Antônio Gramsci, Chefe da Classe Operária Italiana

Palmiro Togliatti


Primeira Edição: ......
Fonte: Problemas - Revista Mensal de Cultura Política nº 25 - Março-Abril de 1950.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, Setembro 2008.
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Quando Antônio Gramsci, deputado ao Parlamento Italiano e portanto protegido pelas imunidades asseguradas na Constituição, acusado de crimes que não havia cometido, foi arrastado ao Tribunal Especial de Roma, em 1928, o procurador fascista não se deu ao trabalho de demonstrar que as acusações, lançadas contra ele, se baseavam cm fatos. No libelo, a principal imputação consistia pura e simplesmente na demonstração de que Gramsci era o Chefe reconhecido do Partido Comunista, partido legal na Itália quando Gramsci foi preso. Mas o procurador foi ainda mais cínico e brutal. "Por vinte anos — disse ele — devemos impedir a este cérebro de funcionar". Exprimindo-se deste modo, o verdugo fascista, camuflado de juiz, não revelava apenas a ordem que tinha recebido das autoridades fascistas e de Mussolini pessoalmente, a ordem de condenar Gramsci de modo tal que significasse a sua supressão física; ele rasgava todos os véus das formas e das ficções jurídicas, punha a nu de modo brutal a substância do processo, da condenação e da perseguição que levou Gramsci à morte: o medo e o ódio de classe implacável das castas reacionárias que governam o nosso país. Este ódio perseguiu Gramsci após o processo e a condenação, inexoravelmente, até a morte. Para satisfazer este ódio, Gramsci foi assassinado.

Por ordem da burguesia reacionária italiana, e de Mussolini, Gramsci foi jogado num lugar oculto, segredado de todo mundo, ele que não vivia senão no contacto contínuo, multiforme com os homens, com os trabalhadores, de quem conhecia a fundo o ânimo e as necessidades, e que o amavam. Por ordem da burguesia reacionária e de Mussolini, foi ele arrastado de um cárcere a outro, com grilhões nos pulsos o carregado de cadeias, nos lúgubres vagões celulares onde um homem é sepultado vivo, de pé, entre quatro paredes, e não pode fazer nenhum movimento, enquanto o vagão, engatado aos trens de carga, é abandonado numa estação deserta, queimado pelos raios do sol ardente do verão, ou então reduzido a uma geleira. no inverno, sob o vento, a chuva, a neve. Por ordem de Mussolini, toda noite, durante anos e anos, os carcereiros, entravam, rumorosamente duas, três vezes na cela de Gramsci a fim de privá-lo do sono e reduzir-lhe ao extremo as energias físicas e nervosas. Por ordem de Mussolini, a ele, doente febricitante, impossibilitado de alimentar-se de modo regular, estendido no leito por semanas inteiras, foi negada a assistência médica. O "médico" enviado a visitá-lo dizia-lhe que não julgava necessário dar-lhe assistência, porque, sendo fascista, não podia desejar mais do que o seu fim. Quando a luta do proletariado internacional e a indignação dos melhores espíritos da humanidade impuseram a Mussolini retirar Gramsci da cela onde o seu corpo definhava e conceder-lhe uma assistência médica, foi encomendado um piquete de 18 carabineiros e de dois policiais, dirigidos por um comissário especial da segurança pública, para custodiar um homem que, atrás das grossas grades do quarto pobre e desconfortável do hospital, jazia inanimado, privado da consciência por dias inteiros, incapaz de afastar-se do leito sem quem o sustentasse. Era claro, nos últimos meses, que o organismo de Gramsci, extenuado por dez anos de reclusão e de doenças, tinha necessidade de uma assistência especial para poder resistir ainda. As funções digestivas não se processavam mais de modo que o corpo pudesse receber força e restauração dos alimentos, tinha perdido na prisão, em conseqüência da uremia causada pelo regime carcerário, todos os dentes. Os ataques de uremia se multiplicavam, ameaçando o coração. As extremidades inchavam. A esclerose do sistema vascular, resultado inevitável da privação de ar, de luz, de movimento, fazia progressos ameaçadores. A respiração se tornava difícil, todo movimento doloroso. A vida se transformava lentamente, cruelmente, em agonia. Os verdugos do nosso grande camarada espreitavam e acompanhavam esta agonia com alegria criminosa. Os médicos se comportavam com ele como se houvessem recebido instruções de deixá-lo morrer, pura e simplesmente. E tal ordem eles haviam sem dúvida recebido, porque, nos últimos meses, quando as suas condições se faziam mais e mais graves, ele não pôde receber nenhuma visita, nem submetido a nenhum dos tratamentos de que necessitava.

Não obstante tudo isto, para nós que conhecemos como Gramsci lutava, durante o período de cárcere, com todas as suas forças, pela própria vida, como deve lutar todo revolucionário, uma vez que sabia que a sua vida era preciosa, que era necessária à classe operária e ao seu partido — a sua morte permanece envolta numa sombra, que a torna inexplicável. À longa cadeia das torturas teria sido acrescentado um último inominável delito? Quem conhece Mussolini e o fascismo sabe que avançar esta hipótese é legitimo. A morte de Gramsci permanece inexplicável sobretudo pelo momento em que ocorreu, três dias depois que a sua pena, reduzida por diversas medidas gerais de anistia e indulto, havia expirado e ele tinha o direito de ser libertado, de chamar junto a si amigos e médicos de confiança, de iniciar uma cura, de ser assistido. Inexplicável porque ela ocorreu precisamente, no momento em que por certo todas as forças restantes no seu organismo eram já postas em ação para enfrentar a situação nova que o esperava, para estar pronto a um novo período de atividade.

Mussolini deu aos seus capangas a ordem de trucidar Matteotti, em 1924, porque a ação enérgica de Matteotti no Parlamento, embebendo-se dos sentimentos de justiça e liberdade das massas populares, ameaçava o regime fascista num momento particularmente difícil. Assim ele deu a ordem de assassinar Amendola e Gobetti, assim fez suprimir no cárcere Gastone Sozzi, assim ordenou com cinismo a supressão de centenas e centenas entre os melhores filhos do povo italiano. O assassínio é instrumento normal de governo em regime de ditadura fascista. Mas Gramsci, isto é certo, foi assassinado do modo mais inumano, mais bárbaro, mais refinadamente cruel. Dez anos durou a sua morte! O fim de Gramsci não revela somente o estilo de Mussolini e do fascismo. Revela o estilo da grande burguesia capitalista e das outras castas reacionárias italianas, que herdaram e fizeram seu tudo quanto existe de sórdido, de inumano, de cruel dos métodos de opressão de que o povo italiano tem sido por séculos e séculos a vitima, que fizeram suas a perfídia e a hipocrisia dos padres, a brutalidade dos invasores estrangeiros, a prepotência dos senhorios feudais, a mesquinhez e a cobiça dos mercadores e dos usurários.

Tudo o que o povo italiano criou de grande, de genial, no curso da sua história, foi criado numa luta dolorosa contra os opressores. Os maiores homens que saíram do seio do povo italiano foram perseguidos pelas classes dirigentes do nosso país. Perseguido, constrangido à vida de exílio e triste foi Dante, criador da língua italiana. Queimado em praça pública, Giordano Bruno, o primeiro pensador italiano dos tempos modernos. Deixado a apodrecer num cárcere horrendo, Tommaso Campanella, sonhador de um mundo fundado sobre a ordem e a justiça. Submetido à tortura, Galileo Galilei, criador da ciência experimental moderna. Exilado e tratado pelos esbirros da monarquia como um delinqüente comum, Giuseppe Mazzine, o primeiro defensor e combatente convicto da unidade nacional do nosso país. Circundado de suspeitas, caluniado, Giuseppe Garibaldi, o herói popular do Risorgimento. Toda a história do nosso povo é a história de uma rebelião contra a tirania exterior e interna, de uma luta contínua contra o obscurantismo e a hipocrisia, contra a exploração impiedosa e a opressão cruel das massas trabalhadoras por parte das classes proprietárias. Antônio Gramsci caiu nesta luta, mas a sua vida de agitador, de propagandista, de organizador político, de dirigente da Classe Operária e do Partido Comunista, não é mais somente o protesto de uma grande personalidade isolada, não compreendida e separada das massas. Nele, o povo italiano não apenas encontrou o homem que, conhecendo a fundo a história e as condições de vida do povo, exprimiu as aspirações das massas populares, formulou os objetivos de liberdade, de justiça, de emancipação social a que tende a luta secular dos oprimidos contra os opressores. Antônio Gramsci foi o homem que soube reconhecer quais são as forças que na sociedade italiana de hoje, têm a missão histórica de libertar toda a sociedade de qualquer espécie de opressão e de exploração. Ele não foi somente um filho do povo e um rebelde, não foi somente o homem que, pela força da sua inteligência, pela clareza e profundidade do seu pensamento político e social, pelo vigor dos seus escritos, supera qualquer outro italiano dos nossos tempos: ele foi um revolucionário dos tempos modernos criado na escola da única classe consequentemente revolucionária que a história conhece, o proletariado industrial, — profundamente imbuído da mais revolucionária das doutrinas políticas e sociais: o marxismo-leninismo. Estreitamente ligado à classe operária, combatente infatigável pela criação de um partido revolucionário de classe do proletariado, ele foi um marxista, um leninista, um bolchevique.

Por isto, a burguesia reacionária e Mussolini o trataram não somente como inimigo, mas como o mais perigoso, o mais temível dos inimigos. Não se sentiam tranqüilos enquanto Gramsci fosse vivo, enquanto "o seu cérebro funcionasse", enquanto não se apagassem a sua mente e a sua vontade, enquanto o seu coração não tivesse cessado de bater. O seu assassínio foi executado com a intenção precisa, de privar o Partido, o Proletariado, o povo de nosso país, de um guia esclarecido, enérgico, seguro.

O Primeiro Marxista da Itália

Na história do movimento operário italiano, na história da cultura e do pensamento italianos, Antônio Gramsci é o primeiro marxista, — o primeiro marxista verdadeiro, integral, conseqüente. Ele é de fato o primeiro que compreende a fundo o ensinamento revolucionário dos fundadores do Socialismo científico, o primeiro que compreende o faz próprias as novas posições conquistadas pelo marxismo no desenvolvimento ulterior, que lhe deram Lênin e Stálin, o primeiro que, sobre a base deste ensinamento, determina a função histórica do proletariado italiano e combate, durante toda a sua vida, para dar ao proletariado tanto a consciência desta função como a capacidade de cumpri-la. Gramsci é o primeiro marxista da Itália, porque une, de modo inseparável, à teoria a prática revolucionária, ao estudo e à interpretação dos fatos sociais o vínculo com as massas e a atividade quotidiana política e de organização, porque cria o dirige o Partido Comunista, porque é um internacionalista, porque cai empunhando a bandeira do nosso Partido e da Internacional.

Hoje, após a sua morte, muitos escrevem sobre ele e lhe rendem homenagem, embora em vida o combatessem asperamente e fossem por ele asperamente combatidos. As homenagens que se rendem à grandeza da inteligência e do espírito do nosso camarada e chefe são homenagens devidas. Temos, porém, o dever de dizer alto e forte que Gramsci não foi o "intelectual", o "estudioso", o "escritor", no sentido que estes póstumos louvaminheiros gostariam de fazer crer. Antes do tudo, Gramsci foi e é homem de partido. O problema do partido, o problema da criação de uma organização revolucionária da classe operária, capaz de enquadrar e de dirigir a luta de todo o proletariado e das massas trabalhadoras pela sua emancipação, — este problema está no centro de toda a atividade, de toda a vida, de todo o pensamento de Antônio Gramsci.

Muito jovem veio ele ao movimento operário, aí por 1910, num momento em que amadureciam no nosso país os elementos de uma profunda crise política. A partir de 1900, a indústria se havia desenvolvido com um ritmo intenso, enquanto, nas planícies do Vale do Pó, os progressos da agricultura capitalista intensiva mudavam a face de regiões inteiras. Nas grandes cidades industriais do Norte, da massa informe dos artesãos e dos pequenos lojistas, surgira um proletariado numeroso, compacto, o qual havia criado uma densa rede de organizações políticas e sindicais de classe e aprendia a manejar contra a burguesia a arma da greve. Nas planícies do Vale do Pó, a formação de imponentes massas de proletariado agrícola abalara o equilíbrio das relações sociais e políticas tradicionais; com o desenvolvimento das grandes empresas agrícolas capitalistas, as ''plebes rurais" da Itália do norte se transformavam num exército de assalariados e uma densa rede de organizações de classe — ligas de trabalhadores braçais, cooperativas, secções do partido socialista — faziam penetrar até às províncias mais atrasadas um novo espírito revolucionário. Combativa, impetuosa, atormentada pela injustiça, aspirando a um mínimo de bem-estar econômico, que há séculos lhe era negado, animada de uma concepção messiânica primitiva do socialismo e da revolução, a massa dos assalariados agrícolas se tornava a protagonista de uma série de greves grandiosas e no curso delas aprendia as virtudes proletárias da disciplina e da solidariedade. O aparelho do Estado se fendia sob esta dupla pressão de grandes massas organizadas.

Gramsci nasceu na Sardenha, região característica de relações econômicas e sociais atrasadas. Filho de camponeses pobres, tinha tido oportunidade de observar a espantosa miséria dos semi-proletários agrícolas e dos pastores da ilha, que a burguesia capitalista italiana, uma vez realizada a unidade nacional, considerou e tratou, a par de todas as regiões agrícolas do Sul quase como uma colônia. A miséria dos camponeses sardos e meridionais foi uma das condições do desenvolvimento industria! do Norte. Os recursos e riquezas naturais da ilha foram saqueados pelos capitalistas do continente, enquanto as esporádicas tentativas de revolta espontânea dos camponeses esfaimados eram liquidadas com as armas, sob o pretexto de luta contra o "banditismo". Para consolidar o seu poder e particularmente para manter em sujeição as massas rurais do Sul e das ilhas, a burguesia capitalista se aliava aos grandes proprietários de terra e à burguesia rural parasitária, crescida à sombra da grande propriedade territorial de tipo feudal, e se propunha a tarefa de manter em vida e defender esses resíduos de relações sociais e políticas atrasadas, que pesavam como uma bola de chumbo sobre a vida econômica e política do todo o país. Esta forma particular de aliança de classe entre a burguesia industrial da Alta Itália e as castas reacionárias meridionais, que são a expressão do resíduos de relações pré-capitalistas, deu uma particular feição reacionária à vida política italiana, mesmo no período em que as classes dirigentes foram constrangidas, sob a pressão das massas, a reconhecer a liberdade de organização dos trabalhadores, a liberdade de trabalho e de greve, mesmo quando elas foram forçadas a conceder, às vésperas da guerra mundial, o sufrágio universal.

Gramsci tinha visto, nas aldeias da Sardenha, os camponeses indo votar com os bolsos cozidos, a fim de impedir que os beleguins à paisana e os agentes dos grão-senhores ali introduzissem facas para, em seguida, poder fazer prender pelos carabineiros centenas de infelizes, e garantir o triunfo do candidato do governo — e a consciência do caráter reacionário da burguesia e do Estado italiano foi a base primeira de todo o seu pensamento político.

"O Estado italiano — escreveu ele — nunca tentou sequer mascarar a impiedosa ditadura das classes proprietárias. Pode-se dizer que o Estatuto albertino serviu para um só fim preciso: para ligar fortemente os destinos da Coroa aos destinos da propriedade privada... A Constituição não criou nenhum instituto que patrocine, ao menos formalmente, as grandes liberdades dos cidadãos: a liberdade individual, a liberdade de palavra e de imprensa, a liberdade de associação e de reunião. Nos Estados capitalistas, que se chamam liberais — democráticos, o instituto máximo de defesa das liberdades populares é o poder judiciário: no Estado italiano a justiça não é um poder, é uma ordem, é um instrumento do poder executivo, é um instrumento da Coroa e da classe proprietária... O presidente do Conselho é o homem de confiança da classe proprietária; para a sua escolha colaboram os grandes bancos, os grandes industriais, os grandes proprietários territoriais, o estado maior; ele prepara a sua maioria parlamentar por meio da fraude e da corrupção; o seu poder é ilimitado, não só de fato, como o é indubitavelmente em todos os países capitalistas, mas também de direito; o presidente do Conselho é o único poder do Estado italiano.

A classe dominante italiana não tem tido sequer a hipocrisia de mascarar a sua ditadura; o povo trabalhador tem sido por ela considerado como um povo de raça inferior, que se pode governar sem considerações como uma colônia africana. O país está submetido a um permanente regime de estado de sítio... Os policiais são lançados nas residências e nos locais de reuniões... a liberdade individual e de domicílio é violada; os cidadãos são algemados, confundidos com delinqüentes comuns em cárceres escuros e nauseabundos, a sua integridade física fica desprotegida contra a brutalidade, os seus afazeres são interrompidos e arruinados. Pela simples ordem de um comissário de polícia, um local de reunião é invadido e investigado, uma reunião é dissolvida. Pela simples ordem de um governador, um censor cancela um escrito, cujo conteúdo nada tem a ver, de fato, com as proibições estabelecidas pelos decretos gerais. Pela simples ordem de um governador, os dirigentes de um sindicato são presos, tenta-se dissolver uma associação...".

O movimento socialista surgiu e se desenvolveu na Itália, sobretudo nos primeiros tempos, como um protesto vigoroso contra este regime de reação e de arbítrio, de privação das massas trabalhadoras de qualquer direito. Por isso, teve um caráter largamente popular e a ele afluíram em massa os intelectuais de origem pequeno-burguesa e até os elementos radicais da burguesia, que sofriam com o atraso da vida econômica e política do país e se insurgiam contra ela. A tarefa dos chefes socialistas deveria ter consistido em dar à classe operária a direção deste amplo movimento popular, em guiar a classe operária, através de uma luta conseqüente, contra a reação e pelas liberdades democráticas, a fim de afirmar a própria hegemonia política e dirigir todas as massas oprimidas e exploradas para expulsar do poder a burguesia capitalista e as castas reacionárias a ela aliadas. Os chefes socialistas faliram nesta tarefa; faliram mesmo os melhores, os que eram mais ligados às massas de quem sentiam os sofrimentos e as aspirações, e que mais odiavam a burguesia. Não havendo compreendido a substância das doutrinas marxistas, não conseguiram jamais ir além de um revolucionarismo sentimental, e de uma "intransigência" verbal'; ao passo que os chefes do tipo de Turati, afastados do marxismo para acabar no pântano do revisionismo e da democracia pequeno-burguesa, buscavam atrelar o movimento proletário ao carro do Estado capitalista, favoreciam o plano dos homens de Estado liberais, que consistia em corromper uma parte dos quadros do movimento socialista para esmagar com a sua ajuda o impulso revolucionário das massas operárias e camponesas, tornavam-se no seio das organizações proletárias o veículo e os agentes diretos da influência burguesa. Karl Marx — segundo a expressão de Giolitti — era "jogado no sótão". A juventude estudantil, desiludida, se separava do socialismo, de quem os filósofos burgueses pomposamente proclamavam a falência, e começava a passar ao campo das primeiras organizações reacionárias nacionalistas e semi-fascistas, criadas já antes da guerra, pelos grupos mais reacionários da grande burguesia para ter um apoio à sua política de expansão imperialista, de banditismo e de rapina.

Em polêmica com os Turati, os Treves e os outros santarrões do socialismo reformista, Gramsci teve ocasião muitas vezes de exprimir a sua indignação pela obra de corrupção ideológica executada por estes chefes.

"O niilismo oportunista e reformista, — descrevia ele — que dominou o Partido Socialista italiano por dezenas e dezenas de anos e hoje escarnece com o ceticismo e o sarcasmo da senilidade os esforços da nova geração e o tumulto de paixões suscitado pela Revolução bolchevique, deveria fazer um pequeno exame de consciência sobre as suas responsabilidades e a sua incapacidade para estudar, para compreender, para desenvolver uma ação educativa. Nós, jovens, devemos renegar estes homens do passado, devemos desprezar estes homens do passado; que ligação existe entre nós e eles? Que criaram, que nos entregaram para transmitir? Que recordação de amor e gratidão por haver-nos aberto e iluminado o caminho da pesquisa e do estudo, por haver criado as condições de um nosso progresso, de um nosso salto para frente? Tudo tivemos de criar por nós mesmos, com as nossas forças e com a nossa paciência: — a geração italiana atual é filha de si própria; não tem o direito de escarnecer dos seus erros e dos seus esforços quem não trabalhou, quem não produziu, quem não pode deixar nenhuma outra herança que não seja uma medíocre coletânea de medíocre artiguetes de jornal diário".

A necessária obra de restauração do marxismo no nosso país, Gramsci pôde iniciá-la e executá-la, antes de tudo, graças á ligação estreita, indissolúvel que. se estabeleceu entre ele e a classe operária, quando veio da Sardenha para Turim, em 1911. Em Turim, o jovem subversivo sardo freqüentou a escola de um proletariado jovem, inteligente, fortemente concentrado, revolucionário, que, já antes da guerra, no curso das grandes greves metalúrgicas, tinha dado provas maravilhosas de organização, de combatividade e de disciplina e já então aparecia a todo o país como a parte mais avançada e consciente da classe operária.

"Até a revolução burguesa, que criou na Itália a atual ordem burguesa, Turim era a capital de um pequeno Estado, que compreendia o Piemonte, a Liguria, a Sardenha. Naquele tempo reinavam em Turim a pequena indústria, a produção doméstica e o comércio. Quando a Itália se tornou um reino unido com Roma como capital, Turim pareceu em perigo de perder a importância que tinha antes. Mas a cidade superou rapidamente a crise econômica, a sua população dobrou e ela se tornou uma das maiores cidades industriais da Itália. Pode-se dizer que a Itália tem três capitais: Roma, centro administrativo do Estado burguês; Milão, nervo central da vida comercial e financeira do país (todos os bancos, escritórios e institutos financeiros estão concentrados em Milão) e, finalmente, Turim, centro da indústria, onde a produção industrial encontrou o mais alto desenvolvimento. Com a transferência da capital para Roma, toda a média e pequena burguesia intelectual, que dava uma feição determinada à exterioridade do novo Estado burguês, abandonou Turim. Mas o desenvolvimento da grande indústria atraiu a Turim a elite da classe operária italiana. O processo de formação desta cidade é, pois, extremamente interessante para a história da Itália e da revolução proletária italiana, o proletariado de Turim se torna deste modo o chefe da vida espiritual das massas operárias italianas, que estão ligadas à cidade com todos os laços possíveis: origem, família, tradição, história e também com laços espirituais (todo operário italiano deseja ardentemente ir trabalhar em Turim)" (1).

O vínculo de Antônio Gramsci com os operários de Turim não foi somente um vínculo político, mas um vínculo pessoal, físico, direto e multiforme. Tendo-se colocado na ala esquerda do movimento socialista, poucos meses após a deflagração da guerra, em 1915, chamado a dirigir o jornal da secção socialista de Turim, Gramsci logo ocupou no movimento revolucionário turinês um lugar à parte. Para os reformistas, nas mãos dos quais se encontrava, também em Turim, uma grande parte dos postos de direção das organizações proletárias, a massa operária era somente um ponto de apoio para a política de colaboração com a burguesia, que eles conduziam também durante a guerra. Os revolucionários, que em Turim eram a maioria na secção do partido, é verdade que lutavam contra os reformistas, tinham tomado uma justa posição sobre o problema dos comitês de mobilização industrial, recusando-lhes a adesão das organizações operárias, mas não conseguiam fazer uma política diferente daquela da direção do partido. A política da direção do partido era uma política centrista; ela se resumia na famigerada formula: "Não aderir á guerra e não sabotá-la", formula que, diante das massas, salvava as aparências, enquanto consentia aos reformistas todas as sujeiras colaboracionistas e social-patrióticas de que eram capazes. Nesta situação, Gramsci se esforçava, antes de tudo, em aprender com as massas. No contacto com as massas procurava os elementos para a solução dos problemas sociais e políticos que a guerra e o após-guerra deviam colocar diante do povo italiano.

No operário da grande e concentrada indústria moderna, via ele a força capaz de resolver todos os problemas da sociedade italiana — "o protagonista da história da Itália moderna". Deste modo, repelia todas as posições reacionárias dos democratas burgueses que partindo da constatação "da estrutura particular da Itália como país de camponeses" e baseando-se sobre a situação reservada no Estado italiano às massas camponesas meridionais e das ilhas, contrapunham estas massas camponesas à classe operária, faziam do "problema do Sul" um problema separado do problema geral da revolução proletária e socialista e fomentando o ciúme e a suspeita dos camponeses contra os operários e contra as suas organizações, e criando uma cisão entre o proletariado e a massa camponesa, prestavam à burguesia reacionária o melhor dos serviços. Mas de que modo conseguirá a classe operária exercer a sua função histórica? Em torno a este problema, a mente de Gramsci trabalha já antes da guerra e durante a guerra. Ele compreende que da guerra resultará o esfacelamento da sociedade italiana, porque as grandes massas trabalhadoras, despertando e entrando impetuosamente na vida política, exigirão imperiosamente a satisfação das suas necessidades e o aparelho tradicional de governo da burguesia não resistirá a este embate. O proletariado deve conseguir criar um novo aparelho de governo da sociedade e este aparelho não pode ser fornecido nem pelos sindicatos nem pelas outras organizações operárias já existentes. É necessária uma organização nova, na qual se encarne a vontade e a capacidade do proletariado de tomar o poder, de organizar um novo Estado, uma nova sociedade.

É nesta ordem de ideais que a atenção de Gramsci se dirige para a fábrica, para as formas que a luta de classe assume no local de trabalho e para as novas organizações, que já durante a guerra os operários criam nas fábricas e que se distinguem dos sindicatos porque têm a capacidade de conduzir uma luta mais vasta do que a simples reivindicação de salário. É então que ele multiplica os seus contactos diretos com os operários, com os quais fala, discute por dias e noites inteiras, fazendo com que lhe narrem mesmo os menores episódios da vida de fábrica, animado pela vontade de descobrir as formas novas nas quais se manifesta, sobre o próprio local de trabalho, no momento em que amadurece a mais grave crise que a Itália tenha atravessado, o impulso dos operários para uma luta pelo poder. É então que ele começa a se tomar o mais popular e o mais amado dos chefes socialistas de Turim. Dele se aproximam os jovens. Aproximam-se os operários mais inteligentes e ativos não só entre os socialistas, mas entre os anarquistas, entre os católicos. O quarto onde trabalha, na sede das organizações operárias urbanas, o sótão onde reside começam a se transformar na meta de uma peregrinação ininterrupta. Fala-se dele nas fábricas como de um chefe novo. E na realidade, no movimento operário italiano, tinha aparecido, naquele momento, um chefe novo, — o chefe que sabe aprender com as massas, que elabora, em contacto direto com as massas, a política revolucionária da classe operária.

O estímulo decisivo à formação do seu pensamento e ao desenvolvimento da sua ação revolucionária veio a Gramsci, neste momento, da revolução russa, do exemplo do bolchevismo e de Lênin.

O Movimento dos Conselhos de Fábrica

EM DIREÇÃO à revolução russa, ao bolchevismo e a Lênin se orientaram rapidamente, por um impulso espontâneo de intuição proletária e revolucionária, as massas proletárias de Turim e todos os elementos revolucionários da classe operária italiana.

"A notícia da revolução russa de março foi acolhida em Turim — escreveu Gramsci — com indescritível alegria. Os operários choravam de emoção quando se inteiraram que o regime do tzar tinha sido abatido pela força dos operários de Petrogrado. Eles não se deixaram, porém, cegar pela fraseologia demagógica de Kerenski e dos mencheviques. Quando, em julho de 1917, a missão militar enviada à Europa ocidental pelo Soviet de Petrogrado chegou a Turim, os seus membros, Smirnov e Goldemberg, que falaram a uma multidão de 25.000 pessoas, foram acolhidos pelos gritos ensurdecedores de "viva o companheiro Lênin! Vivam os bolcheviques!"

"Goldemberg não ficou particularmente edificado por esta saudação: ele não chegava a compreender de que modo o companheiro Lênin tinha conquistado uma tal popularidade entre os operários de Turim. Nem se deve esquecer que esta manifestação teve lugar depois que tinha sido sufocada a insurreição de julho em Petrogrado, ao tempo em que os jornais burgueses transbordavam de artigos cheios de ataques furibundos contra Lênin e contra os bolcheviques, os quais eram qualificados como bandidos, intrigantes, agentes e espiões do imperialismo germânico.

Desde o início da guerra italiana, a 24 de maio de 1915, até os dias da manifestação de que estamos nos ocupando, o proletariado de Turim não havia realizado nenhuma reunião de massa, A grandiosa manifestação organizada em honra do Soviet dos deputados operários de Petrogrado abriu um novo período do movimento de massa. Passara-se apenas um mês que os operários de Turim haviam se levantado, com armas na mão, contra o imperialismo e o militarismo italiano. A insurreição teve início em 23 de agosto de 1917. Durante cinco dias os operários combateram nas ruas e nas praças da cidade. Os insurretos, armados de fuzis, granadas e metralhadoras, conseguiram ocupar alguns setores da cidade. Três a quatro vezes tentaram apoderar-se do centro da cidade, onde tinham sede os edifícios públicos e o comando militar, mas dois anos de guerra e de reação haviam destruído a organização do proletariado que anteriormente era bastante forte. Os operários, cujo armamento era dez vezes pior do que o do seu adversário, foram vencidos. Em vão haviam esperado o apoio dos soldados: estes se deixaram enganar pela insinuação de que a revolta era provocada pelos alemães.

A multidão levantou grandes barricadas, escavou trincheiras, circundou os quarteirões que ocupava com cerca de arame farpado percorrida por corrente elétrica e respondeu, durante cinco dias e noites, a todos os ataques das tropas e da polícia. Mais de 500 operários tombaram na luta; mais de dois mil foram feridos gravemente. Após a derrota, os melhores elementos da classe operária foram presos e caçados em Turim. Ao fim da refrega, a intensidade revolucionária do movimento diminuirá, mas as massas permaneciam, como anteriormente, orientadas no sentido do comunismo".

Logo após a insurreição de agosto, Gramsci foi eleito secretário da secção de Turim do Partido Socialista. Era o primeiro reconhecimento público da sua qualidade de dirigente máximo do proletariado da cidade mais vermelha da Itália. Era o reconhecimento do papel que desempenhara ao preparar os operários de Turim para compreender a revolução russa, para compreender e amar os seus chefes, Lênin e Stálin.

A partir da época das conferências de Zimmerwald e de Kienthal, uma das maiores preocupações de Gramsci era a de lograr conhecer e estabelecer contacto com as correntes revolucionárias do movimento operário internacional e, em primeiro lugar, com o bolchevismo. Não era fácil resolver esse problema, na Europa do período da guerra, quando as fronteiras se tornavam barreiras quase intransponíveis. Acumulavam-se sobre a mesa de Gramsci as publicações subversivas e ilegais procedentes de todas as partes do mundo e redigidas em todas as línguas do mundo. As obras de Lênin e os documentos do Partido Bolchevique eram procurados e esperados com ansiedade, traduzidos, lidos e discutidos coletivamente, explicados, e se organizava a sua circulação nas fábricas. Gramsci era a alma desse trabalho. Dos escritos de Lênin vinha uma palavra nova, a palavra que os operários da Itália esperavam e que devia guiá-los na sua luta grandiosa do após-guerra. A doutrina marxista, livre da escória sob a qual os oportunistas haviam enterrado a sua substância revolucionária, ressurgia na sua verdadeira luz, como doutrina da revolução proletária e da ditadura do proletariado. Os novos desenvolvimentos que o marxismo assumia nas obras e na ação de Lênin, e a experiência do bolchevismo e da revolução russa abriam uma perspectiva concreta de solução dos problemas que, no fim da guerra, se apresentavam perante os operários italianos.

Gramsci foi o primeiro a compreender, na Itália, o valor internacional dos ensinamentos de Lênin, o valor internacional do bolchevismo e da grande Revolução Socialista de Outubro.

A revolução russa — escrevia em 1919, — revelou uma aristocracia de estadistas que nenhuma outra nação possui. São um par de milhares de homens que durante toda a sua vida se dedicaram ao estudo experimental da ciência política e econômica, que durante dezenas de anos de exílio analisaram e estudaram profundamente todos os problemas da revolução, que na luta e no duelo sem par contra a potência do tsarismo forjaram um caráter de aço, que, vivendo em contacto com todas as formas da civilização capitalista da Europa, da Ásia e da América, adquiriram uma consciência de responsabilidade exata e precisa, fria e cortante como a espada dos conquistadores do império.

"Os comunistas russos constituem uma categoria dirigente de primeira ordem, Lênin se revelou o maior estadista da Europa contemporânea: um homem cercado de um prestígio que inflama e disciplina os povos; um homem que consegue dominar todas as energias sociais do mundo que possam ser despertadas em benefício da revolução; que domina e vence os mais refinados e astuciosos estadistas da burguesia...

"A revolução é real... quando se encarna em um tipo de Estado, quando se transforma em um sistema organizado de poder... A revolução proletária é real quando dá vida a um Estado tipicamente proletário, quando desenvolve as suas funções essenciais como emanação da vida e do poder proletário.

"Os bolcheviques deram forma estatal à experiência histórica e social do proletariado russo, que são a experiência da classe operária internacional. .. O Estado dos Soviets se tornou o Estado de todo o povo russo e esse resultado foi alcançado pela tenaz perseverança do Partido Comunista, a fé e a lealdade entusiastas dos operários, a assídua e incessante obra de propaganda, de esclarecimento e de educação realizada pelos homens do comunismo russo, dirigidos pela vontade férrea e retilínea do
mestre de todos: Lênin. O Soviet se revoou imortal como forma de sociedade organizada que satisfaz as multiformes necessidades da grande massa do povo russo, que encarna e satisfaz às aspirações e às esperanças de todos os oprimidos do mundo... O Estado dos Soviets demonstra ser o primeiro núcleo de uma sociedade nova... A história está portanto na Rússia, a vida está portanto na Rússia; somente no regime dos Conselhos encontram a sua adequada solução todos os problemas de vida e do morte que afligem o mundo".

Esclarecido pela experiência da revolução russa, Antônio Gramsci foi o primeiro a restaurar no movimento socialista italiano e a popularizar entre as massas o conceito de ditadura do proletariado, como elemento essencial do marxismo.

Na primeira edição em língua italiana das obras de Karl Marx até as palavras "ditadura do proletariado" desapareciam. Na Critica do Programa de Gotha, o tradutor reformista se deu ao cuidado de substituir estas palavras pela expressão inócua de "luta de classe do proletariado"! Antônio Labriola, profundo conhecedor e vulgarizador do pensamento de Marx, falara da ditadura do proletariado como de "governo educativo da sociedade" após a conquista do poder pela classe operária. Mas Antônio Labriola não estava em condições de compreender e explicar que coisa significava concretamente esta expressão, tanto em sentido geral quanto concretamente em relação à sociedade italiana e para os operários italianos. A expressão "ditadura do proletariado" é para ele uma expressão confusa de filosofia política. Mais tarde, os "teóricos" do sindicalismo chamavam "ditadura proletária" à violência que empregavam contra as sedes dos sindicatos reformistas, para constranger as organizações sindicais a fazer repetidas greves, sem preparação e sem perspectivas de êxito. Após a vitória da Revolução de Outubro, o Partido Socialista inscreveu a ditadura do proletariado no seu programa; mas no seio do Partido, enquanto Turati proclamava que os Soviets estavam para a república parlamentar como a horda está para à civilização, os elementos que se diziam revolucionários eram capazes de compreender em que consistia a tarefa de lutar, de modo concreto, pela instauração da ditadura do proletariado.

"A fórmula "ditadura do proletariado" — escrevia Gramsci, ao tomar posição tanto contra os oportunistas a Turati quanto contra o revolucionarismo verbal dos centristas à Serrati e dos macacos palradores a Bombacci, — deve deixar de ser apenas uma fórmula e uma oportunidade para se exibir fraseologia revolucionária. Quem quer o fim, deve também querer os meios. A ditadura do proletariado é a instauração de um novo Estado, do Estado proletário... Esse Estado não se improvisa: os comunistas bolcheviques russos por oito meses trabalharam para difundir a palavra de ordem: Todo o Poder aos Soviets, e os Soviets eram conhecidos pelos operários russos desde 1905. Os comunistas italianos devem aproveitar a experiência russa e economizar tempo e trabalho".

Fortalecido pelos estudos que anteriormente fizera sobre as formas de organização da classe operária e da luta de classe na fábrica, ligava de modo direto o problema da luta pela ditadura do proletariado ao problema da criação de uma organização operária de novo tipo, na qual se encarnasse a luta dos operários pelo poder e que pudesse se tornar a base do Estado proletário.

"Existe na Itália, — perguntava ele, — como instituição da classe operária, qualquer coisa que possa ser comparada ao Soviet, que participe de sua natureza? qualquer coisa que nos autorize a afirmar: o Soviet é uma forma universal, não é uma instituição russa, somente russa; o Soviet é a forma pela qual, em toda a parte onde existem proletários em luta para conquistar a sua independência, a classe operária manifesta a sua vontade de emancipar-se; o Soviet é a forma de auto-governo das massas operárias? Existe um germe, uma verdade, um começo tímido de governo dos Soviete na Itália, em Turim?".


E respondia:

"Sim, existe na Itália, em Turim, um germe de governo operário, um germe de Soviets, é a Comissão interna de fábrica".

A Comissão interna de fábrica surgiu durante a guerra por iniciativa dos sindicatos, para a defesa dos operários perante os empregadores. Em breve separada do controle direto dos sindicatos, vinha se desenvolvendo como organismo autônomo, eleito por todos os dirigentes e representando toda a massa operária perante o patrão. Tal transformação era acelerada pelas condições gerais perante as quais a crise de após-guerra colocava a classe operária, estimulando-lhe a consciência da necessidade da luta pelo poder. Das comissões internas surgia em Turim o movimento dos Conselhos de fábrica, movimento de tipo soviético que ameaçava a sociedade burguesa e o poder da burguesia em sua base, no próprio local da produção.

Gramsci foi o chefe do movimento dos Conselhos de fábrica. O jornal por ele fundado em 1.º de maio de 1919, A Nova Ordem (L'Ordine Nuovo), foi o órgão deste movimento.

Poucos «dos velhos dirigentes socialistas compreenderam o movimento dos Conselhos de fábrica. Acusou-se Gramsci, porque se esforçava por concentrar a atenção dos operários não mais sobre as intrigas parlamentares, mas sobre os problemas da produção e da fábrica, de ser um sindicalista. Toda a argumentação de Gramsci era, ao contrário, dirigida contra o sindicalismo, e tinha por objetivo demonstrar que os sindicatos profissionais não são órgãos de que a classe operária possa se servir para organizar a luta pelo poder e construir o próprio Estado. Ele foi acusado de tentar escamotear, ao fazer dos Conselhos de fábrica o eixo da luta pelo poder, o problema do Partido e de sua função dirigente. Na realidade, Gramsci compreendia muito bem, desde 1917, que o Partido Socialista Italiano, em que predominavam os reformistas, os centristas e os demagogos impotentes, não estava em condições de dirigir a luta do proletariado italiano pelo poder. Compreendia igualmente que, na situação italiana do após-guerra, a luta pelo poder não podia ser adiada, se não «e queria abrir o caminho à terrível reação da burguesia.

"A fase atual da luta de classes na Itália — escrevia ele — é a fase que precede: ou a conquista do poder político pelo proletariado revolucionário para a passagem a novos modos de produção e de distribuição que permitam um aumento da produtividade — ou uma tremenda reação por parte da classe proprietária e da casta dirigente. Nenhuma violência será desprezada para se sujeitar o proletariado industria! e agrícola a um trabalho servi]".

Era necessário agir depressa. O problema do "tempo" era para ele um problema essencial. E para agir depressa tornava-se indispensável não "adiar" a luta pelo poder a uma fase posterior, e ao mesmo tempo providenciar a organização de um novo partido revolucionário: mas cumpria resolver simultaneamente o problema do Partido, isto é, da direção de todo o movimento pela vanguarda do proletariado, e o problema da organização das mais vastas massas operárias e trabalhadoras de forma adequada à luta pela tomada do poder. A energia revolucionária que se apoderava das massas durante a crise de após-guerra era tal que teria podido permitir resolver ao mesmo tempo estes dois problemas. O próprio Gramsci reconhece, em seguida, que a algumas das formulações por ele dadas ao seu pensamento em 3919 e 1920 falta precisão, mas a sua substância é que a criação, em primeiro lugar, ou o desenvolvimento dos Conselhos ^de fábrica deve vir associada à criação e ao desenvolvimento de uma rede de organizações políticas, isto é, do "grupos comunistas" capazes de a um só tempo dirigir o movimento dos Conselhos e de renovar radicalmente o Partido Socialista, revolucionando a sua estrutura o os seus métodos de ação, a sua atividade quotidiana e a sua agitação política. O desenvolvimento dos Conselhos de fábrica deveria, de tal modo, trazer ao mesmo tempo vantagens à classe operária no país e vantagem, no Partido, aos elementos proletários e revolucionários sobre os reformistas e sobre os centristas. Infelizmente, isto acontece apenas em Turim.

Em Turim e nos centros onde pôde chegar a influência direta de Gramsci, o movimento dos Conselhos se desenvolveu de modo impetuoso e transbordai!te. Os reformistas foram expulsos da direção dos sindicatos e os centristas da direção do Partido. Foram ultrapassados os limites da luta econômica corporativa e da luta eleitoral. Entre o proletariado e a burguesia desenrolou-se uma luta de vida ou de morte, na qual os operários chegaram quase à insurreição. Em abril de 1920, para esmagar a tentativa dos patrões de estrangular o movimento dos Conselhos, desenvolveu-se, sob a direção imediata de Gramsci, o movimento mais grandioso de todo o após-guerra italiano — uma greve geral política de todo o proletariado da cidade que se prolongou por onze dias, ligado rapidamente a uma greve do operariado agrícola das províncias limítrofes e a movimentos de solidariedade que tomavam uma envergadura cada vez maior e um caráter cada vez mais ameaçador até que intervieram, para estrangular o movimento, de acordo com o governo, os chefes reformistas da Confederação, apoiados pela direção do Partido que se dizia revolucionária.

Os elementos de esquerda do Partido Socialista, a quem Gramsci propusera então um acordo para uma ação comum com o objetivo de desencadear e dirigir um movimento revolucionário em todo o país, passando por cima da direção do Partido, hesitante e sempre pronta a capitular perante os reformistas, repeliram as propostas de Gramsci. A negativa (sob o pretexto de que era necessário esperar o ajuste de contas com os reformistas e com os centristas em um Congresso regular do Partido), também de Bordiga, que manifestava a aparência de ser, na chefia da facção abstencionista, o mais revolucionário de todos, mas que, na realidade, julgava os problemas da revolução com o critério de um pedante, cobria o seu oportunismo com a máscara do doutrinarismo de esquerda.

O movimento dos Conselhos de fábrica permanece, na história do movimento operário italiano, como a tentativa mais audaz feita pela parte mais avançada do proletariado para realizar a própria hegemonia na luta pela derrocada do poder da burguesia e a instauração da ditadura do proletariado. A questão das forças motrizes da revolução italiana e a questão camponesa, como corolário do problema da ditadura do proletariado, eram, mais do que nunca, impostas e resolvidas corretamente pelo proletariado turinense, diretamente dirigido por Gramsci.

"A burguesia setentrional tem oprimido a Itália meridional e as ilhas — escrevia L'Ordine Nuovo no início de 1920 — reduzindo-a à colônia de exploração; o proletariado setentrional, emancipando-se ele próprio da escravidão capitalista, emancipará as massas camponesas meridionais submetidas ao jugo do industrialismo parasitário do Norte. A regeneração econômico-política dos camponeses não deve ser encontrada na divisão simples de terras não cultivadas ou mal cultivadas, mas na solidariedade do proletariado industrial, que tem necessidade, por sua vez, da solidariedade dos camponeses e o interesse de que o capitalismo não ressurja economicamente da propriedade de terras e que a Itália meridional e as ilhas não se tornem uma base militar da contra-revolução capitalista. Destruindo a autocracia nas fábricas, destruindo o aparelho opressivo do Estado capitalista, instaurando o Estado operário, os operários destruirão toda a cadeia que mantém preso o camponês à sua miséria e ao seu desespero; instaurando a ditadura operária, tendo nas mãos as indústrias e os bancos, o proletariado utilizará a enorme potência das organizações estatais para apoiar os camponeses na sua luta contra os proprietários, contra a natureza, contra a miséria; dará o crédito aos camponeses, instituirá cooperativas, garantirá a segurança pessoal e de bens contra os saqueadores, fará as despesas públicas de saneamento e irrigações. Fará tudo isto porque é do seu interesse incrementar a produção agrícola, porque é do seu interesse possuir e conservar a solidariedade das massas camponesas, porque é do seu interesse empregar a produção industrial a um trabalho útil de paz e de fraternidade entre as cidades e o campo, entre o Norte e o Sul".

Neste plano grandioso de reorganização da economia e da sociedade italianas, o operário das grandes indústrias se apresenta fielmente como o protagonista da história do nosso país, e a classe operária como a primeira, e única, a verdadeira classe nacional, a quem incumbe resolver todos os problemas que a burguesia e a revolução burguesa não foram capazes de resolver, e suprimir qualquer forma de exploração, de miséria, de opressão.

Ao ímpeto revolucionário das massas, à clareza do pensamento político do dirigente, unia-se, no movimento de L'Ordine Nuovo e dos Conselhos de fábrica, um singular "Sturm und Drang"[Impulso e despertar] cultural proletário que, saindo do terreno da política pura, enfrentava, discutia e popularizava entre as massas os problemas mais vastos da história de nosso país, da arte, da literatura, da moral proletária, da escola e da técnica. O marxismo-leninismo reconquistava a sua fisionomia de concepção integral da vida e do mundo, e Gramsci era particularmente áspero e feroz na luta contra tudo e contra todos que negassem às massas trabalhadoras a capacidade de compreender e se familiarizar com os problemas mais altos da ciência e da cultura. Máximo Gorki e Romain Rolland. Barbuse e Leonardo da Vinci, tinham o seu lugar na revista dos Conselhos de fábrica, ao lado dos técnicos que discutiam as questões da organização científica do trabalho e ao lado dos mais simples operários. Quando foi decidida a ocupação das fábricas, os operários de Turim, educados e aconselhados diretamente por Gramsci. estiveram à altura de fazer funcionar por um mês, sem patrões, e sem diretores de fábrica, um dos mais complicados aparelhos de produção. A classe operária conquistava, através do movimento dos Conselhos, um prestígio tal que a tornava centro de atração da intelectualidade progressista, da juventude estudiosa, da massa de técnicos das fábricas, dos empregados. A unidade de todas as forças da liberdade e do progresso a quem incumbe o trabalho de libertação política e social do povo italiano, encontrava a sua primeira realização concreta.

A Criação do Partido Comunista

No Congresso da Internacional Comunista, quando se discutiu a questão italiana, Lênin declarou que entre os grupos existentes no Partido Socialista, aquele cujas posições fundamentais coincidiam com as posições da Internacional, era o grupo de L'Ordine Nuovo; nas teses do Congresso, a plataforma política escrita por Gramsci, aprovada pela secção socialista de Turim e intitulada "Por Uma Renovação do Partido Socialista" aparece como um documento básico para o próximo Congresso do Partido. Todos os problemas inerentes à criação na Itália de um Partido Comunista são indicados naquela plataforma de um modo concreto, enérgico, que não deixa margem a nenhuma dúvida. Mas o movimento do L'Ordine Nuovo não estava representado no Congresso de Moscou e só este fato indica que existiam defeitos no modo como se conduzia a luta pela criação do Partido. Pode parecer à primeira vista que se tratasse de timidez, de modéstia excessiva, transformando-se, como todo excesso, num erro, e em parte corresponde à verdade. A seriedade intelectual, a repugnância por toda sorte de demagogia e de reclame, uniam-se em Gramsci efetivamente a uma grande modéstia pessoal, que lhe impediu de impor-se desde logo, como deveria, na qualidade de dirigente. Mas o erro mais grave consistia no fato de que L'Ordine Nuovo não encarava abertamente o problema de criar uma facção do Partido Socialista em escala nacional. Grande movimento de massa em Turim, as suas posições em relação ao país se limitavam a contatos pessoais não organizados. Daí uma certa esterilidade em sua ação em confronto com a das outras frações do Partido. Os reformistas tinham nas mãos o aparelho central da Confederação do Trabalho e das Federações e cooperativas, grande parte dos municípios e dos grupos parlamentares; os centristas, sob a direção de Serrati, tinham o aparelho do Partido e o jornal quotidiano, os abstencionistas haviam criado uma rede de grupos e facções que se estendia a quase toda a Itália e possuíam ainda forte apoio na direção da Federação Juvenil. Gramsci teve à sua disposição um jornal quotidiano somente poucos meses antes da cisão e quando se criou uma facçãocomunista unificada para preparar o Congresso de Livorno, esta facçãose baseou essencialmente sobre a preexistente organização dos abstencionistas. Segundo a diretiva dada por Lênin, era necessário na Itália concentrar o fogo contra os centristas, os quais, enquanto se embriagavam de frases "revolucionárias", tomavam sob a sua proteção os reformistas e paralisavam o movimento das massas, colocando o Partido, de fato, a serviço de uma política de colaboração com a burguesia. A cisão do Partido, de que saiu o Partido Comunista em Livorno, no ano de 1921, foi o resultado de uma luta particularmente aguda contra os centristas. Esta luta exigia a unidade de todos os grupos de esquerda e Gramsci contribuiu poderosamente para criar essa unidade. Lênin, porém, já no segundo Congresso, tinha voltado a sua crítica também contra o extremismo doutrinário de Bordiga, que ameaçava fazer do novo Partido uma seita isolada das massas. Todos aqueles que conheciam o pensamento de Gramsci sabiam que existia um desacordo profundo entre ele e Bordiga. Já em 1917, no convênio de Firenze dos grupos socialistas de esquerda, esse desacordo se acentuou. O convênio tivera lugar logo depois da derrota de Caporetto e ali Gramsci havia falado da necessidade de transformar o desbaratamento socialista numa luta pelo poder, mas ninguém o compreendeu, inclusive Bordiga. Do movimento dos Conselhos, Bordiga não havia percebido nada e, embora aderindo à Terceira Internacional, sua intenção, provavelmente já em 1920, era a de criar no seio da Internacional uma facçãoda extrema esquerda, ao lado dos extremistas holandeses, alemães, etc, afim de conduzir uma luta contra Lênin e contra o Partido Bolchevique. Gramsci, por temor de se confundir com os elementos da direita, comete o erro de, marchando ao lado de Bordiga contra os reformistas e os centristas, evitar se diferenciar publicamente dele sobre o problema da estratégia e da tática, o que era absolutamente necessário. Ele não soube conduzir, naquele momento e nos primeiros tempos da vida do Partido Comunista, uma luta em duas frentes. Este erro custou ao nosso Partido um tempo precioso e permitiu a Bordiga, aproveitando-se do cansaço, da profunda desilusão e do pessimismo que se haviam apoderado de uma parte da vanguarda do proletariado, depois do fim da ocupação das fábricas devido à traição dos reformistas, impor ao Partido Comunista uma política sectária, anti-leninista, que reduziu a sua capacidade de ação política e tornou mais fácil o avanço do fascismo.

A permanência de um ano na União Soviética, no ano de 1922-1923, permitiu a Gramsci aperfeiçoar os seus conhecimentos do bolchevismo. Então ele estudou a fundo a história do Partido Bolchevique e da Revolução Russa, aprendeu a conhecer Lênin e Stálin, a escola de Lênin e Stálin, a escola do Partido Bolchevique e da Internacional Comunista, temperando-se como chefe do Partido. E a ele a classe operária italiana deve a criação do seu Partido, do Partido Comunista não como uma seita de doutrinários pretensiosos, mas como uma parte, a vanguarda da classe operária, como um Partido de massa, ligado a toda a classe, capaz de sentir e interpretar as necessidades, capaz de dirigi-la nas situações políticas mais complicadas. E Gramsci nos fez dar, nesse caminho, os primeiros passos decisivos.

Não foi fácil a Gramsci a luta para eliminar das fileiras do nosso Partido aquela forma especial de oportunismo que Bordiga encobria com a sua fraseologia pseudo-radical. Foi preciso começar por um trabalho paciente de reeducação individual dos companheiros que haviam caído no sectarismo, formar novos quadros bolcheviques, persuadir, vencer as resistências, as hesitações, as desconfianças. Bordiga havia transformado o centro do Partido numa espécie de posto avançado e os quadros do Partido em simples e passivos executores de ordens, havia afastado de modo sistemático os melhores elementos proletários, rodeando-se de elementos pequeno-burgueses, céticos, não ligados à classe operária. Não desprezando os métodos da camorra napolitana, ele procurava isolar Gramsci no Partido, apresentando-o como um intelectual incapaz de ação e privado da qualidade de combatente, pondo em ridículo os seus escrúpulos de honesto e paciente educador de quadros proletários bolcheviques. A realidade fez justiça a estas calúnias. Bordiga vive hoje tranqüilo na Itália como um canalha trotsquista, protegido pela polícia e pelos fascistas, odiado pelos operários como deve ser odiado um traidor. No princípio da guerra contra a Abissínia, a imprensa italiana comunicava que ele havia participado de uma festa religiosa, fora abençoado por um sacerdote ao lado dos soldados que partiam para a Abissínia, e a saída da igreja passou sob um arco de punhais de militantes fascistas que assim lhe rendiam todas as honras. Isto acontecia no momento em que Gramsci prisioneiro de Mussolini, lutava também no cárcere sob a bandeira comunista. Em sua luta para extirpar do Partido o sectarismo oportunista bordighiano, Gramsci desenvolveu, de 1924 a 1926, uma atividade excepcional. Pode-se dizer que os quadros do Partido foram reconquistados por ele um a um, e o Partido, que depois do advento do fascismo tinha caído num estado perigoso de torpor, foi despertado e reeducado através de um trabalho sistemático de bolchevização. São daquele período os escritos de Gramsci, sobretudo dedicados a elucidar as questões teóricas da natureza do Partido, da sua estratégia, da sua tática e da sua organização, nas quais se sente mais forte a profunda influência exercida sobre ele pelos escritos de Stálin. Particularmente ele atacou de maneira mortal a estúpida "teoria" bordighiana segundo a qual todo trabalho de educação ideológica e política dos membros do Partido devia ser considerado como coisa inútil (porque um Partido "centralizado", como o Partido Comunista, a única coisa que conta nele é a obediência das ordens que vêm do alto!) e iniciou um amplo trabalho de formação de quadros.

"Para que o Partido viva e esteja em contato com as massas, — escrevia ele —, é preciso que todo membro do Partido seja um elemento político ativo, seja um dirigente. Por isso mesmo que o Partido é fortemente centralizado, exige-se um vasto trabalho de propaganda e de agitação nas suas fileiras, é necessário que o Partido, de uma maneira organizada, eduque os seus membros e levante o seu nível ideológico. Centralização quer dizer especialmente que, em qualquer situação, mesmo quando os comitês dirigentes não possam funcionar por um determinado período, ou forem postos em condição de não poderem se ligar a toda a periferia, todos os membros do Partido, cada um no seu ambiente, estejam em condições de orientar-se, de saber trazer à realidade os elementos para estabelecer uma diretiva, afim de que a classe operária não se abata e sinta que está sendo guiada para poder continuar a luta. A preparação ideológica das massas é portanto uma necessidade da luta revolucionária, é uma das condições indispensáveis para a vitória".

Os melhores quadros do Partido Comunista da Itália, os heróicos combatentes que o fascismo jogou aos milhares no cárcere, os homens de ferro que não se dobraram diante das ameaças, das perseguições, da tortura e da morte, foram educados no bolchevismo de Antonio Gramsci.

Mas aquilo que não só convenceu todo o Partido e o entusiasmou, dando ao sectarismo doutrinário e ao oportunismo impotente de Bordiga um golpe mortal, foi a ação política que Gramsci desenvolveu, como chefe de Partido, no seu regresso à Itália durante a crise Matteotti. As condições da luta foram muito difíceis porque o Partido, no seu complexo, educado por Bordiga a pensar que a vitória do fascismo fosse coisa impossível e que não havia nenhuma diferença entre o fascismo e a democracia burguesa, tinha se deprimido sob os duros golpes da realidade. Por outro lado, o fascismo atravessava grandes dificuldades, porque não conseguira dispor plenamente do aparelho de Estado, enquanto a massa pequeno-burguesa, desiludida e ferida nos seus interesses pela política de Mussolini a serviço da grande burguesia industrial, estava descontente murmurava, começava a reclamar mais ou menos abertamente contra aquela ordem de coisas. Dada a ausência de uma intensa atividade política do proletariado os diversos grupos da população trabalhadora não encontravam um ponto de referência direto e uma orientação revolucionária para a sua luta, e tanto mais facilmente caiam sob a influência dos partidos democráticos anti-fascistas. A realização da hegemonia do proletariado reclamava não somente uma ação e combatividade dos operários industriais, mas uma ação política que levasse toda a massa trabalhadora a convencer-se, através de sua experiência, que só a classe operária era capaz de conduzir uma luta conseqüente contra o bloco de forças reacionárias que constitui a base da ditadura fascista. A tática inteligente e dinâmica do Partido Comunista depois do assassinato de Matteotti, — tática ditada por Gramsci em todos os seus particulares, — a saída do Parlamento ao lado dos grupos da oposição democrática logo depois do delito, a intervenção das oposições na Assembléia com a proposta de proclamar a greve geral para afastar o fascismo do poder, (proposta recebida com horror pelos chefes democráticos que queriam destruir o fascismo abstendo-se dos trabalhos parlamentares e com uma campanha na imprensa!); as sucessivas propostas de organização de um "ante-parlamento" das oposições e da greve fiscal dos camponeses, enfim, a volta dos comunistas para denunciar da tribuna do parlamento os delitos do fascismo e a demonstrada impotência dos anti-fascistas democráticos e liberais, foi a parte mais importante daquela ação política de Gramsci.

Esta tática, baseada no princípio leninista e stalinista segundo o qual é preciso dirigir as massas através da sua experiência, ao mesmo tempo colocava os comunistas na vanguarda da luta para vingar os delitos do fascismo e destruir a ditadura fascista, facilitava o afastamento de grande número de trabalhadores dos partidos democráticos e da social democracia, lançava as bases da aliança entre o proletariado e os camponeses, fazia sair o Partido do isolamento e o lançava no caminho da transformação em um Partido de massas.

Não somente o Partido, mas a classe operária também era purificada por esta enérgica ação política e se iniciava o novo período em suas atividades, breve mas extremamente interessante porque caracterizado pela influência crescente dos comunistas apesar da luta conduzida contra eles pelos social-democratas e as perseguições fascistas. A origem do prestígio de que goza o nosso Partido entre as massas italianas deve ser procurada naquele período. Instruído na experiência dos anos de 1919 e 1920, quando a exata importância política dos problemas da revolução proletária por parte dos comunistas torinenses não era suficiente para dar uma direção ao movimento revolucionário, Gramsci se preocupava de organizar a influência do Partido não só elaborando palavras de ordem sobre as necessidades das massas, mas desenvolvendo uma ação sistemática junto aos diversos agrupamentos políticos que tinham alguma base entre os trabalhadores, sobretudo no campo, favorecendo o desenvolvimento em seu seio de correntes de oposição que se orientassem para uma aliança com a classe operária.

Destaca-se nesse período o trabalho feito com sucesso para induzir os sindicatos católicos a se aproximarem dos sindicatos confederados e os elementos de esquerda das organizações camponesas católicas a aceitar o principio revolucionário da aliança entre os operários e os camponeses.

A influência reacionária do Vaticano recebeu desse modo, o primeiro golpe sério, É nesse período que o Partido Comunista, por iniciativa de Gramsci, faz própria uma das reivindicações fundamentais das massas camponesas do Sul, reconhecendo justa a luta das populações meridionais por um regime autônomo de governo. O problema do direito de auto-decisão das minorias nacionais oprimidas, o problema sardo, foram colocados e agitados pelo Partido Comunista. Todos os problemas mais sentidos da vida de nosso país encontram na propaganda e na ação política de Gramsci uma resposta, uma solução.

A luta contra o fascismo, deste modo, sai da torrente dos protestos e das manifestações verbais, tornando-se uma luta real para mobilizar, de maneira concreta, contra os grupos mais reacionários da burguesia, todas as parcelas da população trabalhadora, impedindo ao mesmo tempo que elas permaneçam sob a influência dos liberais e dos democratas burgueses, sob a influência dos chefes reacionários da social-democracia. A palavra central da ação de Gramsci torna-se a palavra "unitá": — unidade de toda a classe operária, unidade dos camponeses e dos operários, unidade do Norte e do Sul, unidade de todo o povo. Como em Turim, em 1920, num plano nacional, Gramsci atrai a atenção das massas e de todos os elementos progressistas do país. Os velhos homens políticos liberais murmuram: — "Cuidado com Gramsci, este homem é o único revolucionário que jamais existiu na Itália". E Mussolini responde à ação do Partido Comunista e das massas multiplicando o terror, preparando a liquidação dos últimos resquícios de liberdade democrática e a instauração da ditadura totalitária.

Nos últimos meses antes de sua prisão, mesmo antes do Congresso de Lion, no qual Bordiga foi batido politicamente e a maioria do Partido reunida em torno de Gramsci como um chefe — Gramsci indicava a necessidade de penetrar nas organizações fascistas de massa para que se aproveitasse toda a possibilidade de trabalho e de luta legal com o objetivo de manter os camponeses ligados às massas e organizar a luta dos operários e dos camponeses.

Comete-se então o erro de não apressar adequadamente as suas indicações, o que impediu, depois da passagem para a ilegalidade completa, o desenvolvimento do nosso trabalho e da nossa influência.

Gramsci foi preso quando estava na plenitude da sua atividade política e o Partido sofreu profundamente as conseqüências de sua perda.

O Primeiro Bolchevique Italiano

COM a morte de Gramsci desaparece o primeiro bolchevique do movimento operário italiano. Fisicamente fraco, duramente golpeado pela natureza no seu organismo, ele possuía uma tempera incomparável de combatente. Toda a sua vida estava submetida à sua férrea vontade. Irradiava em torno de si energia, serenidade, otimismo; sabia impor a si mesmo a mais severa disciplina de trabalho, mas era capaz de gozar da vida em todos os seus aspetos. Como homem, era um pagão, um inimigo de toda hipocrisia, impiedoso fustigador de toda impostura, de todo falso sentimentalismo, de toda atitude efeminada. Utilizava de maneira insuperável a arma do riso e do escárnio para por a nu a vaidade no duplo jogo dos que pregavam ao povo a moral no interesse das classes dominantes. Conhecia profundamente a vida do povo italiano e os seus costumes, a legenda e a história que foram criadas pelo povo e nas quais o povo exprimiu de forma ingênua, intuitiva, as suas necessidades, as suas aspirações, os seus sonhos de liberdade e de justiça, o seu ódio contra as classes poderosas. Desse contato íntimo com o povo trazia elementos inexauríveis e sempre novos de polêmica e de luta contra toda a forma de opressão das massas, não somente no campo econômico-político, mas no campo da vida intelectual e moral. Os grandes italianos que têm combatido, — a começar de Giuseppe Boccaccio a Bruno, de Giuseppe Giusti à Garibaldi, — para libertar o povo da cadeia de hipocrisia e do servilismo, que a tradição secular de dominação da Igreja Católica e do estrangeiro lhe haviam imposto, encontravam em Gramsci um herdeiro e um continuador. Era inimigo acérrimo da eloqüência vazia e dos ouropéis do uma parte da literatura e da cultura italiana, que sufocaram nos literatos a frescura da inspiração popular. Conhecia várias línguas estrangeiras, tinha feito um estudo especial da língua russa para poder ler no original Lênin e Stálin; tinha estudado e conhecia a fundo a história do movimento operário nos grandes países capitalistas, era um internacionalista, mas antes de tudo, como deve ser todo internacionalista, era um verdadeiro filho do nosso povo, a serviço do qual utilizava a própria experiência internacional e toda a sua capacidade de combatente.

Educado na escola do marxismo e do leninismo, na seriedade intelectual, ele odiava a irresponsabilidade, a vaidade, a ignorância e a presunção de que via um exemplo clássico no modo como os chefes reformistas e centristas tinham falseado e pervertido a doutrina marxista para colocar a classe operária à reboque da burguesia. Dentro do Partido, ajudando a todos os companheiros a melhorar e prestando atenção a toda crítica, a toda sugestão, ainda do mais simples dos operários, Gramsci era extremamente exigente, principalmente em face dos companheiros que faziam o trabalho organizativo e conspirativo. Queria que os quadros do Partido fossem realmente os melhores combatentes e controlava o seu trabalho em todas as fases.

Impedido do trabalho revolucionário ativo, jogado num cárcere, ele não podia deixar de combater. Ali, por dez anos, a sua existência foi uma luta contínua não somente contra os seus carcereiros odiosos para defender a própria existência, mas para conseguir orientar os companheiros com os quais conseguia qualquer contato, para desenvolver junto a eles uma obra de educação, para contribuir, embora no cárcere, para a formação de quadros do Partido e a solução dos novos problemas que a situação italiana criava.

Ainda quando as suas forças estavam já exauridas e os sanguinários fascistas investiam contra ele para atingir-lhe não somente o corpo mas também o seu espírito, Gramsci nunca perdeu a calma e a dignidade de um revolucionário; foi um exemplo para todos os companheiros. No momento em que eram mais graves as suas condições físicas, foi-lhe comunicado que ele poderia ser posto em liberdade se dirigisse pessoalmente a Mussolini um pedido de clemência. A resposta de Gramsci foi:

" O que me propondes é um suicídio; eu não tenho nenhuma intenção de suicidar-me."

As firmes palavras do chefe moribundo correram de boca em boca nos cárceres, fortalecendo os ânimos, inspirando coragem, a fé, o ódio contra os carcereiros fascistas.

Até quando lhe foi dada a possibilidade de se encontrar com os companheiros, ele dedicava esses encontros ao estudo coletivo e o cárcere se tornava uma escola do Partido, onde os companheiros aprendiam os princípios do leninismo, aprendiam a analisar as forças e as condições da revolução proletária na Itália, temperavam-se na solução dos problemas da política e da organização do Partido.

Quando as barreiras que se erguiam em torno dele tornavam-se sempre mais impenetráveis, foram das comunicações breves, em termos enérgicos e concisos, que Gramsci se aproveitou para orientar os companheiros encarcerados e que deviam servir para orientar todo o Partido. Em 1929 mandou dizer:

"Estejais atentos ao movimento envolvente de expectativa dos sindicatos fascistas nas fábricas, para afastar mais uma vez a nossa atenção da importância do trabalho nas organizações fascistas de massa".

Em 1930, tendo sabido que determinado companheiro encarcerado estava ameaçado de cair sob a influência do trotsquismo, não podendo manter a este respeito longas discussões, lançava nos cárceres a palavra de ordem bastante significativa: — "Trotski é a prostituta do fascismo".

Nos últimos tempos, tendo tomado conhecimento das decisões do Sétimo Congresso da Internacional, todo o seu pensamento foi orientado na procura de uma forma de realização da frente popular anti-fascista na Itália, de estudar a fundo as conseqüências que a política do fascismo tinha provocado sobre os diversos setores da população e nas diversas regiões, afim de poder encontrar e fazer usar a palavra de ordem que permitisse ao Partido ligar-se às massas de todo o país. A sua idéia fundamental era que depois de quinze anos de ditadura fascista, que desorganizou a classe operária, não era possível que a luta de classe contra a burguesia reacionária voltasse a desenvolver-se sobre posições que o proletariado havia reconquistado imediatamente depois da guerra. Indispensável seria um período de lutas pela liberdade democrática e que a classe operária devia estar à frente dessa luta. Certamente, nas últimas semanas de sua vida, chega até ele a notícia da luta heróica do povo espanhol contra o fascismo. Por certo ele sabe que na Espanha, no batalhão que leva o nome de Giuseppe Garibaldi, os melhores filhos do povo italiano — comunistas, socialistas, democratas, anarquistas — unidos nas fileiras do exército popular da República Espanhola, infringiram em Guadalajara a primeira séria derrota ao fascismo italiano e a Mussolini. Se essa notícia chegou realmente até ele, Gramsci deve ter sorrido e a sua agonia foi iluminada pelo raio de uma esperança.

No caminho que ele percorreu, sob a bandeira que ele manteve até o último momento em suas mãos, a bandeira invencível de Marx, Engels, Lênin e Stálin, a vanguarda da classe operária italiana, do Partido Comunista que ele criou e diretamente lançou na luta, iremos para a frente sem hesitação, realizaremos até o último os seus ensinamentos — até a vitória definitiva sobre as forcas da reação e da barbárie, a vitória da causa da liberdade e da paz, da causa da emancipação política e social dos trabalhadores, da causa do Socialismo.


Notas:

(1) Antônio Gramsci, "O movimento comunista de Turim". Informe enviado no verão de 1920 ao Comitê Executivo da Internacional Comunista, publicado no "Estado Operário", ano I, n.° 6, pág. 641 e seguintes. (retornar ao texto)

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Inclusão 03/09/2008
Última alteração 29/04/2014