O Poder Popular em Portugal

M. Vieira e F. Oliveira


VIII - Considerações Finais


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O golpe reaccionário, evidentemente, não foi apresentado como tal. Tendo como pretexto a luta dos soldados paraquedistas, o apoio de massas que o PC lhe proporcionou e o comportamento das unidades militares de Lisboa comandadas por oficiais progressistas, que também chegaram a esboçar alguma solidariedade nesse sentido, o Estado-Maior da reacção apresentou os acontecimentos como sendo uma tentativa insurrecional da esquerda e agiu dentro da «legalidade» vigente, para «salvaguardar as instituições democráticas». O seu esquema sempre foi chamado de «dispositivo de contenção do golpe esquerdista de 25 de Novembro».

O facto da direita ter podido forjar uma «tentativa de golpe de esquerda» deveu-se fundamentalmente à política aventureira e oportunista do PCP. Esse partido, ao promover o cerco de massas ao VI Governo, e ao desenvolver pressões militares sectorizadas para mudar a correlação de forças no Conselho da Revolução, embora visasse apenas aumentar a sua influência nos centros superiores de decisão, terminou por colocar, em grande medida, a questão do Poder de Estado na ordem do dia. Quando toda a escala de comando la Força Aérea foi posta em causa com a luta dos paraquedistas, na qual, como já vimos, o PC participou activamente desde o início, e não foi criada imediatamente uma alternativa revolucionária, era evidente que os acontecimentos deveriam precipitar-se. Face a isso, o Partido Comunista apresentou-se para negociar com a burguesia, mas esta, que já havia iniciado o seu plano operativo visando objectivos estratégicos, não se deteve em considerações de ordem táctica e impôs o confronto global, que o reformismo, pela sua natureza mesma, não podia aceitar. A partir daí a sua capitulação tomar-se-ia inevitável.

No que diz respeito à esquerda revolucionária e àqueles sectores da classe operária que, devido ao seu nível mais elevado de consciência e organização, situavam-se já fora da influência do reformismo o problema que se colocava era de uma complexidade extraordinária. Era evidente que a situação se deteriorava vertiginosamente e estava próxima a ruptura definitiva. No entanto, a classe operária ainda não tinha condições de desencadear o processo insurreccional e assumir responsabilidades de Poder. O peso político tanto do PC como do PS em seu seio manifestava-se mais uma vez, agora num momento decisivo. A relativa imaturidade política da classe operária era um obstáculo real a uma acção audaciosa por parte da esquerda revolucionária que colocasse a questão da insurreição e da tomada do Poder. No entanto, essa questão teria que ser definida num prazo muito breve. E, pela força das coisas, a esquerda revolucionária teria que encará-la no plano imediato.

Se as dificuldades que a esquerda revolucionária teria que vencer para encarar de frente o problema do Poder eram uma verdade insofismável, não se pode, porém, negar que estavam dadas algumas condições mínimas que abriam a possibilidade de uma solução revolucionária para esse problema.

Que condições eram essas e porque não foi possível uma saída revolucionária?

O pólo da esquerda revolucionária, principalmente em Lisboa, era nitidamente mais forte do que o da direita, no plano militar. O poder de fogo e o contingente das guarnições militares da capital, se tivessem sido devidamente accionados, constituíam uma força mais do que suficiente para fazer frente vitoriosamente ao pequeno esquema militar que a direita conseguiu montar.

A situação no conjunto das Forças Armadas era favorável à esquerda. A contestação aos comandantes reaccionários estendia-se pelas guarnições de quase todo o país, a disciplina e a hierarquia tradicionais eram postas em causa um pouco por toda a parte, esfrangalhando a operacionalidade e a eficiência do exército burguês enquanto tal. A própria organização dos SUV, se bem que não fosse militarmente eficiente, constituia-se num forte movimento de contenção política às pretensões golpistas da direita.

A todos esses factores acrescente-se a situação específica que se vivia em Lisboa e a proporcionalidade da importância política da capital em relação ao resto do país. Portugal é um daqueles países que enfrenta o fenómeno da macrocefalia da sua capital, tanto no que diz respeito à concentração das actividades económicas como ao nível de desenvolvimento das actividades culturais e políticas. E a verdade é que a correlação de forças em Lisboa era nitidamente favorável à esquerda. A própria direita dava isso por absolutamente certo e, considerava como iminente o «estabelecimento da Comuna de Lisboa».

Enfim, pode-se dizer que o problema da correlação de forças em Portugal devia ser visto em toda a sua relatividade. Se a esquerda era débil, a direita também o era. Além disso, a pugna das classes sociais em tomo da questão do Poder dava-se no contexto da desintegração do Estado, que ameaçava ruir por todos os lados, e que, devido a isso, privava a burguesia de um dos seus instrumentos essenciais de dominação.

Evidentemente, era muito difícil uma solução revolucionária. Mas não era impossível. E mais, os sectores mais combativos da classe operária, os militares revolucionários e a esquerda revolucionária estavam frente a uma encruzilhada decisiva: ou se dispunham para o combate ou eram derrotados. A primeira hipótese abria uma possibilidade de vitória e, se não fosse empreendida, a derrota era inevitável.

O que aconteceu, no geral, em relação ao conjunto das forças revolucionárias, foi que estas não tiveram a capacidade de organizar-se para assumir as responsabilidades de Poder que o momento exigia. Habituadas a lutar por objectivos limitados, não deduziram daí a necessidade imediata que se criou de estabelecer e solidificar um Estado-Maior Revolucionário, que pudesse comandar, com uma visão estratégica, o conjunto das operações tendentes ao assalto final ao último reduto do inimigo. Por outro lado, não possuindo uma visão clara do reformismo, da sua natureza conciliadora e da sua impossibilidade de encarar a questão do Poder, chegaram a pensar que este poderia deixar as suas forças serem arrastadas para o campo da Revolução na hora final. E, por último, subestimaram a capacidade e a sagacidade da burguesia em defender o seu sistema e os seus privilégios de classe.

É evidente que o esquema golpista da direita não foi montado em cima da acção dos soldados paraquedistas. Vinha de algum tempo atrás. Quando o PC promoveu, pouco antes do 25 de Novembro, a enorme manifestação das Comissões de Trabalhadores da Cintura Industrial de Lisboa, no Terreiro do Paço, o PS e o PPD, temendo um assalto ao Poder (não do reformismo, que já estava identificado como tal perante a burguesia, mas da esquerda revolucionária, que poderia «manipular» ou aproveitar-se das massas na rua), estudaram formas concretas de transferir a Assembleia Constituinte e o aparelho administrativo do Estado para o norte do país. A dualidade de poderes ameaçava assim atingir uma expressão territorial. De facto, não podia haver um sinal indicativo mais claro das intenções da burguesia.

E quando o Conselho da Revolução ratificou a destituição do General Otelo Saraiva de Carvalho do Comando da Região Militar de Lisboa, apesar da oposição manifesta da maioria das unidades militares dessa Região, também não podia ser mais evidente a existência de um plano operativo da direita, com o Estado-Maior do golpe contra-revolucionário já perfeitamente estruturado.

Criado o pretexto para apresentar os acontecimentos como sendo um golpe ou uma insurreição da esquerda, a direita accionou tranquilamente o seu dispositivo. Os principais meios de comunicação de massas influenciados pela esquerda em Lisboa foram silenciados imediatamente, ao mesmo tempo que começaram a transmitir do norte do país. Os jornais de Lisboa também foram fechados. Decretou-se o Estado de Sítio e o toque de recolher na capital. A partir daí o golpe reaccionário desenvolveu-se pelos meios clássicos, já sobejamente conhecidos.

O movimento operário e as suas organizações unitárias de classe, como já vimos anteriormente, chegaram ao momento definitivo da pugna pelo Poder sem contar com uma coordenação autónoma, que fosse capaz de oferecer uma resposta global ao golpe contra-revolucionário.

Instrumentalizada em grande parte pelo PCP, e em menor medida, por outras organizações de esquerda, ao mesmo tempo em que se deixava paternalizar pelos chamados militares progressistas, a classe operária iria ter um comportamento desigual e sua acção seria descoordenada e isolada.

Além disso, a classe operária, no seu conjunto, não se movimentou naqueles dias decisivos. Dir-se-ia até que interpretou os acontecimentos como sendo um problema interno das Forças Armadas, com os quais nada tinha a ver. Quem saiu para a rua foram apenas os seus elementos de vanguarda, os seus sectores mais conscientes. Mas mesmo esses, para além de concentrarem-e às portas das guarnições militares progressistas, nada mais conseguiram fazer.

As organizações políticas situadas no âmbito da esquerda revolucionária, por seu turno, assistiram ao desenrolar dos acontecimentos na mais absoluta perplexidade. Durante alguns dias não foram capazes sequer de compreender o que havia acontecido.

Após essas considerações, vamos chegando ao fim de nossa análise. Os acontecimentos dos últimos dias de Novembro encerram toda uma fase do processo revolucionário português. A partir dessa data a classe operária e as suas organizações, devido à mudança radical das condições políticas que então se produziu, deverão buscar novos caminhos e novas formas de luta, baseadas nas experiências do passado recente. Essas experiências, apesar dos erros e das falhas que apresentaram, constituem um acervo de extraordinária importância. Nos combates que se produzirão de agora em diante certamente as massas partirão dum nível de consciência e organização muito superior àquele que existia quando elas entraram no cenário político, aquando do golpe anti-fascista e anti-colonialista do 25 de Abril.

Mas talvez a conclusão mais importante que se possa tirar de todo este processo é sobre o papel que os órgãos de Poder Popular desempenharam e sobre as etapas não alcançadas por esses mesmos organismos.

Na verdade, a natureza do regime a adoptar pela Revolução Portuguesa, caso esta tivesse terminado com a vitória e não com a derrota da classe operária, só poderia ter sido encontrada no âmbito dos organismos de Poder Popular. De acordo com toda a análise que desenvolvemos ao longo destas páginas, torna-se evidente que em Portugal nunca teria sido possível o estabelecimento de um regime burocrático, onde um partido, e nem mesmo um conjunto de partidos, pudesse ter assumido e exercido o Poder em nome do Povo. Mesmo porque as organizações de carácter burocrático eram também organizações reformistas que, como tal, nunca teriam tido condições de assumir responsabilidades de Poder. Aqui o estabelecimento do Poder Revolucionário, desde a sua base até às suas mais altas instâncias, só poderia ter-se dado na convergência dos organismos de Poder Popular com aquelas forças políticas que compreendessem a imediaticidade da Revolução Socialista e estivessem nela interessadas. Apesar da classe operária ser a força social destinada a assumir as principais responsabilidades de Poder, os militares revolucionários, através de suas organizações unitárias, poderiam e deveriam também ter desempenhado um importante papel. Os partidos e organizações políticas interessadas objectivamente na Revolução deveriam ter cumprido o papel de correias de transmissão entre as diversas instâncias do novo poder e do novo tipo de Estado que deveriam ter sido estabelecidos, até que todos convergissem e chegassem a um ponto de fusão com os organismos unitários das massas para a formação de uma vanguarda revolucionária de novo tipo.

Este projecto, pelas razões que procurámos anteriormente localizar, foi derrotado. Mas não se pode negar que em Portugal estivemos face à possibilidade imediata de viver uma Revolução que, se vitoriosa, teria que ter necessariamente retomado os princípios básicos e a pureza original da Revolução Russa de 1917. Essa possibilidade, obviamente, enfrentou enormes obstáculos.

No plano interno, deparamo-nos sempre com o pano de fundo da extrema debilidade do movimento operário, recém saído de um período de 48 anos de fascismo. A derrocada das estruturas do velho Estado fascista e as respostas anti-capitalistas que a cada momento eram exigidas sucederam-se mais rapidamente que a capacidade de organização e aquisição de consciência da classe operária no seu conjunto. A própria inexistência de uma verdadeira vanguarda revolucionária não pode ser explicada a não ser dentro deste contexto.

No plano externo, não se pode ignorar a posição geopolítica e geoestratégica de Portugal e todos os condicionamentos que a mesma fatalmente teria que impor ao desenvolvimento interno do processo. Este é um pequeno país, espremido entre a Espanha e o mar, mas tanto o seu território continental como as suas ilhas possuem enorme importância militar tanto para a NATO como para os Estados Unidos enquanto potência e são bases de apoio natural de todos os interesses que se jogam na região e no mundo.

Ao longo dos meses em que se desenvolveu o processo revolucionário, a classe operária deste país, com a pouca força e experiência que tinha, viu-se forçada a combater quase sozinha e isolada contra o imperialismo, que não regateou nenhum apoio à burguesia portuguesa. Este aspecto teve uma importância que muitas vezes não foi devidamente dimensionada, embora a interferência da Europa capitalista e dos Estados Unidos em Portugal não sejam objecto de nossa análise, mesmo porque, em seus aspectos essenciais, nada tem de original.

Do lado das forças revolucionárias, a França, que tinha vivido o auge revolucionário de Maio de 1968, atravessou os períodos mais dramáticos do processo revolucionário português numa quase absoluta acalmia política. Na Itália, que também vivera um ascenso considerável do movimento de massas, no «Outono quente» de 1969, a classe operária esteve mais ou menos apática em relação aos acontecimentos em Portugal. E na Espanha, apesar de toda a agitação política e social, não foi possível uma alteração assinalável do «status» existente, que permitisse a transformação do quadro político global na península ibérica.

É evidente que a Revolução portuguesa, se vitoriosa, poderia ter se transformado no rastilho que faria alastrar a fogueira por toda a Europa. Mas não é menos certo que o proletariado português enfrentaria, como de facto enfrentou, e continuará a enfrentar, se não houver uma mudança significativa nesse sentido, enormes dificuldades em combater sozinho contra toda a reacção organizada à escala internacional.

LISBOA, 25 de Janeiro de 1976


Inclusão 19/09/2019