Textos Históricos da Revolução

Organização e introdução de Orlando Neves


O Governo e as Crises


Introdução 6

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Estamos agora perante textos que são dos mais significativos da Revolução.

A concepção spinolista e palmacarlista é a primeira fase; para a ilustrar os documentos que se seguem são, nas suas entrelinhas, esclarecedores. Para não nos alongarmos demasiadamente digamos que a linguagem ó a mesma do anterior regime, em termos liberais e democratas (actualmente nem é preciso reflectirmos se, mesmo desse ponto de vista, ela era sincera ou não; sabemos, depois do 28 de Setembro e do 11 de Março, que não era). Por conseguinte, estamos frente a textos que, numa linha falsamente liberalizante, pretendiam exclusivamente a manutenção de um status quo económico e social; ou seja, o capitalismo estúpido de Salazar ou o neocapitalismo (que o era antes de o ser!) de Caetano pretendia-se que fosse substituído por um capitalismo mais inteligente ou mais leonino. Nesse sentido aponta Spínola com constantes apelos à «democracia» e às «liberdades» e Palma Carlos com apelos à «ordem» e à «autoridade». A via social-democrata atirava a sua luva para terreiro na esperança que o adversário, por demasiado fraco, não aceitasse o repto. E tudo voltaria ao mesmo. O capitalismo encontraria formas de subsistência mais subtis e aparentemente mais doces, mas a opressão económica manter-se-ia dentro dos quadros europeus ocidentais. Para isso, urgia dar as liberdades e regulamentá-las, para as retirar legalmente, coarctar, de sorriso nos lábios, para que as massas trabalhadoras fossem alvo de uma política encantatória. A existência de facto dos partidos ainda não atemorizava. Primeiro, porque eram muitos, segundo, porque estavam imperfeitamente organizados, terceiro, porque estavam pouco implantados, quarto, porque, ao nível de personalidades, se digladiavam já. Quanto mais depressa se regulamentasse melhor e quanto mais depressa se ratificasse popularmente a «autoridade» mais campo de manobra «repressiva» legal existiria. É neste sentido que Palma Carlos, soprado por Spínola e apoiado pela social-democracia, vai experimentar forças. Estamos em Julho.

Palma Carlos submetera ao Conselho de Estado proposta destinadas a reforçar o poder do primeiro-ministro, a adiar as eleições para a Assembleia Constituinte e a antecipar a escolha do Presidente da República. Mas o Conselho de Estado não entendeu que tais medidas se justificavam. Palma Carlos apresentou a demissão e, solidários, quatro ministros (dois deles de filiação PPD) demitiram-se igualmente. A difícil unidade do primeiro Governo de coligação foi posta em causa com a atitude desafiadora de Palma Carlos. O ex-primeiro-ministro colocava em xeque, directamente, o Programa do MFA, que aceitara defender e executar. Isolavam-se, ou pretendiam-se isolar, os ministros de esquerda e relegava-se para um plano secundário o Programa e o próprio MFA o que significava (até pelos apoios partidários que a proposta teve) dar-se ao sistema capitalista uma armadura defensiva.

O ataque Spínola-Palma Carlos-PPD não levou em conta, em primeiro lugar, a enorme força que já representavam os trabalhadores em luta. (De facto, perante a onda de reivindicações que se espraiava pelo país só seria possível um retorno através da criação de uma nova força repressiva). E não levou em conta igualmente a força dos oficiais que compunham o Movimento das Forças Armadas que compreenderam rapidamente que tal golpe, a ser efectuado, poria em causa o Movimento, o Programa, o ideal por que se tinham batido em 25 de Abril — resumidamente, o afastamento de qualquer ditadura (e o golpe, com o reforço da autoridade colocaria o país sob domínio pessoal de Spínola) e a destruição do poderio económico dos grandes capitalistas.

A reacção do MFA foi pronta e Palma Carlos teve de demitir-se.

A Revolução do 25 de Abril dava novo passo em frente. Não apenas pela demissão do primeiro-ministro mas, sobretudo, pela entrada definitiva do Movimento no Governo. Vários dos seus elementos passam a fazer parte do Governo o que vai criar uma unidade mais forte entre as forças políticas agora directamente controladas pelo MFA. Contrariado, Spínola é obrigado a ceder a esta imposição do MFA e a admitir como primeiro-ministro Vasco Gonçalves, um dos homens mais influentes do Movimento.

Com o aparecimento na cena política de uma figura como Vasco Gonçalves, pela sua caracteriologia pessoal e por representar totalmente os homens do Movimento, a paisagem política e social do País modifica-se. A personalidade de Vasco Gonçalves imprimirá a todas as acções governamentais uma dinâmica muito mais próxima das autênticas intenções do processo revolucionário. Saem, nesse período, algumas leis fundamentais como a do direito de reunião e, a da greve, que vêm ainda do consulado anterior e não são, por isso mesmo, pacificamente aceites.

Mas um novo estilo se impusera. A 8 de Julho criara-se o COPCON, subcomandado por Otelo Saraiva de Carvalho que haveria, no seu discurso de posse, de pôr em causa violentamente a linha reaccionária de algumas autoridades militares. E, a 19 de Agosto, Vasco Gonçalves profere a sua primeira alocução ao País através da TV. Algo de novo aparecia aos olhos dos telespectadores. Um homem, um político, um primeiro-ministro falava com o Povo, cara a cara, numa linguagem de todos os dias e expunha-lhe os problemas com sinceridade e verdade. Os estilos mentirosos e pérfidos do fascismo, ou ardilosos e capciosos do I Governo eram varridos de cena com as palavras de Vasco Gonçalves.

Spínola procurava, no interim, manobrar as suas forças. Fora ainda, a 27 de Julho, obrigado a pronunciar o discurso do processo de descolonização, mas não desistiria.

Se o novo Governo e Vasco Gonçalves davam um tom diferente à política portuguesa aproximando-a da verdadeira face do MFA, Spínola procurava teimosa e (ver-se-ia depois) inabilmente sabotar a caminhada.

Posse de Spínola como Presidente da República
15 Maio 1974

Portugueses:

Ao ser investido nas funções de Presidente da República por decisão da Junta de Salvação Nacional, sinto-me no dever de me vincular ao ideário do Movimento das Forças Armadas, à luz do qual se cumprirá a tarefa de construção do futuro e por cuja execução assumo, perante o País, o mais solene compromisso.

São para as Forças Armadas as minhas primeiras palavras. Vilipendiadas pelas atitudes servis de alguns dos seus chefes, injustamente acusadas dos erros dos políticos, violentadas a coberto do seu elevado sentido da honra e do dever, quase destruídas, em suma, no que representavam de instituição eminentemente nacional, as Forças Armadas, pela mão dos seus quadros mais jovens, souberam apesar de tudo mobilizar a sua última reserva moral colocando-se ao serviço da Nação, de que há décadas haviam sido desviadas.

A Pátria deve a hora grandiosa que hoje vive a esses jovens que souberam manter acesa a chama do dever, e que, na nobreza do seu idealismo, arrastaram com eles à vitória o Povo Português. Na consciência de que a plenitude da soberania pertence à Nação cabendo às Forças Armadas a sua instante defesa, o Movimento das Forças Armadas, em rasgo de serena audácia e perfeita isenção, restituiu Portugal ao seu Povo. Jamais os Portugueses poderão esquecer o verdadeiro alcance da gesta libertadora destes magníficos militares que salvaram o País da tragédia nacional para que se caminhava. Devemos ao seu patriotismo e ao seu sentido do dever como servidores do Povo sem partidarismos, o momento histórico que a Nação vive. E por mais eloquentes que sejam as palavras, só a História e os vindouros saberão julgar toda a extensão do incomensurável serviço prestado à Pátria e ao Povo Português pelo Movimento das Forças Armadas.

Vividas as primeiras semanas de natural explosão emotiva, pontuada todavia por alguns excessos lesivos do clima de tranquilidade cívica cuja firme salvaguarda se impõe, o País vai entrar numa fase de reflectida ponderação, iluminada pelo reconhecimento de que democracia não significa anarquia, e de que a confusão dispersiva de actuações descoordenadas não ajuda, de modo algum, a construção do futuro que o Povo Português anseia.

O desrespeito pela ordem social decorrente de uma sólida fundamentação democrática e de perfeito funcionamento de instituições representativas, foi sempre, em todos os tempos e latitudes, a porta por onde entraram os ditadores. Bem gostaríamos de a ter encerrado definitivamente; mas só o conseguiremos quando cada português impuser a si próprio, em livre expressão da sua capacidade para o exercício da cidadania, o mais alto padrão de discplina cívica, sem o qual jamais poderá edificar-se uma autêntica democracia.

Impõe-se-nos, antes de mais, fazer um profundo exame de consciência, para concluir se será, de facto, democrático o processo esboçado de decidir e aplicar decisões fraccionárias antes do o Povo definir, em consenso, o tipo de sociedade em que deseja viver. É que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, não podendo entender-se senão na mais inteira liberdade de expressão, associação, reunião, debate e votação das decisões colectivas pela via de instituições legítimas, logo seguida da mais estrita observância das decisões assim tomadas. Creio firmemente ser essa a única forma de vida política onde cabe a dignidade humana; de resto, foi em nome desse ideal cívico que as Forças Armadas libertaram o País.

A democracia não se conquista; talvez mesmo se não construa; a democracia vive-se. E, assim, o nosso propósito não pode ser outro senão o lançamento de bases sólidas para essa vivência; propósito, aliás, claramente expresso no programa das Forças Armadas que vale a pena evocar nos seus traços essenciais:

Reitero por isso o programa traçado, tendente a promover a estruturação partidária e associativa em clima da mais completa abertura, devendo o poder instituído assegurar que as liberdades de uns não sejam ameaçadas por excessos de outros. Empenhar-nos-emos em evitar, por todos os meios, que o processo de politização dos cidadãos possa ser entravado ou comprometido, constituindo ponto firme do nosso programa o desmantelamento do aparelho repressivo do antigo regime. Mas os caminhos que o País haverá de trilhar terão de ser definidos por instituições democráticas verdadeiramente representativas e solidamente implantadas, através das quais todos os cidadãos possam exprimir-se, onde todas as correntes de opinião se façam ouvir e em cujo topo se encontre, em lídima expressão final da soberania, uma Câmara Legislativa constituída por mandatários incontestáveis do Povo Português. Serão as decisões dessa Câmara, depois de referendadas, que definirão o nosso estatuto político, económico e social. E só então nascerá, de facto, o Portugal renovado que ambicionamos.

Entretanto, os nossos esforços centrar-se-ão no restabelecimento da paz no Ultramar; mas o destino do Ultramar português terá de ser democraticamente decidido por todos os que àquela terra chamam sua. Haverá que deixar-lhes inteira liberdade de decisões; e em África, como aqui, evitaremos por todas as formas que a força de minorias, sejam elas quais forem, possa afectar o livre desenvolvimento do processo democrático em curso.

Nesta linha de pensamento, desejamos firmemente, em plena corporização dos ideais do Movimento triunfante, que a paz volte ao Ultramar. E pensamos que o regresso dos partidos africanos de emancipação ao quadro da actividade política livremente desenvolvida será a prova cabal do seu idealismo e o mais útil contributo para o pleno esclarecimento e a perfeita consciencialização dos povos africanos, em ordem a uma opção final conscientemente promovida e escrupulosamente respeitada.

Na ordem interna, empenhar-nos-emos em tornar representativas as organizações políticas, sociais e económicas, reparar injustiças sociais e cívicas, recuperar valores e assegurar o justo equilíbrio nas relações de trabalho.

Para tanto, haverá que acelerar o ritmo de expansão económica; garantir, dentro dos sãos princípios da ordem democrática, a completa liberdade sindical dos trabalhadores e do patronato; desmantelar o antigo «controle» corporativo e aniquilar os seus estrangulamentos; criar uma clima propício à constituição de partidos e associações político económicas que exprimam todas as correntes de opinião; promover a livre eleição da nova Assembleia Constituinte; sujeitar a referendo a lei fundamental que definirá o estatuto de livre escolha do Povo Português; e finalmente entregar o Poder às novas instituições livremente legitimadas.

É evidente que terá de proceder-se, em paralelo, ao saneamento moral do País e à reformulação de todo um complexo de conceitos de justiça social, delineando as bases em que terá de moldar-se o perfil da nova sociedade portuguesa.

Na ordem externa, manteremos os nossos compromissos de natureza política, económica e militar, para os quais não há, de momento, outras razões limitativas senão " as claramente decorrentes do circunstancialismo do momento que vivemos e da salvaguarda de riscos imediatos.

Entendo não dever ir mais longe nas minhas afirmações, pois a partir de amanhã o País terá à sua frente um Governo Provisório a quem será entregue a prossecução das tarefas que hão-de corporizar o ideal proclamado, fía verdade, se o Movimento das Forças Armadas libertou o País dos que agiam em seu nome mas sem mandato, não faria sentido que, ao ultrapassar o quadro traçado voltássemos afinal ao mesmo sistema de decisões unilateralmente tomadas, embora sob outro rótulo e pela mão de outros poderes.

Nem se argumente que tais tarefas seriam legitimadas pela vontade do Povo expressa nas gigantescas demonstrações cívicas a que o País assistiu. Será bom recordar que os ditadores começaram sempre reformando à margem das instituições, sob o eufórico aplauso popular. Foi, aliás, essa forma demagógica de transformar o poder em tirania, com o apoio das massas em delírio, que esteve sempre na origem dos regimes totalitários. Ao contrário, o propósito que nos anima é o de criar e defender instituições democráticas estáveis, na serenidade de espírito com que devem tomar-se as decisões por que há-de reger-se um povo.

Competirão, portanto, ao Governo Provisório as tarefas administrativas necessárias à vida quotidiana, que não pode parar, e a ingente missão de, a par da construção do bem-estar económico e social, edificar e consolidar a democracia através da qual o Povo Português encontrará a autêntica liberdade.

Terá de ser, assim, um Governo sem partidos, porque é de todos os partidos; sem tendências, porque nele cabem todas as tendências; sem programa, porque o seu programa é o do Movimento das Forças Armadas. É nesse sentido de imanência nacional que se enquadra; e a essa luz governará a Nação até que esta tenha ultimado quanto carece para governar-se a si própria, no pleno exercício da soberania que enfim se lhe devolve.

A realização desta gigantesca tarefa de preparação e de recuperação do País tem necessariamente de basear-se na estabilidade social e na expansão económica, impondo-nos serenidade cívica e a obrigação moral de uma total entrega ao trabalho intenso de todos os sectores da vida nacional.

Não podemos, de forma alguma, deixar que pressões de qualquer ordem venham perturbar o nosso de evolução; e à imagem do Portugal renovado que estamos construindo teremos de associar a afirmação de plena capacidade para evoluir politicamente sem convulsão social nem quebra do ritmo da formação de riqueza que a todos aproveite. Daí justificar-se, mais do que nunca, o apelo ao trabalho no sentido de um aumento de produtividade, sendo esta, de momento, a mais instante das reivindicações; apelo, por isso, à consciência colectiva do operoso Povo Português, que por certo não desejará a sua libertação ensombrada pelo espectro desolador de uma crise económica com todo o cortejo de privações e sob o signo do desemprego.

E tão-pouco será em clima de ódio cego e de obstinação vingativa sobre os responsáveis dos males passados que construiremos a imagem que há-de restituir-nos, perante o mundo, o lugar que nos cabe no contexto das Nações. Para tanto, impõe-se que sejamos coerentes e se entregue à isenção da Justiça o apuramento de responsabilidades pelos crimes e iniquidades cometidos à sombra do velho regime. E bem desejaria que, nesta hora de arranque para uma nova ordem, esse apelo à coerência encontrasse eco no espírito de todos os Portugueses, pois o Movimento das Forças Armadas triunfou para que as decisões arbitrárias e os anteriores métodos de repressão fossem banidos da vida nacional, e não para que houvesse apenas simples mudança de executores.

São estes os traços gerais da missão em que me empenharei durante o mandato que o Movimento da Forças Armadas me confiou. Tomo perante o Povo Português a responsabilidade do seu integral cumprimento; e faço-o de consciência tranquila, pois jamais a vida política se me revelou aliciante. Servirei o País com a mesma isenta devoção com que sempre o servi, como soldado que me orgulho de ser; e desejo por isso concluir com a afirmação de que a minha presença neste lugar deverá ser por todos entendida antes de tudo e apenas, como firme e cabal garantia de que não serão traídas as esperanças despertas nos corações portugueses na manhã de 25 de Abril. Cumprida essa missão, e entregue o testemunho ao Presidente da República que o País livremente escolher recolherei de novo ao seio das Forças Armadas, de que nunca me afastei e onde irei reintegrar-me com a consciência de ter cumprido o meu dever.

Discurso de Spínola na Posse do I Governo Provisório
16 Maio 1974

De acordo com os prazos fixados no programa do Movimento das Forças Armadas entra hoje no exercício da suas funções o Governo Provisório, que assegurará ao País a estruturação de uma sociedade democrática.

E ao conferir mandato ao Governo Provisório desejaria, antes de mais, saudar na pessoa de V. Ex.ª, sr. prof. Adelino da Palma Carlos, o primeiro-ministro da nova República, saudação que alargo a V. Ex.§s, srs. ministros, secretários e subsecretários de Estado. Pesam sobre V. Ex.ªS, a partir deste momento, as maiores responsabilidades que alguma vez tocaram a governantes deste País. Aliciante empresa a de preparar a edificação do País novo que Portugal há-de ser. Mas não nos iludamos um só instante quanto à premência de mobilizar todas as nossas capacidades numa permanente exigência de multiplicação pessoal, em ordem ao cabal cumprimento dos objectivos propostos.

Constam esses objectivos do programa do governo de que o País tomou já conhecimento, mas creio valer a pena aprofundá-los em ordem a eliminar-lhes espaços de indeterminação. Haverá em primeiro lugar que pôr em destaque o imperativo de o Governo Provisório ser um Governo de unidade nacional, característica que impõe aos seus membros uma actuação de absoluta independência face aos programas doutrinários dos grupos políticos com que muito legitimamente se possam identificar.

Só à luz deste espírito será possível consolidar a democracia em Portugal, na livre corporização das instituições em que há-de consubstanciar-se. Situa-se, portanto, para além do âmbito dos poderes do Governo Provisório toda a decisão sobre as opções fundamentais que só à Nação competem quando para tanto estiver organizada, o que terá de suceder no prazo de um ano.

Nesse lapso de tempo, cabe ao Governo reparar as sequelas do meio século de paternalismo, e abrir campo à completa realização político-social dos cidadãos dentro de uma sociedade onde não tenham lugar desequilíbrios contrários à condição humana, e onde todos os Portugueses participem na gestão dos seus destinos.

Situar-se-á nesta linha de governo a promulgação de medidas legislativas que consolidem o efectivo exercício dos direitos e liberdades fundamentais, tal como se encontram definidos em declarações universais. Mas não poderá esquecer-se que a democracia não é de modo algum a mera conversão dos usurpados em usurpadores, da prepotência de minorias em prepotência de maiorias. Ela é, acima de tudo, a garantia dos direitos e liberdades individuais, só possível em clima de respeito mútuo, onde não cabem atentados contra pessoas, opiniões, bens e direitos legítimos; atentados que terão de ser rigorosamente reprimidos, venham de onde vierem. Será ponto essencial da acção governativa a repressão de todos os abusos como crimes contra a reconstrução nacional, passíveis portanto de julgamento no âmbito da justiça criminal comum.

Além do mais, deve ter-se presente o facto de que todo o excesso cometido por pessoas ou grupos de que resulte ofensa dos direitos de terceiros redunda em reforço da argumentação totalitária, sempre pronta a denunciar a falta de preparação do povo português para assumir a democracia.

A esta luz, e prioritariamente, haverá que tomar medidas tendentes a institucionalizar a organização dos partidos políticos; elaborar a nova lei eleitoral e preparar as futuras eleições legislativas; e fundamentar a nova orgânica político-administrativa da Nação sobre autarquias locais autenticamente constituídas, assentes na responsabilidade dos munícipes e na sua participação directa na esfera política dos respectivos órgãos.

Simultaneamente, será preparada e promulgada legislação básica atinente a contemplar as condições de vida e de integração social dos trabalhadores, e da sua participação efectiva na vida económica nacional.

Terá de substituir-se a orgânica corporativa por um sistema institucional que, desde a empresa ao agregado de trabalho, permita o contacto e o entendimento indispensáveis entre agentes económicos; definir-se os parâmetros da liberdade sindical que defendemos, outorgando-se aos trabalhadores os instrumentos de afirmação consagrados nas demais sociedades evoluídas do mundo em que vivemos. Legislar-se-á sobre salário mínimo e produtividade mínima; estruturar-se-á progressivamente um sistema integrado de segurança social que garanta de facto a assistência na terceira idade e na doença, e a reforma e protecção do trabalho feminino — objectivos a construir através de um serviço nacional adequadamente estruturado. Tais medidas irão contemplar igualmente a função pública, em relação a cujos trabalhadores se reconhece a inconsistência de quaisquer medidas discriminatórias.

No domínio económico-financeiro, terão de ser tomadas providências imediatas no sentido de travar a alta do custo de vida. O problema da inflação é um problema técnico de resolução muito complexa que, atenta a inoperância de acções isoladas, deverá ser tratado globalmente. Primeiro, porque a componente importada nos escapa; depois, porque a modificação da estrutura de defesa nacional e a consequente expansão da oferta passam, no nosso caso, pela solução de problemas políticos muito delicados; e, finalmente, porque aumentos de salários e congelamento de preços são, na prática, factos incompatíveis. Teremos de exercer desde já a nossa acção no «controle» dos preços nos sectores que mais directamente oneram a despesa das famílias: alimentação e habitação. Há assim que legislar no sentido de eliminar a especulação sobre terrenos, principal factor da inflação das rendas de casa, e ainda de travar a elevação destas rendas; e terão de encarar-se medidas concretas de congelamento de preços de certos produtos básicos com recurso, se necessário, a empresas públicas de distribuição

Terão também de ser assegurados o equilíbrio monetário e a solidez da moeda, havendo para tanto que desbloquear os circuitos económico-monetários internos e externos; promover a multiplicação dos investimentos e o afluxo de capitais portadores de tecnologias, em ordem ao rápido crescimento do produto nacional; tornar a nossa indústria competitiva no mercado externo; e reconverter a estrutura da actividade agrícola pela via da livre cooperativização. O Governo reserva-se, naturalmente, o direito de intervir neste domínio sempre que a iniciativa privada revele incapacidade de resposta ao ritmo desejado de desenvolvimento ou tenda a afastar-se do quadro social em que se perspectiva a nova sociedade portuguesa.

No sector da educação, prosseguiremos a reforma do ensino, democratizando a escola à luz do conceito de que é nela que se radica e conforma a consciência dos cidadãos livres. Terão de facultar-se a todos idênticas oportunidades de acesso aos bens da cultura e da educação, estimulando paralelamente o florescimento do nosso património cultural. Neste domínio, há que consolidar a força vinculadora da língua portuguesa como a formação de uma História de que nos honramos e traço de união das comunidades lusíadas ou lusófilas que por essa via se manterão unidas independentemente de estatutos políticos.

Na ordem externa, o Governo Provisório dará activa contribuição para a paz e segurança internacionais, cooperando abertamente com a Organização das Nações Unidas. Serão respeitados os compromissos internacionais a que nos vinculámos por força de tratados e acordos celebrados, designadamente com a N. A. T. O., o Reino Unido, a Espanha e o Brasil. Esforçar-nos-emos por estreitar os laços com a Comunidade Europeia e não nos escusaremos ao estabelecimento de relações diplomáticas com quaisquer países.

Reservei propositadamente as últimas palavras para o problema do Ultramar, o mais importante e o mais delicado dos problemas que terão de resolver-se. Na plena consciência de que o problema não é militar, afirmamos desde já o nosso reconhecimento do direito de todos os povos à autodeterminação, assumindo solene compromisso de respeitar integralmente a decisão das populações ultramarinas, tomada porém esta em plena consciência, sem pressões de espécie alguma e na prévia garantia de que a opção terá de ser feita, não entre duas alternativas apenas, mas entre todo um leque de viabilidade. Não creio que possa ser sustentada, por quem quer que seja, uma solução negociada entre facções de representatividade equívoca ou imperfeita. Defendo há muito a opinião de que compete às populações africanas e europeias de África escolher livre e conscientemente o seu destino; e a via mais autêntica para essa autodeterminação será o amplo debate das viabilidades de opção, no clima de liberdade democrática instaurado. Nesta base, serão exploradas todas as possibilidades que possam conduzir à paz no Ultramar, havendo entretanto de acelerar-se ao mais elevado ritmo a regionalização das estruturas políticos dos territórios ultramarinos, com apelo à participação dos seus naturais nas actividades da gestão pública. E com vista à concretização de tal objectivo —o restabelecimento da paz e a preparação de uma consulta popular isenta e aberta a todos os controlos— são dadas plenas e formais garantias aos dirigentes dos movimentos separatistas, que poderão entrar e sair livremente do território português para os contactos que desejarem estabelecer com o Governo, com vista à solução do problema, ou mesmo para a estruturação da actividade legal dos seus partidos, que o Governo Provisório reconhecerá desde que respeitem as regras da democracia.

Eis, senhores ministros, as linhas programáticas do Governo Provisório. Resta congratular-me com a esperança do sucesso fundamentada nas qualificações pessoais de Vossas Excelências e na certeza de que, acima das vossas ideias partidárias que democraticamente respeito, presidirá à acção do Governo um espírito de verdadeira equipa ao serviço dos superiores interesses da Nação. E termino com um apelo a todos os Portugueses para que ajudem o Governo Provisório a levar a cabo a gigantesca tarefa de edificar um Portugal renovado, democrático, livre e progressivo.

Discurso do Primeiro-Ministro Palma Carlos
16 Maio 1974

O Governo Provisório de que tenho a honra de ser primeiro-ministro, por pedido directo de V. Ex.ª, está consciente da enorme tarefa que lhe incumbe e da responsabilidade que neste momento assume perante a Nação.

V. Ex.ª ontem afirmou, na sua notável mensagem ao Povo Português, e vem de reafirmar nas magníficas palavras que acaba de proferir que este Governo é um Governo sem outro programa que não seja o de actuar dentro das grandes linhas de orientação definidas em obediência aos princípios do programa do Movimento das Forças Armadas já legislativamente consagradas.

Constituem-no homens das mais diversas tendências e das mais diversas ideologias, mas todos irmanados no desejo de servir, até ao limite das suas forças, a causa da Democracia e da Liberdade e de imprimir à nossa vida social, política e económica novos rumos que a situem na hora presente.

Há problemas de extrema urgência a decidir com coragem e com determinação. Acima de todos, deverão colocar-se o da guerra do Ultramar, que é o mais dramático e o mais candente. O do nosso equilíbrio económico, que exige sacrifícios e compreensão em que todos temos de irmanarmo-nos. O da situação das massas trabalhadoras, que constituem a maioria da nossa gente. O da paz social, que é imprescindível manter, pondo fim a excessos que a libertação dum povo sufocado durante quase meio século subitamente fez explodir. Quem nunca conheceu a liberdade não pode, porventura, aperceber-se senão após a experiência que vai iniciar-se, de que ela a todos impõe uma autodisciplina que a não leve a ofender a liberdade alheia. Dessa lição não carecemos nós, os homens da minha geração, que a vivemos e que a perdemos para só agora a recuperar em toda a plenitude. Mas assim como transmitimos o facho da nossa fé e não deixamos que ele se extinguisse, também esperamos que esta noção fundamental seja compreendida e cada um aguarde, paciente e disciplinadamente, a realização das suas aspirações.

Uma revolução faz-se num dia, uma alteração das estruturas sociais é obra que exige longo estudo e longa ponderação.

Aqui está o Governo Provisório para iniciá-la e para prossegui-la, mas só poderá fazê-lo num clima de paz, num clima de harmonia que prefere ver espontaneamente estabelecido.

Sabemos que há muitos clamores para que se exerça justiça, em relação aos que hajam praticado actos que caiam na sua alçada. Mas a justiça por definição tem de ser serena e tem de ser imparcial. Não é sobre o ódio que se cria um novo mundo que todos desejamos. A justiça há-de passar; a justiça mas não a vindita privada que nos faria reverter a um clima a que as Forças Armadas puseram termo. Nisso se empenhará o Governo Provisório, que nas longas diligências que levaram à sua constituição já se mostrou inteiramente identificado na obtenção destas finalidades e que constitui, com que prazer o digo, dentro da sua heterogeneidade, um corpo que considero exemplar.

Estamos aqui a um tempo pela vontade popular e pela vontade das Forças Armadas, unidas numa realização maravilhosa, em que se revelou subitamente a alma profunda duma Grei.

Há apenas um mês, éramos exilados, uns dentro, outros fora do País, que tanto amamos e cujo trágico destino nos amargurava. Os longos anos de dor silenciosa dão-nos a consciência de que fomos agora chamados a tentar remediar erros que não cometemos, e que não podíamos sequer apontar. Isto faz que todos nós assumamos o poder com o espírito de dádiva total.

Para mim, a poucos meses do limite de idade, ponho ao serviço do meu País as forças de quem não pode, nem deseja senão paz de consciência. Ajudar-me-á com o entusiasmo da sua mocidade o Senhor Ministro sem pasta dr. Sá Carneiro, a quem solicitei que desempenhasse a função específica de Adjunto do Primeiro-Ministro e que aceitou o encargo. Tanto como na sua, tenho plena confiança na lealdade, na devoção e na competência de quantos aceitaram acompanhar-me. Passou a era das personalidades e chegou a era das ideias. Servimos a Democracia para servir Portugal num dos momentos mais trágicos, mais gloriosos da sua História.

Façamo-lo estritamente unidos, com plena fidelidade a V. Ex.ª, Senhor Presidente da República, que neste momento encarna o Povo Português e a quem endereço, nessa qualidade e como Chefe incontestado e glorioso das Forças Armadas, que abriram o caminho da Salvação Nacional, em meu nome, em nome do Governo Provisório, as minhas respeitosas saudações.

Discurso de Spínola na Posse do II Governo Provisório
18 Julho 1974
(primeira alusão à maioria silenciosa)

«A hora que vivemos não se compadece com forma- lismos de circunstância nem simples expressões de cortesia, com que é hábito sublinhar actos desta natureza. Todos temos plena consciência de que o momento é de acção e não de retórica, a reclamar por isso medidas inadiáveis que as palavras tantas vezes retardam.

Limitar-me-ei, portanto, a destacar a reconhecida estatura moral e intelectual do coronel Vasco Gonçalves e o facto de ser o cérebro da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas e, como tal, o primeiro responsável pelo seu ideário. A sua presença na chefia do Governo e a inclusão de elementos das Forças Armadas no elenco governativo, prestando serviço não como políticos mas como cidadãos plenamente conscientes dos poderes e deveres que para eles decorrem do código de honra militar, são penhor seguro de que se manterá a pureza dos objectivos do Movimento e de que, por conseguinte, não serão ultrapassadas as metas fixadas no respectivo programa. Garantia, aliás, reforçada pelas próprias Forças Armadas, que no seu todo coeso e unificado, em torno dos ideais nacionais, não consentirão, seja a quem for, que se permita alterar o desenvolvimento do processo de democracia em curso.

Mas este acto de posse ocorre no momento em que a maioria dos Portugueses olha o futuro com apreensão; e por isso mais amplo terá de ser o conteúdo do que me sinto no dever de transmitir ao Governo e à Nação.

O País viveu, nestes últimos dois meses, uma intensa experiência sobre o que é e o que não é liberdade e democracia; experiência suficientemente válida para que tenha tomado consciência da gravidade das ameaças que enfrentamos e formado um juízo completamente claro da situação.

Ao constatar a perfeita orquestração dos excessos que se repetem por toda a parte; ao constatar ser impossível atribuir a reacções espontâneas a inversão de toda a ética a pretexto da liberdade, inversão a que se assiste quotidianamente nas ruas, nas empresas, nas escolas e até em sectores da função pública de alta responsabilidade social; ao analisar, enfim, todo este quadro de flagrante anomalia, ressaltam à evidência as linhas de força que estão na origem da situação a que urge pôr cobro, pois encontram-se em jogo o prestígio do povo português e a liberdade de que desejamos usufruir.

Creio não ser necessário documentar quanto afirmo, pois a grande maioria dos Portugueses decerto bem o reconhece. Mas importa que a ameaça seja enfrentada a tempo, pois não poderemos consentir que à sombra da liberdade se instalem ditaduras; nem poderemos consentir que se continue a atribuir apenas às forças da reacção as origens dos desmandos que a pouco e pouco começam a revelar o contexto em que se inserem. Não se fez uma revolução para que o poder passasse de um extremo a outro à custa do povo português. E não tenhamos, a tal respeito, qualquer ilusão. Ou a maioria silenciosa deste País acorda e toma a defesa da sua liberdade ou o 25 de Abril terá perdido perante o Mundo, a História e nós mesmos o sentido da gesta heróica de um povo que se encontrou a si próprio. E com esse desengano se esfumarão as nossas esperanças na democracia.

Não cabe aqui traçar o perfil do homem social em que se terá de moldar a sociedade portuguesa, pois ao esboçá-lo estaríamos desrespeitando a ética da missão que aceitámos. Serão os Portugueses quem há-de defini-lo em consenso; mas para tanto impõe-se que sejam de facto os Portugueses a traçá-lo e não terceiros a determiná-lo; e que seja português o contexto em que esse perfil haja de recortar-se.

Mas se tal definição não cabe na nossa ética, urge, todavia, delinear o perfil do que firmemente desejamos não ser. E creio que o pensamento do povo português poderá ser resumido na afirmação de que os cidadãos, independentemente do pendor político da sua preferência, não desejam uma sociedade em que, de um modo ou de outro, apenas beneficiam uns tantos; não desejam a sua liberdade coarctada senão pelas leis que votaram; não desejam que a desordem anárquica os lance no desespero da luta pela subsistência; não desejam viver no pesadelo da dúvida sobre um futuro ameaçado pela constante insegurança cívica e social; não desejam a vida dos seus filhos destruída pela perversão dos valores que que constituem fundamento moral da dignidade humana; não desejam, enfim, que em nome da liberdade os lancem de novo em outras formas, bem mais cruéis, de escravidão.

Toda a sociedade política moderna pressupõe como condição essencial da sua existência o claro respeito do pacto social consubstanciado na disciplina cívica e na obediência à lei, legitimada esta pelo processo democrático da sua formação. E, sendo assim, terá de considerar-se a anarquia como crime contra a existência dessa sociedade e, como tal, grave ofensa das pessoas e dos bens que à mesma sociedade compete proteger. Importa, portanto, garantir o respeito pela lei, que o mesmo é dizer, a disciplina cívica.

Não pode reconhecer-se, todavia, como norma o primado da lei em abstracto, pois há que distinguir entre mera legalidade e autêntica legitimidade; só à luz desta distinção é possível construir a democracia e conquistar a liberdade. Temos capacidade para o fazer; mas só o conseguiremos quando houvermos institucionalizado o processo democrático de discutir e votar, conferindo depois ao poder mandatário a força necessária para impor a decisão, então tornada simultaneamente legal e legítima.

Não tenhamos ilusões a tal respeito — não seremos uma democracia enquanto não institucionalizarmos o processo de decidir; e jamais o conseguiremos em clima de anarquia. A via da democratização passa, assim, pela mais sã disciplina cívica; e desse modo todo o atentado contra tal disciplina terá de ser encarado, pelo consenso da Nação, como crime de lesa-liberdade e de lesa-democracia. Disciplina que não pode consentir que seja quem for exorbite do seu estatuto social para, sob a capa da liberdade, atentar contra os direitos do seu semelhante ou se atribuir pretensas missões de saneamento que ultrapassem o quadro legítimo das prerrogativas conferidas pelo pacto social.

O clima em que temos vivido terá, pois, de terminar, na medida em que por essa via não poderemos construir o País livre, democrático, digno e próspero em que os Portugueses desejam viver, nem alcançaremos os objectivos da paz, de liberdade e de justiça social para que despertámos na madrugada de 25 de Abril. Objectivos que alguns estão empenhados em ignorar; pois há quem esqueça que as mudanças de que o País carece deverão processar-se, nos termos do Programa do Movimento das Forças Armadas, sem convulsões internas que afecte a paz, o progresso e o bem-estar dos Portugueses; há quem esqueça que, até ao momento em que o povo manifeste democraticamente a sua vontade perante as opções fundamentais que só a ela cabe tomar, nenhum Governo poderá proceder a reformas de fundo que afectem as estruturas da Nação e o foro íntimo dos cidadãos, sob pena de exorbitar do mandato conferido; e há, enfim, quem esqueça que o 25 de Abril se situou, com inteira clareza na via da salvação da Pátria pela democratização da vida política nacional, sem procurar implantar este ou aquele sistema de governo.

Propusemo-nos construir no mais curto prazo a democracia em Portugal e construí-la-emos. Propusemo-nos resolver os mais prementes problemas nacionais e resolvê-los-emos. Propusemo-nos abrir caminho à dignificação do povo português pela perfeita e cabal realização de cada cidadão mediante a sua participação na vida política da comunidade, e assim procederemos.

Propusemo-nos, em suma, consolidar as liberdades fundamentais e acelerar o progresso económico e social e não abdicaremos dos compromissos tomados.

Neste programa cabem todos os esforços, desde que construtivos, e todas as correntes de opinião desde que eminentemente nacionais e aprovadas em consenso. Mas não podem caber nele os defensores da exploração do homem pelo homem, seja em nome da supremacia do Estado autocrático, seja em nome de ditaduras de classe, em nome da ausência da lei arvorada em regra de conduta.

Não creio que alguém conteste que não se pode ser livre senão sendo responsável. Mas a responsabilidade é uma relação jurídico-social que pressupõe a existência de alguém com poder para exigir e com força para fazer respeitar as obrigações dela emergentes. Esse alguém, nas sociedades políticas, é o Estado. Daí que, sendo a responsabilidade um requisito essencial da liberdade, esta, tal como a democracia, não pode existir quando o Estado é fraco. Porque, não nos iludamos: o Estado ou é forte ou não é Estado. Não cabem pois neste processo de construção da democracia e de conquista das liberdades cívicas quantos pela irresponsabilidade pretendem destruí-las servindo interesses partidários que se não contêm nas fronteiras morais da Nação.

É a esta luz, srs. ministros, que nos compete governar, com a coragem moral e física para levar a cabo a missão de instaurar a democracia e restituir a liberdade ao povo português.

A situação de ausência e incerteza de lei em que temos vivido não pode prolongar-se; e à tentação de promover reformas profundas através de leis demoradamente discutidas e indefinidamente proteladas, terão de sobrepor-se o imperativo da oportunidade e o sentido das limitações impostas pelo Programa do Movimento das Forças Armadas. Ao Governo Provisório compete, com oportunidade e eficácia, legislar em excepção para um período de excepção, procurando, é certo, a mais perfeita adequação da norma ao facto a que se aplica, mas na justa medida dos imperativos do momento. Ao repudiarem-se as leis do antigo regime antes de elaboradas as novas, cria-se um estado de ausência de lei que pode conduzir ao fim da democracia.

Terá de ser definida e anunciada, sem mais demora, a política geral a prosseguir, em cada departamento, com firmeza e determinação que confiram a cada cidadão a perfeita consciência da lei em que vive; política que terá de confinar-se ao Programa do Movimento das Forças Armadas, além do qual se situa qualquer tentativa reformista de fundo e qualquer esforço de transformação radical das estruturas sociais.

Haverá que regular aspectos fundamentais, como o estabelecimento de novos mecanismos de conciliação nos conflitos do trabalho, o direito à greve, a organização sindical dos trabalhadores e do patronato, a actividade industrial e a constituição dos partidos políticos, tendo em mente que se impõe a publicação imediata de medidas legislativas sobre tais matérias. E não será impertinente recordar que um governo deve ser, acima de tudo, uma equipa coesa e eficaz, onde não caibam negativismos sistemáticos, demagogias visando popularidade fácil e, muito menos, disciplinas partidárias atentatórias dos verdadeiros interesses nacionais.

A democratização do País, garantida a todo o transe pelas Forças Armadas, irá prosseguir num leque de ampla abertura a todos os partidos políticos, com exclusão apenas daqueles que ameacem o exercício das liberdades que propugnamos ou visem finalidades antinacionais. Só por esta via alcançaremos o verdadeiro estatuto de Nação livre e a dimensão de país civilizado no contexto geopolítico em que nos inserimos.

Eis quanto entendi que devemos dizer neste momento. Usei a linguagem rude que o respeito pela verdade põe na boca e no coração dos militares. Não sou nem desejo ser um político — sou um soldado que apenas cumpre mais uma missão ao serviço da Pátria. Mas creio que o povo entende esta linguagem, como creio interpretar a sua sã consciência ao afirmar serem estas as palavras que a Nação deseja ouvir.»

Discurso do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves
18 Julho 1974

«Ao assumir, por designação do Senhor Presidente da República, as funções de primeiro-ministro, desejo reiterar a V. Ex.ª e ao Povo Português a decisão inabalável de cumprir escrupulosamente o Programa do Movimento das Forças Armadas, cuja proclamação solene ao País, em 25 de Abril, abriu o caminho para a construção de um Portugal verdadeiramente livre e democrático.

É habitual, em cerimónias como esta, definirem-se as linhas mestras que terão de presidir à acção executiva do Governo.

Tendo por base a plataforma programática do Decreto-Lei 203/74, de 15 de Maio de 1974, o Governo debruçar-se-á prioritariamente, na definição precisa, concreta e sem ambiguidades das linhas políticas que regerão o País em todos os aspectos da vida nacional durante o período do Governo Provisório.

Desejo enunciar, e porque tal constitui tarefa fundamental, a firme decisão de impor, desde já, uma séria moralização da vida nacional, como condição básica para a tomada de medidas que a actual situação económica e social do País exige, para o prestígio das instituições públicas que deverão dispor de um crédito de confiança perante o País.

Na definição da política económica portuguesa, que necessariamente tem de estar ao serviço do povo português e, muito particularmente, das camadas mais desfavorecidas, ter-se-ão em consideração as potencialidades do Estado e da iniciativa privada, cuja adesão, sem ambiguidades, ao esforço de reconstrução nacional é condição necessária à modernização da economia e ao progresso da sociedade portuguesa. Tal significa que se espera dos empresários um alto sentido de responsabilidade nacional, nesta hora grave e decisiva que atravessamos.

Pela parte do Governo, tudo se fará para que o clima de confiança, que a livre iniciativa requer, se estabeleça desde já no integral respeito pelos superiores interesses nacionais.

Neste contexto, convém clarificar certas ambiguidades surgidas ultimamente em torno do problema da viabilidade das chamadas «reformas de fundo». Efectivamente, o Programa do Movimento das Forças Armadas não permite a efectivação de transformações radicais ou revolucionárias da estrutura socioeconómica da sociedade portuguesa; contudo, nem da letra nem do espírito do referido programa se pode concluir que não possam desde já ser adoptadas as medidas que se julgam necessárias para acelerar o progresso económico-social, melhorar as condições de vida do povo português e aproximá-lo dos níveis dos outros povos da Europa.

A realização desta política económico-social não será, porém, possível se não se instaurar, desde já um clima de trabalho, com a mobilização plena de todas as poten- cialidades humanas e materiais deste País. Sem trabalho árduo de todos os portugueses, sem um esforço gigantesco a todos os níveis (Estado, empresários e classes trabalhadoras), no projecto de reconstrução e modernização nacionais, que deve ser o lema instalado na cabeça de todos nós, jamais será levado a cabo o desenvolvimento do País. Simultaneamente, todos teremos de viver, durante este período, em atmosfera de autêntica austeridade, gastando menos no supérfluo e poupando quanto possível para aplicação no esforço global de investimento, que a todos, mas a todos, diz respeito.

Nesta tarefa de reconstrução nacional tem papel fundamental a esclarecida e lúcida acção de todos os meios de comunicação social. A objectividade e sentido das grandes responsabilidades nacionais dos trabalhadores da Informação, desde os tipógrafos aos directores dos jornais, passando pelos redactores, serão um poderoso estímulo para a educação e mobilização de vontades, na edificação de um Portugal novo.

A missão da Imprensa é formativa e informativa, ambos esses aspectos têm a sua pedagogia. A acção pedagógica da Imprensa é fundamental para consciencialização e democratização do povo português. É um dever de honra de todos os trabalhadores de Imprensa. De contrário, não contribuirá para a edificação da democracia, mas para a confusão dos espíritos, agravando desse modo a pesada herança de 48 anos de obscurantismo sistemático.

Finalmente, a Imprensa deve criticar, livre e conscientemente, a vida nacional. Pela sua crítica construtiva, responsável, vigilante e serena, contribuirá para a edificação do Portugal renovado.

Em tarefa semelhante devem participar os partidos políticos e as associações cívicas.

As eleições ainda vêm longe; até lá, e dentro do estrito cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas, há uma ampla acção pedagógica a executar; ensinar o povo português a viver em democracia, onde quer que ele esteja e qualquer que seja a sua condição. Esclarecer, fazer compreender as relações político-económico-sociais, trazer ao de cima o que une o povo e não o que o divide, ensinar os caminhos que, no entender de cada um, são os melhores para o futuro do País, defender o povo das agressões ideológicas partidárias, respeitarem-se mutuamente, não se lançarem em querelas que desacreditem o esclarecimento político e social e que façam o povo fugir dos «políticos». O Povo precisa de ser esclarecido, ensinado. Todos os partidos têm nisso o mesmo interesse. Porque não unirem os seus esforços nessa indispensável campanha de ensino?

A liberdade, como dizia Almeida Garrett há cerca de 150 anos, «só se aprende com a prática». A prática conduz a erros que devem ser corrigidos. Alguns desses erros estão bem à vista em certas actuações desregradas que temos observado. Pois é aos partidos políticos, sem distinção de credos, que compete um importante papel na análise e correcção desses erros, fazendo delas outras tantas lições para o povo.

Já se notam, por vezes, indícios de que há lutas partidárias que não contribuem para a unidade mas para a divisão dos Portugueses. Não é por este caminho que se conquista e consolida a democracia. Neste momento, todos os partidos políticos e associações cívicas se devem unir para consolidar e defender a democracia em Portugal, para fortalecer a unidade do Povo e das Forças Armadas, condição indispensável de paz social e de progresso nacional.

Não desejamos nem admitimos de modo algum, um regresso ao triste passado de antes de 1926.

O que pedimos, portanto, aos partidos políticos e associações cívicas e outras: uma acção pedagógica sistemática, de modo que o Povo possa ser conduzido conscientemente às eleições para a Assembleia Constituinte.

O que está em jogo é o futuro da nossa Pátria e não quaisquer interesses partidários.

Duas palavras sobre a posição dos militares em relação à política. Os militares têm um programa político, o do Movimento das Forças Armadas, e nada mais. Este programa é um programa de isenção, apartidário, sobre o qual os militares se comprometeram por sua honra.

Assim, nós pretendemos firmemente cumprir esse programa, com toda a fidelidade, abdicando das ideias próprias que cada um possa ter, para se empenhar com a máxima isenção e pureza, na realização prática do que se propuseram os camaradas que na madrugada do 25 de Abril tudo de seu ofereceram à nossa Pátria.

E dentro desta linha estaremos sempre atentos a quaisquer tentativas de desvio ao Programa das Forças Armadas, venham elas de onde vierem. É preciso que o País o saiba sem ambiguidades. Não haverá desvios ao Programa das Forças Armadas, pois ele possui a flexibilidade suficiente para permitir transformações radicais do sistema socioeconómico em que vivemos.

Finalmente, não posso deixar de referir a questão ultramarina.

O Programa do M. F. A. prevê com toda a clareza o lançamento dos fundamentos de uma política ultramarina que conduza à paz. Esse lançamento foi feito logo após o 25 de Abril. O sr. Presidente da República no seu discurso, aquando da tomada de posse dos novos governadores de Angola e Moçambique, definiu os princípios que presidem à nossa política de descolonização.

Recentemente, o Conselho de Estado aprovou uma lei constitucional que, completando e esclarecendo o pensamento que presidiu ao Programa do M. F. A. (ver n.º 6 das medidas a curto prazo), reconhece o direito dos povos à autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo o direito à independência.

Neste complicado processo de descolonização, é necessário ter presente que:

Mas tudo tem o seu tempo de gestação, não se podem resolver de ânimo leve assuntos de tanta responsabilidade. Progressos apreciáveis, soluções à vista, se têm obtido em negociações; contudo, elas não podem ser conduzidas, regra geral, a céu aberto, nem delas se pode dar conhecimento, amiúde, ao País, por razões óbvias. Julgo poder afirmar, no entanto, que muito em breve o Sr. Presidente da República fará uma comunicação ao País que lhe dará satisfação, pelo menos em parte, das suas legítimas ansiedades.

A todos os srs. ministros que aceitaram partilhar comigo o honroso encargo de formar o 2.g Governo Provisório, aquele que há-le levar a carta a Garcia, desejo significar o meu maior apreço e a mais leal amizade.

Certo que estou da alta capacidade governativa de V. Ex.ªs, permitam-me uma referência de camaradagem aos jovens ministros militares, cuja presença no Governo do País deverá ser entendida como a garantia do mais fiel cumprimento do nosso programa de consolidação e reforço da democracia.

Sr. Presidente da República:

São estas as palavras de um militar que põe acima de tudo os interesses da sua Pátria; um militar que a coragem e o patriotismo dos nossos jovens oficiais fizeram sugerir a V. Ex.ª para o cargo de primeiro-ministro. A todos esses meus camaradas dirijo o meu mais afectuoso reconhecimento e a certeza de que a minha investidura foi a consagração do movimento que sonharam e realizaram, com os olhos postos na nossa querida Pátria e no nosso querido povo.

São para V. Ex.ª, senhor Presidente da República, as minhas últimas palavras:

V. Ex.ª também colaborou na redacção do nosso programa, bem como o senhor general Costa Gomes. Empenhou também, como nós, a sua honra no compromisso do Programa do M. F. A.

Por todos estes motivos pode V. Ex.ª confiar que tudo farei para cumprir a nobre tarefa de que me incumbiu, que toda ela se resume no integral cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas.»

Discurso de Spínola Sobre a Descolonização
27 Julho 1974

Se há hora grande na vida e na história de um Povo, essa é, sem dúvida, a do seu reencontro com a vocação, a fisionomia e a forma de ser e de estar no mundo que lhe são próprias. Portugal vive hoje essa hora grande; e é com a mais viva emoção que dirijo ao Povo Português de aquém e além-mar, na mais perfeita coerência com a nossa tradição histórica e com o ideário que nos preside e nela se inspirou, a declaração formal de haver chegado o momento de reconhecer às populações dos nossos territórios ultramarinos o direito de tomarem em suas mãos os próprios destinos, concretizando-se, desse modo, o desenvolvimento da política de autenticidade que sempre defendemos.

Somos um povo essencialmente pacifico que através dos tempos sempre buscou na aventura o suprimento das suas carências. Ontem, como hoje, foi a procura em terra alheia de uma vida melhor que motivou os Portugueses na demanda de novos mundos. E se os sucessivos modelos políticos da história do mundo permitiram uma configuração imperial da nossa superstrutura, não poderá daí de forma alguma concluir-se termos sido, em algum tempo, um povo de vocação imperialista. Bastaria para tanto recordar que, exactamente quando as fronteiras de África eram talhadas à mesa das conferências europeias pelos impérios coloniais recém-desaparecidos, já entre nós se levantavam as vozes dos soldados de África defendendo as teses da autêntica emancipação colonial. Teses que, surgidas com o liberalismo, reformadas nos últimos anos da Monarquia e retomadas na vigência da República, traduziam a essência de uma política ultramarina legitimada pelo consenso moral e tomada autêntica pela prática constante de humanismo lusíada.

A fatalidade histórica de nos termos desviado desse curso e a facilidade com que, sob o antigo regime, se legislava sem oposição permitiram que a Pátria viesse a ser definida em mero estatuto legal, esquecendo-se que se não limitam nações como se limitam coutadas.

Pagámos esses erros com o sofrimento ao longo de treze anos de uma guerra cujas perspectivas oportuna e persistentemente denunciei. Se na altura em que a questão ultramarina se agudizou, no começo da década de sessenta, houve que evitar e genocídio e criar as condições para uma solução política, esse esforço militar acabou por perder todo o sentido, na medida em que não foi convenientemente acompanhado no plano político, em ordem a restituir o problema ao quadro dos seus verdadeiros factores. E assim se foi prolongando uma situação sem base ética, que levou os militares que naquele esforço se empenharam, com alto sentido da verdadeira dimensão da Pátria e de fidelidade à causa da justiça, a marcar desassombradamente a posição que culminou com a arrancada de 25 de Abril.

Nesta linha de coerência, e na estrita fidelidade ao Programa do Movimento das Forças Armadas, se anunciaram recentemente os princípios programáticos do nosso processo de descolonização. Processo a que nos vinculámos sem alienação da responsabilidade moral contraída para com as populações ultramarinas, responsabilidade tantas vezes incompreendida e criminosamente explorada por quantos não conhecem ou procuram ignorar toda a extensão das nossas honestas intenções, buscando apenas o fruto de uma popularidade fácil.

Aliás, compreende-se que treze anos de guerra no clima de uma política caracterizada pela carência de autenticidade tenham conduzido a posições de irreconci- liação, que estão na base do ambiente de desconfiança criado. Houve, portanto, que atentar nas características específicas do actual contexto sociopolítico e que acelerar o início do processo formal de descolonização, embora sem prejuízo do seu natural processamento no plano prático das nossas responsabilidades de apoio técnico, económico, financeiro e cultural. Temos de reconhecer que, em tal clima, outra solução mais ortodoxa e formalista poderia ser considerada atitude paternalista e contraditória dos princípios que propugnamos. Os povos africanos, como muitas vezes afirmei, são perfeitamente capazes de, por si sós, se institucionalizarem politicamente e de defenderem a sua própria liberdade. E nesta linha política, impõe-se-nos, coerentemente, remover a última barreira: o enquadramento legal da descolonização.

A lei constitucional n.e 7/74, decretada pelo Conselho de Estado e ontem promulgada, cria o quadro de legitimidade necessário para que se dê imediatamente início ao processo de descolonização do ultramar português. Assim, e na mais perfeita coerência com a linha de acção do meu governo na Guiné, chegou o momento de o Presidente da República reiterar solenemente o reconhecimento do direito dos povos dos territórios ultramarinos portugueses à autodeterminação, incluindo o imediato reconhecimento do seu direito à independência.

Precisando melhor, para que não restem dúvidas sobre a importância histórica do momento e a clareza de quanto afirmamos, quer esta declaração significar que estamos prontos, a partir de agora, para iniciar o processo da transferência de poderes para as populações dos territórios ultramarinos reconhecidamente aptas para o efeito, nomeadamente a Guiné, Angola e Moçambique.

Estamos assim, e desde este instante, abertos a todas as iniciativas para o começo dos trabalhos de planificação, programação e execução do processo de descolonização, com a aceitação desde já do direito à independência política, a proclamar em termos e datas a acordar.

Será uma tarefa complexa, é certo, mas será também uma tarefa que cumpriremos com a coragem de quem não foge à responsabilidade assumida e ao respeito pela Justiça.. Poderemos assim ficar no mundo de cabeça erguida; pois que ao praticarmos este acto de fidelidade ao reconhecimento do direito das gentes celebramos afinal a mais difícil das vitórias: a vitória sobre nós próprios, sobre os nossos erros, sobre a nossas contradições.

É pois este o momento histórico por que o País, os territórios africanos e o mundo ansiavam: a paz na África Portuguesa, finalmente alcançada na justiça e na liberdade. Porque neste momento cessaram as razões dos combates, as forças de um lado e outro poderão dar-se as mãos como camaradas de armas de nações irmãs do mundo lusíada. A essas novas nações, a nascer de Portugal, cuja vocação foi a de dar mundos ao Mundo, cabe-nos desejar que tudo façam para que o seu sonho se não desencante, e a liberdade, a democracia, a multirra- cialidade e o progresso social por que anseiam sejam uma realidade e não apenas uma motivação explorada por terceiros. Que saibam distinguir o Povo Português do regime que o dominou durante meio século; que a justiça por que lutaram se reforce na dupla responsabilidade que assumem.

Portugal não enjeitará, em relação a esses novos países, as suas responsabilidade; dar-lhes-emos, na medida das nossas posses, todo o apoio de que carecerem. Portugal continuará sendo, para todo o cidadão dessas jovens nações, uma segunda Pátria, como o é já para qualquer cidadão brasileiro. Em troca, esperamos apenas continuar unidos por essa convivência sem preconceitos que faz de cada português um cidadão do mundo e pela língua em que sempre nos entendemos. Podemos sentir-nos legitimamente orgulhosos de que a sociedade internacional se enriqueça com povos livres e dignos que se afirmem, vivam, sintam e queiram à sua maneira, mas que se exprimam em língua portuguesa.

E se no momento em que o anunciamos não deixa de ter o sabor nostálgico de um princípio de separação, não poderemos esquecer que damos o mais importante dos passos ao encontro dos nossos próprios interesses, pois a solução da questão ultramarina permitirá que se devolva às tarefas da paz e do progresso todo esse caudal de potencialidades consumidas ao longo de treze anos de uma guerra sem finalidade. Esse passo é dado na altura própria: adiá-lo seria flagrante negação de nós mesmos. Não foi fácil, porém, conservar a independência de espírito que presidiu a esta decisão. Foi preciso enfrentar corajosamente as críticas dos apressados manipuladores da opinião; e às conveniências de certos oportunistas teve de opor-se, não sem dificuldade, a clara consciência da justiça e da responsabilidade perante quantos se nos confiaram, combatendo e morrendo por outra idealização do futuro.

A quantos sonharam, honestamente, com uma África lusa dirijo uma palavra de confiança nas novas perspectivas que se abrem, e de tranquilidade quanto à segurança da vida que construíram na terra a que também chamam sua. Nada terão de recear, pois consideramo-nos em posição de poder confortá-los com a certeza de que as autoridades dos novos países honrarão o sentido de justiça decorrente do seu estatuto de nações plurirraciais de expressão portuguesa.

Desejo expressar à Nação a mais profunda esperança nos horizontes que agora se nos abrem. Reentrámos no mundo após um ostracismo de mais de uma década. Reentrámos com o orgulho de quem soube honrar uma tradição histórica e reintegrar-se na sociedade das nações. Possibilitamos, enfim, o quadro de pleno desenvolvimento dessa vasta comunidade espiritual e humana a que Gilberto Freyre chamou «o mundo que o português criou».

Saiba o Povo Português colher deste facto a lição que encerra. Sem alardes de comício; sem esse aviltamento da condição humana, que decorre da agressão psicológica; sem as manifestações degradantes da consciência cívica através das quais o homem responsável se anula perante a multidão, cumprimos no momento próprio a nossa palavra, prosseguindo firmemente nas realizações que hão-de conduzir Portugal à democracia e à liberdade conscientemente praticadas.

Termino formulando a todos os povos de expressão portuguesa os votos fraternos de um rápido e harmonioso desenvolvimento na paz. Que a língua comum que falamos e quanto de bom houve em cinco séculos de convivência sejam a garantia de que se manterão, ao longo do tempo, os laços de amizade que lhes não negaremos. E que cultivem, sem prejuízo de individualidade própria, os traços tão profundamente humanos dessa maneira lusíada de estar no mundo, que constitui a verdadeira essência do povo que nos orgulhamos de ser.

Finalmente, que nesta hora grande da História da Pátria as nossas comuns esperanças de paz, de justiça social e de progresso continuem a ser o firme sustentáculo da nossa luta e da nossa fé num mundo melhor.

Comunicado de Vasco Gonçalves ao País
18 Agosto 1974

Alguns dos principais mitos do regime deposto eram o da estabilidade económica e financeira, e o da ausência de défice orçamental.

Contudo, a verdade era bem outra. Nas vésperas do 25 de Abril a economia portuguesa estava à beira do caos.

Todos os anos se apresentava um total de receitas que excedia ligeiramente o das despesas. Mas não se explicava que o saldo só era positivo porque havia emissões da dívida pública, destinadas a cobrir o défice real, e que entravam como receitas.

Era como se um trabalhador contasse como receitas suas não só os seus salários, mas também aquilo que pedisse emprestado.

A balança de pagamentos, que tinha sido normalmente superavitária em virtude sobretudo do contributo das remessas de emigrantes, apresentava, no final de Abril, um défice superior a 6 milhões de contos.

Os preços mostravam, em Março, um aumento de 30 por cento em relação a um ano antes.

Campeava uma especulação desenfreada na bolsa, nos bens imobiliários, etc., sem qualquer benefício para o País.

A política fiscal sobrecarregava os mais desfavorecidos.

As despesas militares, com a manutenção de uma guerra que não conduzia, de modo nenhum, a uma solução justa, dos problemas do ultramar, atingiam níveis dificilmente suportáveis pela nossa capacidade económica, cerca de 45 por cento do orçamento.

Verificavam-se grandes despesas com subsídios e alguns bens alimentares, cujos preços haviam subido em flecha no mercado mundial, mas que continuaram a ser vendidos no mercado interno a preços políticos, artificialmente baixos, o que se conseguia à custa de subsídios para os quais não se dispunha de recursos financeiros suficientes. Esses subsídios eram financiados pela Caixa Geral de Depósitos, bancos comerciais e Banco de Portugal, o que significava que se estava a consumir nos prejuízos suportados pelos preços «políticos» de alguns produtos uma parte da poupança nacional tão necessária para o investimento produtivo.

Às dificuldades apontadas atrás há que acrescentar algumas surgidas depois do 25 de Abril:

É, portanto, necessário, o saneamento da vida económica da Nação.

Entre as questões principais põe-se a do défice do Fundo de Abastecimento, resultante da adopção de preços artificialmente baixos, no mercado interno, de certos bens alimentares, importados do estrangeiro a preços consideravelmente mais elevados.

Como se disse atrás, esses bens alimentares subiram em flecha no mercado mundial.

Os inconvenientes da subida de preços que estavam a ser evitados ao consumidor, à custa de subsídios do Estado financiados pelas instituições de crédito, obrigaram a gastar no consumo aquilo que deveria ser investido na actividade económica reprodutiva, com evidente prejuízo para a Nação, a médio e a longo prazo.

É necessário, portanto, aproximar os preços do valor real dos produtos.

Trata-se de uma operação dolorosa, com reflexos no nível de vida da população, mas indispensável para se evitar um desequilíbrio financeiro demasiado grave.

Assim, torna-se necessário aumentar os preços de certos produtos alimentares, entre os quais avultam o pão, o açúcar e o leite, bem como os adubos e as rações para animais.

Pará evitar um maior agravamento do custo daqueles produtos alimentares, os subsídios do Estado continuam, embora em menos volume, e há ainda que aumentar os preços dos combustíveis.

Nestas condições, o défice do Fundo de Abastecimento aumentará ainda de 1 milhão de contos até ao fim do ano.

O Governo considera a reanimação e a expansão da economia como uma tarefa prioritária de todos os portugueses.

A reanimação económica geral é do interesse de todos, qualquer que seja a sua classe social. Esta reanimação não é compatível com o desenvolvimento súbito e injustificado do entesouramento, isto é, o guardar o dinheiro a um canto da gaveta, sem o pôr a render. O entesouramento prejudica a economia portuguesa na medida em que traz dificuldade à política de crédito e, consequentemente, à dinamização da produção.

O Governo tomou medidas e tomará outras para que essa reanimação se torne um facto.

São traços dominantes do Programa de Acção do Ministério da Economia:

No sector da «Construção Civil» temos algumas dificuldades.

A política de construção do regime anterior estava errada: havia especulação nos terrenos, nas vendas e nas rendas.

Esta especulação só pode ser combatida desenvolvendo amplamente a construção da habitação social, e estimulando a construção corrente de menor preço.

Vamos pôr em prática uma nova política com dois objectivos simultâneos:

No tempo do regime desposto, em cada 100 casas construídas, apenas 5 eram sociais.

Agora, o Governo vai empreender um vasto plano de construção social, ao qual destinará 5 milhões de contos: 1500 fogos por mês.

O fim das guerras em África conduzirá, no futuro, a libertar verbas importantes.

No entanto, devemos ter em atenção:

As vantagens económicas e financeiras do fim da guerra só se deverão fazer sentir dentro de 2 anos.

Contudo, acabar as guerras de África, é, em si mesmo, uma boa e nobre solução para o nosso país e para os povos da Guiné, Angola e Moçambique.

Desde o 25 de Abril verificaram-se importantes aumentos de salários.

A fixação do salário mínimo de 3300$00 representou a imediata e considerável melhoria da situação de muitas centenas de milhar de trabalhadores.

Reconhecemos que há sectores em que se torna difícil a aplicação desse mínimo.

O Governo está a estudar esses casos, em alguns dos quais os próprios trabalhadores mostram grande compreensão.

Mas devemos também ter presente que os salários estabelecidos por lei e os contratos colectivos de trabalho são para cumprir.

Na sua política de salários e preços, o Governo, de acordo com o Programa do M. F. A., tem sido norteado pela preocupação de atender, prioritariamente, às classes mais desfavorecidas.

Não se pode resolver tudo de um dia para o outro. Foi-se para um congelamento dos salários a partir de certo nível.

Trata-se de um congelamento provisório: o desenvolvimento económico precisa de bons técnicos e especialistas e estes devem ser bem pagos.

Contudo, não podemos arrancar do estádio em que nos encontramos com salários elevados, idênticos aos de outros países muito mais desenvolvidos que o nosso, nem com horários de trabalho inferiores aos desses mesmos países.

Embora contra a sua vontade, o Governo não pode, de momento, atender a todas as situações.

O aumento previsto custará ao Estado 5,6 milhões de contos por ano, e representa um acréscimo médio de 37,5 por cento do conjunto das remunerações do funcionalismo. Trata-se de um aumento nitidamente superior ao dos preços, que vai melhorar a situação económica real de numerosos funcionários, especialmente os de mais baixos vencimentos. Não se poderia ir mais além, sob pena de se agravar perigosamente o défice orçamental que já é considerável.

O Governo acabou por decidir-se, de acordo com o Programa das Forças Armadas, por um critério de justiça social e por uma escala fortemente degressiva, isto é, os maiores aumentos beneficiaram os salários mais baixos.

O Governo tem a noção clara que os quadros dos escalões mais elevados têm vencimentos inferiores aos equivalentes das empresas privadas.

E tem também a noção de que precisa do trabalho de funcionários altamente qualificados.

É objectivo do Governo corrigir essas desigualdades logo que possível e na medida dos recursos disponíveis.

A mesma preocupação de justiça social está na reforma fiscal, que acaba de ser decidida, em que se elevam as isenções em diversos impostos e se estabelecem taxas mais progressivas no imposto complementar.

Os aumentos de salários e vencimentos, embora ainda insuficientes e não respeitando a todos os trabalhadores, resolveram já situações mais difíceis.

Infelizmente, apesar das medidas de congelamento de preços, não se está, de momento, em condições de evitar o progresso da inflação, embora se procure limitá-la através da expansão controlada da actividade creditícia.

Como se disse atrás, torna-se necessário e inevitável o aumento de certos preços, quer devido a causas externas, quer devido a causas internas.

Dentre as causas externas salienta-se: os preços dos alimentos importados subiram nos últimos dois anos, metade a carne, quase para o dobro o trigo, mais de duas vezes o açúcar, três vezes o petróleo e quatro vezes as matérias primas para adubos.

Dentre as causas internas: a escassez da oferta em relação à procura; a necessidade de aproximar os preços praticados no mercado dos preços reais, por impossibilidade de manter os subsídios ao nível que se praticava no antigo regime.

Estes aumentos vão agravar a situação da população portuguesa. Trata-se, porém, de medidas de emergência, que pretendem, antes de tudo, acautelar o futuro.

Uma das principais preocupações do Governo Provisório, de acordo com o Programa do Movimento das Forças Armadas, tem sido lançar os fundamentos de «uma nova política social que, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida de todos os portugueses» (Programa do Movimento das Forças Armadas, B6b).

Os aumentos do abono de família e o seu alargamento a mais de meio milhão de crianças, a continuidade dos benefícios da Previdência no tempo de desemprego, a duplicação das pensões sociais para inválidos e maiores de 65 anos, medidas de ajuda aos desempregados, actualmente em estudo, etc., são exemplos dessas preocupações.

A par da atenção pela situação das camadas mais desfavorecidas, o Governo encara, no quadro de uma política de austeridade que a situação impõe, pôr termo a situações escandalosas de reformas de muitas dezenas de contos, fixando como máximos para pensões o correspondente ao vencimento dos ministros.

O Governo coloca como sua tarefa imediata, essencial, resolver os problemas económicos e financeiros mais urgentes que decorrem das modificações políticas realizadas pelo 25 de Abril.

As medidas até agora decididas, têm na sua maior parte, um carácter de emergência.

Muitas delas abrem, porém, uma perspectiva mais larga e estabelecem novas bases e novos critérios para solução dos grandes e graves problemas económicos nacionais.

Ao procurar-se a solução dos problemas mais imediatos não pode deixar de olhar-se para o futuro.

E esse futuro, o futuro de um Portugal democrático, próspero e independente, exigirá:

Procurei focar, de um modo geral, os aspectos mais característicos da presente situação económica e social do País.

Através dos vários meios de comunicação, a partir da semana que hoje se inicia, os senhores ministros e secretários de Estado explicarão, com mais detalhe, cada um dos aspectos agora tratados.

Portugal vive um momento muito particular da sua História, simultaneamente de grande esperança pela liberdade alcançada e de preocupação pela grave crise herdada, da qual urge libertarmo-nos.

É passado o tempo em que o Governo mentia ao povo.

O País tem necessidade de conhecer a sua situação real.

Só assim poderá compreender os sacrifícios e a austeridade que se lhe pedem.

O Governo Provisório tem o dever de tomar a tempo as medidas que se impõem para o saneamento económico, não fazendo política demagógica, e criando assim condições que facilitem o trabalho do Governo que, no próximo ano, há-de ser livremente escolhido pelo Povo Português.

De imediato, estão a ser e vão ser tomadas medidas no sentido de sanear toda uma vida económico-social doente, ao mesmo tempo que se lançam iniciativas cujos reflexos se não farão sentir a curto prazo.

Não podemos convencer-nos que o 25 de Abril tenha gerado a prosperidade e a abastança onde a miséria grassava. Não se passa de um momento para o outro de país dos mais atrasados da Europa para o nível de uma França ou de uma Itália.

É um processo que exige uma devoção e um patriotismo capazes de fazer aceitar a todos, mas a todos, os maiores sacrifícios, quer na austeridade em que teremos que nos habituar a viver, quer no trabalho, muito trabalho, a que temos que nos entregar, tudo isto num clima de verdadeira ordem democrática e de paz social, condições indispensáveis para a reconstrução nacional a operar.

Por outro lado, a política de descolonização em curso não permitirá que se libertem rapidamente os homens e os meios hipotecados, que deixemos de ter encargos neste domínio, os quais ainda hão-de pesar fortemente no nosso orçamento, durante um ou dois anos pelo menos.

A primeira condição para vencer as dificuldades é conhecê-las, é ter bem consciência delas, o que exige, em todos os instantes, uma política de verdade por parte dos dirigentes.

É com base nessa política de verdade e no esforço de todos os portugueses, qualquer que seja a classe social a que pertençam, que se construirá o Portugal democrático, próspero e independente, que desejamos.»

continua>>>


Inclusão 02/04/2019