O Poder Popular em Portugal

M. Vieira e F. Oliveira


Prefácio


capa

Este texto não pretende ser mais que uma modesta reflexão crítica sobre a experiência de Poder Popular em Portugal. O leitor deve, pois, tomá-lo como uma contribuição teórica ao balanço dessa experiência.

A necessidade e a urgência da sistematização de uma prática que produziu valiosos ensinamentos não necessita justificações. Porém, a história é sempre escrita de acordo com os desígnios daqueles que a escrevem. E não o poderia ser de outra forma, uma vez que a interpretação dos acontecimentos está marcada pela posição de classe, pela posição ideológica de quem os analisa. Neste sentido, não se deve esperar encontrar aqui uma «visão imparcial», porque a imparcialidade não existe. Não nos sentamos em uma torre para ver, lá em baixo, a pugna entre as classes sociais e abarcar com a nossa visão «imparcial» todos os seus movimentos e aspectos.

Evidentemente, procuramos lançar uma visão tão ampla quanto nos foi possível sobre o campo de batalha entre as classes sociais e tentamos compreender, a partir de uma óptica revolucionária, o fenómeno do Poder Popular. A distância que tomamos dos acontecimentos é, pois, somente aquela que nos permite a teoria.

Entretanto, em momentos como os que ora vivemos, a publicação de um trabalho desta natureza impõe-nos a necessidade de nos anteciparmos a possíveis equívocos. Com efeito, quando a direita está em ofensiva e, perigosamente, progride no terreno e ocupa posições-chave, muitas vezes somos tentados, a «esquecer tudo o que nos divide e agarrar tudo o que nos une». Não há dúvidas de que urge somar forças em defesa das liberdades democráticas. Para nós, no entanto, estas não são um fim em si mesmo, porque a democracia deve ser vista em toda a sua relatividade. Sejamos mais claros: não é o mesmo a democracia para a classe operária que a democracia para a burguesia. Além disso, a única classe consequentemente anti-fascista é a classe operária. Trata-se, portanto, de armá-la com os instrumentos teóricos e organizativos que a tomem capaz de opor uma sólida barreira ao avanço do fascismo. Nesta perspectiva, somar forças com todos os democratas não significa apagar as divergências políticas e ideológicas e esquecer os erros. E isso é tanto mais certo quanto sabemos que as «soluções» reformistas, em situações como a que vivemos, têm sempre levado ao desarmamento ideológico, político e, até, psicológico da classe operária e os resultados têm sido, quase sempre, trágicos.

Aprender com o passado, com a nossa própria experiência e a de outros povos, para marchar por caminho seguro rumo à libertação do homem é um dos denominadores comuns de todos os revolucionários. E, para tirarmos as justas lições da história, principalmente quando essa é a nossa, a análise crítica não pode ser complacente. Não nos deve causar preocupações que a direita possa apoiar-se em nossas críticas — e autocríticas — para dizer: confessaste... Os que temos boa memória não precisamos buscar na experiência de outros povos a confirmação de que a direita não necessita de pretextos. Cria-os, quando são necessários.

Neste trabalho, baseamo-nos em factos para analisarmos situações. E factos há que muitos gostariam de verem esquecidos. Principalmente quando desmascaram a tentativa nada original de reviver em Portugal o processo do «Incêndio do Reichstag», em que o bode expiatório é a esquerda revolucionária, civil e militar. E quando mostram, também, o papel que o Partido Comunista Português teve nesses acontecimentos.

Importa fazer uma última observação: este texto constitui um dos capítulos de um livro sobre o processo português, que será editado em outros países. É esta a razão pela qual nos preocupamos, simultaneamente, com os aspectos analítico e informativo.

Estamos certos de que muitos dos prováveis leitores são artífices de alguns dos acontecimentos aqui relatados ou, pelo menos, deles tomaram conhecimento na época em que se passaram, através da imprensa ou de outros meios. Apesar disso, preferimos não introduzir adaptações no texto e limitamo-nos apenas a retirar umas poucas partes informativas. Esta decisão apoia-se em duas razões da mesma ordem: a primeira é que esses acontecimentos são vistos de um ângulo que pode não ser o mesmo do leitor e, neste caso, o nosso ponto de vista poderia contribuir para abrir-lhe uma nova perspectiva; a segunda, refere-se àqueles que, no futuro, venham a tomar contacto com esta obra e que talvez não tenham conhecimento desta face da história portuguesa. Neste último caso, o desconhecimento da realidade histórica passada poderia ser causa de muitos erros.

M. VIEIRA
Lisboa, 3 de Fevereiro de 1976


Inclusão 19/09/2019