Operação República: a Política de uma Crise
uma análise independente

Fernando Dil e Carlos Pina


6. Uma posição (do general Otelo Saraiva de Carvalho, comandante do COPCON)


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O general Otelo Saraiva de Carvalho conta como acompanhou e opina sobre o conflito na “República”, as suas (as deste jornal) relações com o Partido Socialista e as implicações daí decorrentes para toda a Imprensa portuguesa.

Tudo surgiu quando estávamos em 19 de Maio, numa Assembleia Geral do MFA, no Alfeite. Tive conhecimento, então, que se tinha dado um confronto final; aliás, a situação já se arrastava de uma forma latente até esse dia, dando-se, então, uma situação de confronto real entre a administração da “República” e elementos da redacção, a direcção e os trabalhadores gráficos.

Na altura, o problema foi indevidamente solucionado, houve alteração na ordem pública, houve imediatamente uma grande manifestação do Partido Socialista perante as instalações da “República” e essas alterações provocaram a intervenção de forças militares accionadas pelo COPCON. Nessa altura, pelo menos a Imprensa noticiou como tal, que teria havido uma certa agressividade verbal por parte de elementos do Partido Socialista e, que eram uns milhares em frente das instalações da “República”, mas a situação sanou-se, foi contida, e depois, a pedido da administração, num documento assinado por dois elementos da administração, o dr. Gustavo Soromenho e o dr. Raul Rêgo, foram seladas as instalações do jornal “República”.

O problema depois foi analisado ao nível do governo, o comandante Correia Jesuíno analisou o problema, expo-lo ao governo e considerou que a Lei de Imprensa devia ser cumprida.

Eu faço, aqui, um pequeno parêntesis: é evidente que as leis são feitas para ser cumpridas, considero que sim, mas também considero que estamos a viver uma revolução. Embora grande parte do país não se aperceba disto.

As leis são feitas para ser cumpridas. Simplesmente, uma revolução tem uma dinâmica muito própria e a nossa revolução está a ter uma dinâmica extraordinária. Aliás, muitos observadores estrangeiros que vem cá consideraram que esta revolução tém dado passos gigantescos para a construção de uma sociedade socialista.

Em relação à Lei de Imprensa, concordo perfeitamente que ela está extremamente bem estruturada, é uma lei muitíssimo avançada em relação a outros países, concordo perfeitamente com essa opinião que tem sido dispendida pelo comandante Jesuino, mas é evidente que a lei foi elaborada no ano passado e promulgada em Janeiro deste ano, sofreu logo um retrocesso muito grande a partir do 11 de Março.

Apesar dela, no entanto, não ter sido alterada e estar em vigor, a verdade é que as leis vigentes num país em revolução só devem ser cumpridas desde que não contrariem a revolução.

Ora, depois do caso “República”, o Conselho de Imprensa e o próprio Conselho da Revolução reconheceram já que a Lei de Imprensa está ultrapassada pela dinâmica da revolução. No entanto, considerou-se que devíamos cumprir a Lei de Imprensa.

Então, o COPCON foi solicitado para fazê-la cumprir. Eu tinha recebido já telefonemas do dr. Raul Rêgo, do próprio Álvaro Guerra, e para fazer cumprir a Lei de Imprensa tornava-se necessário chegar ao “República” e tirar os trabalhadores para fora ou não permitir a entrada dos trabalhadores, permitir só a entrada da direcção e ela deixava entrar quem muito bem quisesse.

Aí, implicava outra discordância por parte do COPCON.

Ao formar o COPCON pretendi dar todo o cariz de um órgão ao serviço do MFA e ao serviço do povo português de características profundamente revolucionárias. E, para o cumprimento do programa do M.F.A., que esse órgão dispusesse de uma dinâmica tal que fosse realmente ao encontro das classes trabalhadoras e das classes mais desfavorecidas. E é nesse sentido que o COPCON tem actuado.

Portanto, um lema porque se rege o COPCON é que, em princípio, os trabalhadores têm sempre razão

Portanto, ao examinar o caso “República” a frio, eu via de um lado 152 trabalhadores, tipógrafos, e do outro um grupo minoritário de redactores, directores, administração, etc. Portanto, alguma coisa, por aí, ia mal...

É evidente que em todos os conflitos há sempre um fundo político. E havia aqui também um fundo político. Resumia-se ao facto de os trabalhadores, que foram sempre antifascistas e têm todo um passado de luta, antifascista, como tinham, aliás, os redactores e o corpo da administração, os trabalhadores, apesar de todo este núcleo de lutadores antifascistas, havia por parte dos trabalhadores um senão: é que eles diziam estar a participar na feitura de um jornal que se dizia um órgão independente, mas que mais não era do que um órgão de um partido político.

Tanto que, em determinada altura da discussão, quando foi posto aos trabalhadores o problema de se continuariam ou não a trabalhar num jornal desde que aparecesse por debaixo do título: órgão do Partido. Socialista, os trabalhadores disseram que sim, que continuariam perfeitamente a trabalhar. Simplesmente, o jornal é que não era de forma alguma independente; era, realmente, um órgão que servia estritamente um partido político da coligação, neste caso, o Partido Socialista.

O COPCON entrou, portanto, na liça quando foi chamado para resolver o problema. O COPCON teve nessa altura que nomear um oficial, o major Dias Ferreira, homem que está habituado a resolver conflitos de trabalho ao nível COPCON e que foi deslocado para a “República” para conferenciar com a Administração e os trabalhadores tipógrafos e tentar solucionar o diferendo.

O major Dias Ferreira é um elemento totalmente apartidário, aquilo que eu chamo um elemento puro MFA, sem conotação política de qualquer espécie, e foi assim que ele interveio ouvindo com limpidez as duas partes. Numa tentativa de solução do conflito e depois de termos feito uma reunião no Palácio de Belém, com elementos do Conselho da Revolução e com a administração, representada pelo Dr. Gustavo Soromenho, pelo Dr. Raul Rego e pelo chefe de redacção, João Gomes, chegaram-se a determinadas conclusões.

Essas seriam: os dez dias que já estavam em atraso no pagamento dos salários dos trabalhadores seriam pagos, que o jornal seria reaberto nas condições em que se encontrava em 19 de Maio, na altura da crise, e que o senhor Belo Marques não retornaria ao jornal. Belo Marques, segundo julgo, era o director comercial do jornal “República”.

Não havia, portanto, aqui um conflito laborai. E o Partido Socialista, na minha opinião, ao vir agora com um comunicado justificativo da sua saída do governo dizer que o sr. Belo Marques ganhava 20500$00, que os tipógrafos ganhavam 18500$00, quanto a mim está a ir ao encontro de um falso problema, porque o conflito não era realmente laborai. Se fosse laborai é evidente que os trabalhadores, com esses ordenados, não tinham desenvolvido a crise. Portanto, era um conflito político.

É evidente, que dizer agora que os trabalhadores ganhavam vinte contos, o que eles queriam mais? Não é isso que está em causa. Eles agora são capazes de não ganharem nada, nem dez tostões, e fizeram a crise. Era realmente um conflito de carácter político.

Este conflito foi extraordinariamente avolumado, como sabemos, até que entrámos na procura imediata da resolução do problema.

Depois dessa reunião do Conselho da Revolução, em Belém, concordou-se então na reabertura do jornal e a administração fez-me um requerimento para a reabertura no dia 12 de Junho. No entanto, dado que havia um empenho de forças militares precisamente para essa data e para o fim de semana que se avizinhava, eu despachei para que a reabertura fosse no dia 16, segunda-feira.

Assim se fez: o major Arlindo Dias Ferreira combinou a abertura para as 16 horas, e a essa hora compareceram realmente elementos da administração, elementos dos trabalhadores e ia-se fazer, finalmente, a desselagem das portas da “República”.

Nessa altura, a administração pôs objecções. Não considerava que estivessem garantidas as condições para a desselagem do jornal. Entretanto o major Arlindo considerou que sim, e era evidente que estavam, pois o COPCON estava ali para garantir a desselagem... O major disse: bem os senhores têm o pagamento dos dez dias aos trabalhadores. A administração respondeu que não tinha nada que pagar os dez dias...

Então o Conselho da Revolução não decidiu...

Não, há um engano... isso é uma coisa a resolver pelo Tribunal do Trabalho... O major ficou na dúvida se teria ouvido bem aquilo que se tinha passado no Conselho de Revolução, os administradores impuseram que o Belo Marques não entrasse no jornal... Surgiram ali uma série de problemas que fizeram com que a administração, uma hora depois, considerasse que as condições não estavam realizadas e não autorizava a saída do jornal.

Mandou-me um documento a dizer que, considerando que o COPCON não assegura as garantias necessárias para a reabertura do jornal, esta administração não autoriza a saída do jornal. Ora, tinham feito um requerimento antes a pedir para abrir o jornal, e agora não autorizavam a saída do jornal...

O major Arlindo para cumprir a Lei de Imprensa conforme estava combinado com o Conselho da Revolução, desselou as portas do “República”. Fez entrar os trabalhadores e às 19 horas, cumprido o trabalho, mandou os trabalhadores saírem e selou outra vez as portas da “República”.

Telefonou-me muito aflito, que tinha cumprido com a Lei de Imprensa, conforme tinha sido estudado pelo Conselho da Revolução, e agora o que havia de fazer... Eu disse: bem, então agora reabre outra vez amanhã. Contactamos com os trabalhadores, com a administração e amanhã às oito horas, reabre. Na manhã seguinte, já não sei porquê, não se reabriu, e então ficou para a quarta-feira, dia 18. Ficou tudo combinado. No dia 18, quarta-feira, às oito da manhã o major Arlindo estava lá, estavam os trabalhadores, mas a administração não.

Resta a considerar que no dia anterior, terça-feira, o major Arlindo, quando eu lhe disse: amanhã isso tem que reabrir às oito da manhã, ele telefonou, imediatamente, era meia-noite, ao dr. Gustavo Soromenho, e aqui é um ponto muito importante, e avisou-o de que o jornal seria reaberto às 8 da manhã. O dr. Gustavo Soromenho disse que era impossível, que era uma pessoa doente, que não poderia levantar-se tão cedo, que só estaria lá pelas 11, meio-dia, mas que avisaria o dr. Raul Rêgo e outros da administração e que lá estariam às 8 horas.

’As 8 horas da manhã do dia 18, o major Arlindo estava lá com os trabalhadores-tipógrafos, para desselar as portas da “República”, e cerca das 8.40 não tendo aparecido ninguém da administração, o major Arlindo desselou mesmo e mandou entrar os trabalhadores.

Este é um ponto muito destacado pela administração da “República”, dizendo que houve ali falcatrua, que se tinha combinado às 11 horas e que o major abriu às 8.40 horas, e tal...

Depois disso, portanto, houve mais uma série de desencontros entre a administração e os trabalhadores, depois apareceu também o capitão Castro, do Conselho da Revolução, a tentar sanar o problema, entretanto isto foi sempre extraordinariamente avolumado, houve uma exploração enorme, interna e externa, em que o “Quotidien de Paris” avança com uma página inteira sobre o caso “República”.

O caso agravou-se ainda com a publicação do “Jornal do Caso República”. Foi dado, como sabemos, um alvará provisório para a publicação desse jornal, contrariando a Lei Comercial, porque os administradores de um jornal não podem fazer um outro jornal com um título bastante semelhante, como estava; entretanto, um administrador de um jornal também não pode ser director do mesmo jornal o que acontecia com o “Caso República”, em relação ao dr. Raul Rêgo, enfim, uma série de desencontros... A exploração disso, quanto a mim, foi realmente propositada. Em minha opinião, a administração não teve realmente, nunca o intuito real de reabrir a “República”. Reabrir a “República” em determinadas condições, nas condições previstas na Lei de Imprensa e que estavam estipuladas pelo Conselho da Revolução. Portanto, torpediaram em minha opinião, longamente, de forma a que a “República” não reabrisse. Houve uma exploração política...

(...) Sabemos que a administração da “República” é constituída por elementos do Partido Socialista e está perfeitamente ligada ao Partido. Aliás eu não tenho dúvida nenhuma disso e tenho uma confirmação muito objectiva de que é realmente o Partido Socialista que domina a “República”, os dirigentes do PS que mandam na “República”.

A administração da “República” ao afirmar que ele é um órgão independente está a falsear a verdade.

É evidente que é o Partido Socialista que domina a “República”, que era um jornal do Partido Socialista. Portanto, há aqui uma mistificação da verdade, na minha opinião...

(...) Eu gostaria de tirar a conclusão de que, no caso ‘‘República”, não havia realmente um conflito de ideologia partidária. Era um conflito político, mas não de ideologia partidária. Aliás o próprio dr. Mário Soares, num frente-a-frente que teve com o dr. Álvaro Cunhal, no Hotel Áltis, para a Rádio Televisão Francesa, reconheceu que realmente não era a tomada de assalto do jornal “República” por parte de um partido adversário, digamos, politicamente. Isso é notório até porque na Comissão de Trabalhadores do jornal “República” havia e há elementos do Partido Socialista. Portanto era apenas um conflito político mas não de confronto partidário. Agora, em relação à solução julgo que neste conflito a solução só podia ser aquela. Para irmos realmente ao encontro das classes trabalhadoras, a solução era aquela que foi adoptada. Portanto, a nomeação de uma Comissão Administrativa, isenta por parte de militares, por parte do Estado,. com uma direcção sob a orientação do coronel Lopes Carvalho, que sem dúvida alguma é um democrata de envergadura, e que isentamente procurará dirigir o jornal, fazendo do jornal um órgão independente. É evidente que se o dr. Mário Soares me disser — eu gosto imenso de falar com ele, aliás, fui com ele a Lusaka e gosto imenso de falar com ele — porque é que isso não acontece em outros jornais que circulam no país, e mais propriamente aqui em Lisboa, é uma pergunta a que não sei responder. Dizem que há jornais que são dominados por determinado partido, e que os jornais A, B e C são dominados pelo partido tal. Mais propriamente — eu gosto de falar a verdade — o “Diário de Notícias”, o “Século” e o “Diário de Lisboa” estão dominados pelo Partido Comunista. E se me perguntarem: mas porque é que isso não acontece nesses jornais? Se acontece na “República” por que não acontece no “Diário de Notícias”? Essa é uma pergunta que deve ser feita directamente ao Partido Comunista, se o Partido Comunista domina esse jornal ou aos trabalhadores do jornal. Eu posso é garantir o seguinte: se os trabalhadores do “Diário de Notícias”, os trabalhadores tipógrafos do “Diário de Notícias”, resolvessem a certa altura, considerando realmente que o “Diário de Notícias” é dominado pelo Partido Comunista, se os trabalhadores tipógrafos vierem à liça em confronto com a administração dizer “não queremos que o “Diário de Notícias” seja dominado pelo Partido Comunista, queremos tornar isto num jornal independente”..., pois não tenho dúvidas nenhumas que a solução é exactamente aquela que se aplicou no caso “República”.

Portanto se não há conflito lá dentro é porque os trabalhadores não levantam o problema; portanto, os trabalhadores tipógrafos pertencerão ou serão em grande parte dominados pelo Partido Comunista, admitamos. Teremos outras formas de resolver o problema. Poderemos resolvê-lo. Mas a verdade é que não há problema nem no D. N., nem no “Século”, nem no D. L.. Por que se houver, tal como aconteceu na “República”, o problema é resolvido com a mesma isenção partidária.


Inclusão 31/07/2019