos trabalhadores a encarar o socialismo como uma «fé» mística, e o partido como uma «Igreja» — e se possível, uma Igreja sem «Concílios» renovadores. Quem não compreende a força messiânica desse sentimento, e a capacidade de sacrifício que ele desperta, não pode entender os ideais que iluminam a dura vida diária dos trabalhadores.

Compreendendo perfeitamente esses sentimentos, Togliatti trabalhou pacientemente para afirmar a natureza secular do partido e o consequente respeito pela liberdade da consciência individual. Ele era altamente sensível ao problema da coexistência cívica dentro do partido de ateus e de crentes, com pleno respeito pelas posições pessoais e ensinou-nos a todos a superar o que em nós restava do velho anticlericalismo. Isto criou dentro do partido um hábito cívico de não interferência na vida privada dos militantes. O reconhecimento completo da total legitimidade das diferentes tendências artísticas foi mais difícil. Todo o ensinamento de Togliatti neste campo assentou no princípio secular da tolerância e não foi por acaso que ele traduziu o Ensaio de Voltaire para italiano. Tolerância não significa indiferença, mas aceitação da livre confrontação de opiniões, na qual cada participante, ao defender as suas próprias posições, pode ir buscar ao outro o que pensa que lhe pode ser útil. Naturalmente, nenhum comunista, e muito menos Togliatti, pensariam em negar a ligação entre política, cultura, filosofia, arte e religião. A consciência do homem é indivisível. Mas compete a cada militante, na liberdade da sua consciência, perceber a ligação que o leva, na base das suas próprias convicções filosóficas, da sua fé religiosa e da sua experiência artística, a aprovar o programa do partido e a entregar-se à luta para o realizar.

Pesquisa, diálogo, autonomia

O papel desempenhado pelo partido na luta antifascista e na Resistência fez entrar nas suas fileiras homens de formação cultural diversa e oriundos de experiências políticas diferentes. Isso deu uma concreticidade humana à natureza secular do partido, o qual, acima e para além da necessária medida de disciplina política, deixa vasto campo para a pesquisa, para o diálogo e autonomia em todas as áreas do pensamento. A presença dentro do partido de filósofos de diferentes escolas é evidente. Hoje em dia os comunistas participam, com opiniões diversas, na luta diária que se trava nas artes, nos problemas de investigação e na questão de uma nova organização democrática da vida cultural. E ninguém poderá pensar em pedir ao Comité Central, ou ao seu Departamento Cultural, para arbitrar as controvérsias entre as diferentes tendências. O papel do partido na luta para a democracia real nas nossas instituições culturais é assegurar as condições de um debate frutuoso, não adulterado pelo esquematismo e pela intolerância.

O progresso na livre investigação científica é ainda mais evidente no campo dos estudos históricos. Mesmo na história do próprio partido, ou seja, no tema mais delicado, que atinge directamente a própria consciência do partido e o lugar por ele ocupado na história italiana, é actualmente assunto de controvérsia aberta entre historiadores e militantes, todos eles empenhados numa investigação apaixonante, que está a dar resultados proveitosos. O partido recusou-se a ter uma história oficial o abriu os seus arquivos aos estudiosos das diferentes escolas.

A natureza do PCI, como novo partido, toma-o diferente dos outros partidos comunistas. Digo diferente e não melhor, pois acredito que cada partido é expressão original e peculiar do processo nacional. Esta diversidade está de acordo com a nossa concepção de internacionalismo, na qual cada partido comunista afirma a sua autonomia, respondendo pelas suas acções perante os seus próprios membros e perante o seu país. Esta concepção de internacionalismo leva-nos a exprimir francamente as nossas opiniões sobre o que os outros partidos comunistas fazem. Já o fizemos em várias ocasiões e não apenas a respeito da Checoslováquia. Mas nós exprimimos as nossas críticas, quando as julgamos necessárias, com a prudência do nosso sentido da responsabilidade e do nosso desejo de não quebrar os laços internacionalistas que fazem dos comunistas italianos irmãos dos camaradas de todo o mundo que lutam em diferentes situações e com diferentes políticas pela paz e pelo socialismo. Para o PCI e para o movimento da classe trabalhadora, o internacionalismo proletário tem sido sempre o elemento de coesão e força, primeiro na luta contra o fascismo e, hoje em dia, na luta para avançar na via italiana para o socialismo.

Também sentimos o dever de não transformar a nossa crítica em agitação e intervenção na vida interna dos outros partidos comunistas. Assim como nós, comunistas italianos, não toleraríamos intervenção de qualquer espécie na nossa vida interna e na realização da nossa linha política, não queremos que a nossa, crítica se transforme em intervenção nos assuntos internos de outros partidos. Neste aspecto a experiência mostrou que a intervenção exterior é geralmente inútil e, muitas vezes, francamente nociva.

A face que o socialismo assume em determinado país depende das opções, lutas e sacrifícios que o povo desse país é capaz de fazer. Socialismo como liberdade não pode ser importado do exterior, mas tem de ser conquistado com as forças próprias de cada um. Dentro do quadro dos laços fraternais que nos ligam a todas as forças que lutam pela paz e pelo socialismo no mundo, o nosso internacionalismo exprime-se no nosso esforço para construir condições de existência pacífica que permitam a todos os povos decidir livremente do seu próprio futuro, sem intervenções exteriores, quer sejam da revolução quer da contra-revolução.


Notas de rodapé:

(9) Membro da direcção do PCI, deputado, membro do Parlamento Europeu. «The lay Nature of the Communist Party», In The Italian Communists, (foreign Bulletin of the PCI), n.º 6, Novembro-Dezembro de 1972, pp. 12-161. (retornar ao texto)

Inclusão 17/06/2015