Aonde Vai a França?

Leão Trotsky


Nestas páginas, queremos explicar aos operários de vanguarda que destino espera a França durante os próximos anos. Para nós, a França não é a Bolsa, nem os bancos, nem os trustes, nem o governo, nem o Estado-Maior, nem a Igreja - todos esses são opressores da França -, mas a classe operária e os camponeses explorados.

O Desmoronamento da Democracia Burguesa

Após a guerra, ocorreram várias revoluções que obtiveram brilhantes vitórias: na Rússia, na Alemanha, na Áustria-Hungria e, mais tarde, na Espanha. Mas foi somente na Rússia que o proletariado tomou o poder em suas mãos plenamente, expropriou seus exploradores e, graças a isso, soube como criar e manter um Estado operário. Em todos os outros casos, o proletariado, apesar da vitória, se deteve na metade do caminho, por causa de sua direção. O resultado foi que o poder escapou de suas mãos e, deslocando-se da esquerda para a direita, terminou sendo o espólio do fascismo. Em outros países, o poder caiu nas mãos de ditaduras militares. Em cada um deles, o Parlamento não se mostrou capaz de conciliar as contradições de classe e de assegurar a marcha pacífica dos acontecimentos. O conflito se resolveu com armas nas mãos.

Naturalmente, na França acalentou-se durante muito tempo a idéia de que o fascismo nada tinha a ver com o país. Porque a França é uma república, onde todas as questões são resolvidas pelo povo soberano, através do sufrágio universal. Porém, em 6 de fevereiro, alguns milhares de fascistas e monarquistas, armados de revólveres, porretes e navalhas, impuseram ao país o governo reacionário de Doumergue, sob a proteção do qual os grupos fascistas continuam crescendo e armando-se. O que nos prepara o amanhã?[1*]

Na França, como em outros países da Europa (Inglaterra, Bélgica, Holanda, Suíça, países escandinavos), ainda existe um Parlamento, eleições, liberdades democráticas ou o que resta disso. Mas, em todos esses países, a luta de classes se exacerba no mesmo sentido em que antes se desenvolveu na Itália e na Alemanha. Quem se consola com a frase "a França não é a Alemanha" é um imbecil sem esperança. Atualmente, em todos os países vigoram as mesmas leis: as da decadência capitalista. Se os meios de produção continuam em mãos de um pequeno número de capitalistas, não há salvação para a sociedade. Ela está condenada a seguir de crise em crise, de miséria em miséria, de mal a pior. De acordo com cada país, as conseqüências da decrepitude e decadência do capitalismo se expressam sob formas diversas e com ritmos desiguais. Porém, o fundo do processo é o mesmo em todos os lados. A burguesia conduziu a sociedade à bancarrota. Não é capaz de assegurar ao povo nem o pão nem a paz. É precisamente por isso que não pode suportar a ordem democrática por muito mais tempo. E compelida a esmagar os operários com a ajuda da violência física. Mas é impossível acabar com o descontentamento de operários e camponeses somente através da polícia. Enviar o exército contra o povo nem sempre é possível: freqüentemente, ele começa a decompor-se e termina com a passagem de grande parte dos soldados para o lado do povo. Por isso, o grande capital é obrigado a criar grupos armados, especialmente treinados para atacar os operários, como certas raças de cachorros são treinadas para atacar a caça. A função histórica do fascismo é esmagar a classe operária, destruir suas organizações, sufocar a liberdade política, quando os capitalistas se sentem incapazes de dirigir e dominar com a ajuda da maquinaria democrática.

O fascismo recruta seu material humano sobretudo no seio da pequena burguesia. Esta termina sendo arruinada pelo grande capital, e não existe saída para ela na presente estrutura social: porém não conhece outra. Seu descontentamento, revolta e desespero são desviados do grande capital, pelos fascistas, e dirigidos contra os operários. Pode-se dizer do fascismo que é uma operação de "deslocamento" dos cérebros da pequena burguesia no interesse de seus piores inimigos. Assim, o grande capital arruína inicialmente as classes médias e, em seguida, com a ajuda de seus agentes mercenários - os demagogos fascistas -, dirige a pequena burguesia submersa no desespero contra o proletariado.

É somente por meio de tais procedimentos que o regime burguês é capaz de manter-se. Até quando? Até que seja derrubado pela revolução proletária.

O Começo do Bonapartismo na França

Na França, o movimento da democracia ao fascismo ainda está em sua primeira etapa. O Parlamento existe, mas já não tem os poderes de outros tempos, e nunca mais os recuperará. Morta de medo, a maioria dos deputados recorreu, depois de 6 de fevereiro, ao poder Doumergue, o salvador, o árbitro. Seu governo se coloca acima do Parlamento. Não se apóia sobre a maioria "democraticamente" eleita, mas direta e imediatamente sobre o aparato burocrático, sobre a polícia e o exército. [2*] Precisamente por isso, Doumergue não pode admitir nenhuma liberdade para os funcionários e, em geral, para os empregados públicos. [3*] Necessita de um aparato burocrático dócil e disciplinado, em cuja cúpula possa manter-se sem perigo de cair. Em seu terror diante dos fascistas e diante da "frente comum", a maioria parlamentar fica obrigada a inclinar-se perante Doumergue. Atualmente se escreve muito sobre a próxima "reforma" da Constituição, sobre o direito de dissolução da Câmara dos Deputados, etc. Todas essas questões não têm senão um interesse jurídico. No plano político, a questão já está resolvida. A reforma foi realizada sem viagem a Versalhes. O surgimento na arena dos grupos fascistas armados deu aos agentes do grande capital a possibilidade de sobrepor-se ao Parlamento. Nisso consiste hoje a essência da Constituição francesa. Todo o resto é apenas ilusão, fraseologia ou engano consciente.

O papel atual de Doumergue - ou de seus eventuais sucessores, como o marechal Pétain ou Tardieu - não constitui um novo fenômeno. É similar ao que cumpriram Napoleão 1º e Napoleão 3º, em outras condições. A essência do bonapartismo consiste nisto: apoiando-se na luta de dois campos, "salva" a "nação" através de uma ditadura burocrática-militar. Napoleão 1º representa o bonapartismo da impetuosa juventude da sociedade burguesa. O bonapartismo de Napoleão 3º é o do momento em que, na cabeça da burguesia, começa a aparecer a calvície. Na pessoa de Doumergue encontramos o bonapartismo senil do declínio capitalista. O g0verno de Doumergue é o primeiro grau na passagem do parlamentarismo ao bonapartismo. Para manter seu equilíbrio, Doumergue necessita de ter a sua direita os fascistas e os outros grupos que o levaram ao poder. Pedir-lhe que dissolva - não no papel, mas na realidade - as juventudes Patrióticas, os Croix de Feu (Cruz de Fogo), os Camelots du Roi (Jornaleiros do Rei), etc., é pedir-lhe que corte o galho no qual se apóia. Naturalmente, oscilações temporárias num e noutro sentido são possíveis. Assim, uma ofensiva prematura do fascismo poderia provocar certo movimento "à esquerda" nas altas esferas governamentais. Doumergue daria lugar por um momento não a Tardieu, mas a Herriot. Porém, em primeiro lugar, em nenhum momento se disse que os fascistas fariam uma tentativa prematura de golpe de Estado. Em segundo lugar, um deslocamento temporário à esquerda, nas altas esferas não mudaria a direção geral do desenvolvimento, e só apressaria o desfecho. Não há caminho de volta até a democracia pacífica. Os acontecimentos conduzem inevitável e irresistivelmente a um conflito entre o proletariado e o fascismo.

O Bonapartismo Vai Durar Muito?

Quanto tempo o atual regime bonapartista de transição pode manter-se? Ou, dito de outra maneira: quando tempo resta ao proletariado para preparar-se para o combate decisivo? Naturalmente, é impossível responder a esta pergunta com exatidão. Entretanto, podem-se estabelecer alguns dados para se apreciar a velocidade do desenvolvimento de todo o processo. O elemento mais importante para a avaliação é o futuro do partido radical.

Por sua origem, o bonapartismo atual está ligado, como dissemos, a um começo de guerra civil entre os campos políticos extremos. Encontra seu principal apoio material na polícia e no exército. No entanto, possui também um apoio à esquerda: o partido radical-socialista. A base de massa deste partido é constituída pela pequena burguesia urbana e rural. A direção do partido é formada pelos agentes "democráticos" da grande burguesia que, de tempos em tempos, deram ao povo pequenas reformas e, mais freqüentemente, frases democráticas; a cada dia o salvaram - em palavras - da reação e do clericalismo, mas em todas as questões importantes fizeram a política do grande capital. Sob a ameaça do fascismo e, ainda mais, sob a do proletariado, os radical-socialistas se viram obrigados a passar do campo da "democracia" parlamentar para o do bonapartismo. Como o camelo sob o chicote do cameleiro, o radicalismo se ajoelhou para permitir à reação capitalista sentar-se entre suas corcovas. Sem o apoio político dos radicais, o governo Doumergue seria impossível neste momento.

Se se compara a evolução política da França com a da Alemanha, o governo Doumergue e seus possíveis sucessores correspondem aos governos Brüning, von Papen, von Schleicher, que preencheram o intervalo entre a República de Weimar e Hitler. No entanto, há uma diferença que, politicamente, pode ter enorme importância. O bonapartismo alemão entrou em cena quando os partidos democráticos se uniram, enquanto os nazistas cresciam com força prodigiosa. Os três governos "bonapartistas" da Alemanha, devido à fraqueza de suas bases políticas, equilibravam-se numa corda estendida sobre o abismo, entre dois campos hostis: o proletariado e o fascismo. Esses três governos caíram rapidamente. O campo do proletariado estava então dividido, não estava preparado para a luta, desorientado e traído por seus chefes. Os nazistas puderam tomar o poder quase sem luta.

O fascismo francês, entretanto, ainda não representa, hoje, uma força de massa. Em contrapartida, o bonapartismo tem um apoio, é verdade que nem muito seguro nem muito estável, porém de massa, na pessoa dos radicais. Entre esses dois fatos existe um nexo interno. Pelo caráter social de sua base, o radicalismo é um partido da pequena burguesia. Ora, o fascismo não pode converter-se em uma força de massa senão conquistando a pequena burguesia. Em outras palavras: na França, o fascismo pode desenvolver-se principalmente a expensas dos radicais. Esse processo já ocorre na atualidade, mas se encontra ainda em sua primeira etapa.

O Papel do Partido Radical

As últimas eleições cantonais deram os resultados que podiam e deviam ser esperados: os flancos, isto é, os reacionários e o bloco operário, ganharam posições; e o centro, ou seja, os radicais, perderam. Mas os ganhos e perdas ainda são ínfimos. Caso se tratasse de eleições parlamentares, esses fenômenos teriam tomado uma maior amplitude, sem dúvida. Para nós, os deslocamentos verificados não têm importância em si mesmos, a não ser como sintoma de mudanças na consciência das massas. Mostram que o centro pequeno-burguês já começou a desmoronar em favor dos campos extremistas. Isto significa que os restos do regime parlamentar vão ser progressivamente roídos; os extremos vão crescer; o choque entre eles se aproxima. Não é difícil compreender que esse processo é inevitável.

O partido radical é o partido com cuja ajuda a grande burguesia mantinha as esperanças da pequena burguesia na melhora progressiva e pacífica de sua situação. Esse papel dos radicais só foi possível enquanto a situação econômica da pequena burguesia era suportável, enquanto esta não estava completamente arruinada e tinha esperanças no futuro. É verdade que o programa dos radicais foi sempre um pedaço de papel. Eles não realizaram nenhuma reforma social séria em favor dos trabalhadores, e não poderiam realizá-la: isso não lhes seria permitido pela grande burguesia, em cujas mãos estão todas as reais alavancas do poder: os bancos e a Bolsa, a grande imprensa, os funcionários de alto escalão, a diplomacia, o Estado-Maior. Porém, algumas pequenas esmolas que os radicais obtinham eventualmente em benefício de sua clientela, sobretudo na província, mantinham as ilusões das massas populares. Assim foi até a última crise. Atualmente, mesmo para o camponês mais atrasado, fica claro que não se trata de uma crise passageira ordinária, como as muitas ocorridas antes da guerra, mas de uma crise de todo o sistema social. São necessárias medidas firmes e decisivas. Quais? O camponês não sabe. Ninguém lhe disse, como ele necessitava que fizessem.

O capitalismo levou os meios de produção a um nível tal que eles se encontram paralisados pela miséria das massas populares, arruinadas por esse mesmo capitalismo. Por isso mesmo, todo o sistema entrou em um período de decadência, de decomposição, de putrefação. O capitalismo não pode dar aos trabalhadores novas reformas sociais, nem sequer as pequenas esmolas: vê-se obrigado a tomar as que deu antes. Toda a Europa entrou em uma época de "contra-reformas" econômicas e políticas. O que provoca a política de espoliação e sufocamento das massas não são os caprichos da reação, mas a decomposição do sistema capitalista. Aí está o fato fundamental, que deve ser assimilado por cada operário, se não quer ser enganado por frases ocas. É precisamente por isso que os partidos reformistas democráticos se decompõem e perdem força, um após outro, em toda a Europa. A mesma sorte espera os radicais franceses. Somente pessoas sem cérebro podem pensar que a capitulação de Daladier ou o servilismo de Herriot ante a pior reação são o resultado de causas fortuitas ou temporárias ou de falta de caráter desses dois chefes lamentáveis. Não! Os grandes fenômenos políticos têm, sempre, profundas causas sociais. A decadência dos partidos democráticos é um fenômeno universal que tem suas razões na decadência do próprio capitalismo. A grande burguesia diz aos radicais: "Agora não é tempo para brincadeiras. Se não pararem de coquetear com os socialistas e de flertar com o povo, prometendo-lhe mundos e fundos, chamo os fascistas. Compreendam bem que 6 de fevereiro não foi mais que uma primeira advertência!" Depois disso, o camelo radical se põe de joelhos. Não lhe resta outra coisa a fazer.

Porém o radicalismo não encontra sua salvação por esse caminho. Ligando sua sorte à da reação, sob os olhos do povo, abrevia inevitavelmente seu próprio fim! A perda de votos e mandatos nas eleições cantonais é apenas o começo. O processo de desmoronamento do partido radical será cada vez mais rápido. A questão é saber em favor de quem se dará essa queda inevitável, irresistível: se da revolução proletária ou do fascismo.

Quem apresentará primeiro, mais amplamente e com maior força, o programa mais convincente à classe média e - o mais importante - conquistará sua confiança, mostrando com palavras e fatos que é capaz de eliminar todos os obstáculos no caminho de um futuro melhor: o socialismo revolucionário ou a reação fascista? Desta questão depende a sorte da França por muitos anos. Não só a da França: a da Europa. Não só a da Europa: a do mundo inteiro.

As "Classes Médias", O Partido Radical e o Fascismo

Desde a vitória dos nazistas na Alemanha, fala-se muito, nos partidos e grupos de "esquerda", da necessidade de aproximação com as "classes médias" para se barrar o fascismo. A fração Renaudel e Cia. separou-se do partido socialista com o objetivo específico de aproximar-se dos radicais [4*]. Porém, na mesma hora em que Renaudel, que vive preso às idéias de 1848, estendia as duas mãos para Herriot, este as tinha ocupadas: uma por Tardieu e a outra por Louis Martin. [5*]

Apesar disso, não se conclui aqui, em absoluto, que a classe operária possa dar as costas à pequena burguesia, abandonando-a a sua desgraça. De modo algum! Aproximar-se dos camponeses e dos pequenos burgueses da cidade, atraí-los para o nosso lado, é a condição necessária de êxito na luta contra o fascismo, para não falar da conquista do poder. Apenas é necessário colocar o problema de modo correto. Para isso se deve compreender claramente qual é a natureza das "classes médias". Em política, nada é mais perigoso, especialmente em um período crítico, que repetir fórmulas generalizadas, sem examinar o conteúdo social que recobrem.

A sociedade contemporânea se compõe de três classes: a grande burguesia, o proletariado e as classes médias, ou pequena burguesia. As relações entre estas três classes determinam, em última instância, a situação política. As classes fundamentais são a grande burguesia e o proletariado. Estas duas classes são as únicas que podem ter uma política independente, clara e conseqüente. A pequena burguesia se caracteriza por sua dependência econômica e sua heterogeneidade social. Sua camada superior toca imediatamente a grande burguesia. Sua camada inferior se mescla com o proletariado, e chega mesmo a cair no estado de lumpemproletariado. De acordo com sua situação econômica, a pequena burguesia não pode ter uma política independente. Oscila sempre entre os capitalistas e os operários. Sua própria camada superior a empurra para a direita; suas camadas inferiores, oprimidas e exploradas, são capazes, em certas condições, de virar bruscamente à esquerda. É por essas relações contraditórias das diferentes camadas das classes médias que sempre esteve determinada a política confusa e inconsistente dos radicais, suas vacilações entre o Cartel [6*] com os socialistas, para acalmar a base, e o Bloco nacional com a reação capitalista, para salvar a burguesia. A decomposição definitiva do radicalismo começa no momento em que a grande burguesia, ela mesma num impasse, não o deixa mais oscilar. [7*] A pequena burguesia, encarnada pelas massas arruinadas das cidades e do campo, começa a perder a paciência. Adota uma atitude cada vez mais hostil para com sua própria camada superior; se convence através dos fatos da inconsistência e perfídia de sua direção política. O camponês pobre, o artesão e o pequeno comerciante se convencem de que um abismo os separa de todos esses prefeitos, esses advogados, esses arrivistas políticos do gênero de Herriot, Daladier, Chautemps, que, por seu modo de vida e por suas concepções, são grandes burgueses. É precisamente essa desilusão da pequena burguesia, sua impaciência, seu desespero, que o fascismo explora. Seus agitadores estigmatizam e maldizem a democracia parlamentar, que respalda arrivistas e "staviskratas" [8*] mas nada concede aos pequenos trabalhadores. Esses demagogos brandem o punho em direção aos banqueiros, grandes comerciantes, capitalistas. Essas palavras e gestos respondem plenamente aos sentimentos dos pequenos proprietários, que se sentem diante de um impasse. Os fascistas mostram audácia, saem à rua, enfrentam a polícia, tentam varrer o Parlamento pela força. Isto impressiona o pequeno burguês afundado no desespero. Ele se diz: "Os radicais, entre os quais há muitos patifes, se venderam definitivamente aos banqueiros; os socialistas prometem há muito eliminar a exploração, porém nunca passam das palavras aos fatos; os comunistas, não é possível entendê-los: hoje é uma coisa, amanhã outra; é preciso ver se os fascistas podem nos salvar."

A Passagem das Classes Médias Para o Campo do Fascismo é Inevitável?

Renaudel, Frossard e seus semelhantes imaginam que a pequena burguesia está apegada sobretudo à democracia, e que precisamente por isso é necessário unir-se aos radicais. Que monstruosa aberração! A democracia nada mais é que uma forma política. A pequena burguesia não se preocupa com a casca, mas com o fruto. A democracia se mostra impotente? Ao diabo com a democracia! Assim raciocina e sente cada pequeno burguês. Na crescente revolta das camadas inferiores da pequena burguesia contra suas próprias camadas superiores, "instruídas", municipais, cantonais e parlamentares, encontra-se a principal fonte social e política do fascismo. A isso deve-se acrescentar o ódio da juventude intelectual, esmagada pela crise, pelos advogados, professores, deputados e ministros fortuitos: os intelectuais pequeno-burgueses inferiores se rebelam também contra os que estão por cima deles. Isso significa que a passagem da pequena burguesia para o caminho do fascismo será inevitável? Não, tal conclusão seria um vergonhoso fatalismo. O que é realmente inevitável é o fim do radicalismo e de todos os agrupamentos políticos que ligam sua sorte à deste último. Nas condições da decadência capitalista, não há mais lugar para um partido de reformas democráticas e de progresso "pacífico". Qualquer que seja a via pela qual passe o futuro desenvolvimento da França, o radicalismo desaparecerá de cena, de todos os modos, rechaçado e desonrado pela pequena burguesia, que traiu definitivamente. Todo operário consciente se convencerá desde agora de que nossa predição responde à realidade, baseada nos fatos e na experiência de cada dia. Novas eleições trarão derrotas para os radicais. Deles vão se desprender uma camada atrás da outra, as massas populares embaixo, os grupos arrivistas assustados em cima. Deserções, cisões, traições vão seguir-se ininterruptamente. [9*] Manobras ou blocos não salvarão o partido radical. Ele arrastará consigo para o abismo o "partido" de Renaudel, Déat e Cia. O fim do partido radical é o resultado inevitável do fato de que a sociedade burguesa não pode resolver suas dificuldades com métodos supostamente democráticos. A cisão entre a base da pequena burguesia e suas cúpulas é inevitável.

Mas isso não significa de modo algum que as massas que seguem o radicalismo devem, inevitavelmente, colocar suas esperanças no fascismo. Desde agora, a parte mais desmoralizada, mais desqualificada e mais ávida da juventude das classes médias já fez sua escolha nesse sentido. É sobretudo nesta fonte que se abastecem os grupos fascistas. Mas as grandes massas pequeno-burguesas das cidades e do campo ainda não fizeram sua escolha. Hesitam ante uma grave decisão. É precisamente porque hesitam que ainda continuam, mas já sem confiança, votando nos radicais. Entretanto, estas hesitações, esta irresolução, não vão durar anos, apenas meses. O desenvolvimento político vai ter, proximamente, um ritmo febril. A pequena burguesia não rejeitará a demagogia do fascismo, a não ser que tenha fé em outro caminho. O outro caminho é o da revolução proletária.

É Verdade que a Pequena Burguesia Teme a Revolução?

Os especialistas do Parlamento, que acreditam conhecer o povo, gostam de repetir: "Não se deve assustar as classes médias com a revolução; elas não gostam de extremos." Generalizada desta forma, a afirmação é absolutamente falsa. Naturalmente, o pequeno proprietário tende à ordem, enquanto seus negócios marcham bem e enquanto tem a esperança de que marchem ainda melhor. Porém, quando perde essa esperança, é facilmente atacado pela raiva e se dispõe a abandonar-se a medidas mais extremas. Do contrário, como teria podido derrotar o Estado democrático e conduzir o fascismo ao poder na Itália e na Alemanha? Os pequenos burgueses desesperados vêem no fascismo, antes de tudo, uma força que combate o grande capital, e acreditam que, diferentemente dos partidos operários, que trabalham somente com a língua, o fascismo utilizará os punhos para impor mais "justiça". A sua maneira, o camponês e o artesão são realistas: compreendem que não poderão prescindir dos punhos. É falso, triplamente falso, afirmar que atualmente a pequena burguesia não se volta para os partidos operários porque teme "medidas extremas". Ao contrário. A camada inferior da pequena burguesia, suas grandes massas, não acredita na força dos partidos operários, não os crêem capazes de lutar, nem dispostos a levar, desta vez, a batalha até o fim. Se é assim, vale a pena substituir o radicalismo por seus colegas parlamentares de esquerda? É desta foram que raciocina ou reage o proprietário semi-expropriado, arruinado e revoltado. Sem a compreensão desta psicologia dos camponeses, artesãos, empregados, pequenos funcionários - psicologia que surge da crise social -, é impossível elaborar uma política justa.

A pequena burguesia é economicamente dependente e está politicamente atomizada. Por isso não pode ter uma política própria. Necessita de um "chefe" que lhe inspire confiança. Este chefe individual ou coletivo, indivíduo ou partido, pode ser fornecido por uma ou outra das duas classes fundamentais, seja pela grande burguesia, seja pelo proletariado. O fascismo unifica e arma as massas dispersas; de uma "poeira humana" - segundo nossa expressão - faz destacamentos de combate. Assim, dá à pequena burguesia a ilusão de ser uma força independente. Ela começa a imaginar que, realmente, comandará o Estado. Não há nada de surpreendente em que essas ilusões e esperanças lhe subam à cabeça!

Mas a pequena burguesia pode também encontrar seu chefe no proletariado. Assim o demonstrou na Rússia e, parcialmente, na Espanha. Tendeu a isso na Itália, na Alemanha e na Áustria. Infelizmente, os partidos do proletariado não estiveram à altura de sua tarefa histórica. Para atrair a pequena burguesia, o proletariado deve conquistar sua confiança. E, para isso, deve começar por ter confiança em suas próprias forças. Precisa ter um programa de ação claro e estar determinado a lutar pelo poder por todos os meios possíveis. Unido por seu partido revolucionário para uma luta decisiva e implacável, o proletariado diz aos camponeses e aos pequenos burgueses da cidade: "Luto pelo poder. Eis aqui meu programa: estou pronto a me entender com vocês para modificar esse ou aquele ponto. Não usarei a força a não ser contra o grande capital e seus lacaios; com vocês, trabalhadores, quero fazer uma aliança baseada num determinado programa." O camponês compreenderá esta linguagem. Falta-lhe somente ter confiança na capacidade do proletariado para tomar o poder. Para isso, é indispensável depurar a Frente Única de todo equívoco, de toda indecisão, de frases vazias; é indispensável compreender a situação e colocar-se seriamente na rota da luta revolucionária.

Uma Aliança com os Radicais Seria uma Aliança Contra as Classes Médias

Renaudel, Frossard e seus semelhantes pensam seriamente que uma aliança com os radicais é uma aliança com as "classes médias" e, conseqüentemente, uma barreira contra o fascismo. Essa gente não vê outra coisa que as sombras parlamentares. Ignora a evolução real das massas e se volta para o partido radical, que sobrevive, embora este já lhe tenha dado as costas faz tempo. Pensa que em uma época de grande crise social, uma aliança de classes mobilizadas pode ser substituída por um bloco com uma corja parlamentar comprometida e condenada ao desaparecimento. Uma verdadeira aliança do proletariado e das classes médias não é uma questão de estatística parlamentar, mas de dinâmica revolucionária. É preciso criar essa aliança, forjá-la na luta.

O fundo da situação política atual está no fato de que a pequena burguesia desesperada começa a desembaraçar-se do jugo da disciplina parlamentar e da tutela da corja "radical"-conservadora, que sempre enganou o povo e agora o traiu definitivamente. Nesta situação, ligar-se aos radicais significa autocondenar-se ao desprezo das massas e empurrar a pequena burguesia para os braços do fascismo, que verá como único salvador.

O partido operário não deve ocupar-se numa tentativa sem esperança de salvar o partido dos especialistas em falências; pelo contrário, deve acelerar com todas as suas forças o processo de liberação das massas da influência radical. Quanto mais zelo e audácia puser no cumprimento dessa tarefa, mais rapidamente vai preparar a verdadeira aliança da classe operária com a pequena burguesia. É necessário tomar as massas em seu movimento. É necessário orientar-se pela sua cabeça, e não ir a reboque. Pior para os que se deixam ficar para trás!

Quando Frossard nega ao partido socialista o direito de desmascarar, enfraquecer e decompor o partido radical, atua como um radical conservador, não como um socialista. Só tem direito à existência histórica o partido que acredita em seu programa e se esforça para reunir todo o povo sob sua bandeira. Do contrário, não é um partido histórico, mas uma corja parlamentar, um grupo de arrivistas. Não é somente um direito, mas um dever elementar do proletariado liberar as massas trabalhadoras da nefasta influência da burguesia. Essa tarefa histórica adquire, na atualidade, uma importância particular, pois os radicais se esforçam mais do que nunca para ocultar o trabalho da reação, adormecer e enganar o povo, e assim preparar a vitória do fascismo. Os radicais? Eles também fatalmente capitulam diante de Herriot, assim como Herriot o faz diante de Tardieu.

Frossard tem esperança de que a aliança dos socialistas com os radicais conduzirá a um governo de "esquerda", que dissolverá as organizações fascistas e salvará a República. É difícil imaginar uma amálgama mais monstruosa de ilusões democráticas e cinismo policial. Quando dizemos que uma milícia popular é necessária, Frossard e seus semelhantes objetam: "Contra o fascismo não se deve lutar com meios físicos, mas ideologicamente." Quando dizemos: somente uma audaciosa mobilização revolucionária das massas, que só é possível na luta contra o radicalismo, é capaz de minar o terreno sob os pés do fascismo, os mesmos replicam: "Não, somente a polícia do governo Daladier-Frossard pode salvar-nos."

Lamentável gaguejar! Os radicais tiveram o poder e, se consentiram em cedê-lo a Doumergue, não foi por que lhes faltou a ajuda de Frossard, mas porque temiam o fascismo, a grande burguesia que os ameaçava com navalhas monarquistas e mais ainda o proletariado, que começava a voltar-se contra o fascismo. Para cúmulo dos escândalos, foi o próprio Frossard quem, espantado com o espanto dos radicais, aconselhou Daladier a capitular! Se se admite por um instante - hipótese claramente inverossímil - que os radicais consentiram em romper a aliança com Doumergue por uma aliança com Frossard, os grupos fascistas, desta vez com a colaboração direta da polícia, teriam saído às ruas em número três vezes maior, e os radicais, junto com Frossard, se teriam metido debaixo da mesa ou se teriam ocultado nos redutos mais secretos dos seus ministérios.

Mas suponhamos uma outra hipótese não menos fantástica: a polícia de Daladier-Frossard "desarma" os fascistas. Isso resolve a questão? Quem desarmará a polícia que, com a mão direita, devolverá aos fascistas o que lhes havia tomado com a esquerda? A comédia do desarmamento pela polícia não faria mais que aumentar a autoridade dos fascistas, que teriam feito figura como adversários do Estado capitalista. Os golpes contra os grupos fascistas não podem ser reais a não ser que esses grupos sejam, ao mesmo tempo, isolados politicamente. O hipotético governo Daladier-Frossard nada daria aos operários ou às massas pequeno-burguesas, pois não poderia atentar contra os fundamentos da propriedade privada. E, sem expropriação dos bancos, das grandes empresas comerciais, das indústrias-chave, dos transportes, sem monopólio do comércio exterior e sem uma série de outras medidas profundas, não é possível, em absoluto, socorrer o camponês, o artesão ou o pequeno comerciante. Por sua passividade, impotência, mentira, o governo Daladier-Frossard provocaria uma tempestade de revolta na pequena burguesia e a empurraria definitivamente para a via do fascismo... se esse governo fosse possível.

Entretanto, é preciso reconhecer que Frossard não está só. No mesmo dia (24 de outubro) em que o moderado Zyromski intervinha em Le Populaire, contra a tentativa de Frossard de recriar o Cartel, Cachin intervinha no L'Humanité para defender a idéia de um bloco com os radicais e socialistas. [10*] Cachin saudava com entusiasmo o fato de os radicais terem se pronunciado pelo "desarmamento" dos fascistas. É verdade que os radicais se pronunciaram pelo desarmamento de todos, inclusive das organizações operárias. Naturalmente, nas mãos do Estado bonapartista, tal medida seria dirigida sobretudo contra os operários. Naturalmente, os fascistas "desarmados" receberiam no dia seguinte o dobro de armas, não sem ajuda da polícia. Mas para que preocupar-se com sombrias reflexões? Todo homem necessita de uma esperança. E eis aqui Cachin, que segue as pegadas de Wels e Otto Bauer, os quais, em seu momento, esperaram a salvação por meio de um desarmamento realizado pela polícia de Brüning e Dollfuss. [11*] Fazendo um giro de 180 graus, Cachin identifica os radicais com as classes médias. Os camponeses oprimidos? Só os vê através do prisma do radicalismo. Não imagina a aliança com os pequenos proprietários trabalhadores senão sob a forma de bloco com os parlamentares negociantes que, por fim, começaram a perder a confiança dos pequenos proprietários. Em vez de alimentar e de atiçar a incipiente revolta do camponês e do artesão contra os exploradores "democráticos" e de dirigi-Ia para uma aliança com o proletariado, Cachin se prepara para sustentar os radicais falidos com a autoridade da "frente comum" e, desse modo, empurrar a revolta das camadas inferiores da pequena burguesia para o caminho do fascismo. [12*]

Em matéria de política revolucionária, a negligência teórica sempre é paga cruelmente. O "antifascismo", como o "fascismo", não são para os stalinistas concepções concretas, mas grandes bolsas vazias que enchem com tudo o que lhes cai nas mãos. Para eles, Doumergue é um fascista, como Daladier também o foi antes. De fato, Doumergue explora, para os capitalistas, a ala fascistizante da pequena burguesia radical. Atualmente esses dois sistemas se combinam no regime bonapartista. Doumergue também é, a sua maneira, um "antifascista", pois prefere uma ditadura "pacífica", militar e policial do grande capital a uma guerra civil de resultado sempre incerto. Por terror ao fascismo, e mais ainda ao proletariado, o "antifascista" Daladier se aliou a Doumergue. Mas o regime de Doumergue é inconcebível sem a existência de grupos fascistas. A análise marxista elementar demonstra assim a completa inconsistência da idéia da aliança com os radicais contra o fascismo! Os próprios radicais se dão ao trabalho de mostrar, através dos fatos, quão fantásticas e reacionárias são as quimeras políticas de Frossard e Cachin.


Notas:

[1*] A revolta das Ligas, de 6 de fevereiro de 1934, provocou a demissão do governo de Daladier e a formação de um gabinete dito de "união nacional", presidido por Gaston Doumergue e no qual figuravam, entre outros, o marechal Pétain, André Tardieu, encarregado de estudar a "reforma da Constituição", Pierre Laval, Edouard Herriot e o líder "neo-socialista" Adrien Marquet. Daladier tinha se demitido sem ter sido colocado em minoria. Os radicais, com a exceção de 27 deputados que se abstiveram, apoiaram o governo de união nacional no qual participava seu líder Herriot.

[2*] A presença de Pétain no governo significava evidentemente a adesão dos chefes do Exército à solução de "unidade nacional".

[3*] Em seu discurso pela rádio de 24 de março, Doumergue foi particularmente ameaçador em relação aos funcionários públicos, que iriam aliás ser o alvo principal dos decretos-lei de abril, prevendo uma redução do quadro de 10%.

[4*] A tendência dita "neo-socialista" da SFIO, dirigida pelo veterano Renaudel, tinha defendido a necessidade de "rejuvenescer" a teoria e os métodos do socialismo. Derrotada em julho de 1933 num Congresso realizado em Paris, rompeu depois da exclusão de vários de seus dirigentes para constituir em dezembro de 1933 o Partido Socialista da França. A partir de fevereiro de 1934, a maioria dos "neos" se juntou não só aos radicais, de quem queriam ser aliados permanentes, mas também a Tardieu, Pétain e Laval. A partir de 1934, Frossard iria retomar na SFIO as teses defendidas antes pelos "neos". A direção da SFIO, que tinha condenado a aliança com os radicais quando a proposta era feita pelos "neos", apoiou-a quando foi feita pelo PC.

[5*] Louis Martin foi, entre as duas guerras, o representante no parlamento da "direita clássica".

[6*] Cartel: acordo parlamentar de radicais e socialistas.

[7*] Edouard Herriot tinha sido sucessivamente presidente do Conselho do governo do Cartel das esquerdas, depois ministro de Estado no governo de Poincaré, de Unidade Nacional.

[8*] No período a que o texto se refere, vários escândalos financeiros abalaram a França, fornecendo material propagandístico aos fascistas. A palavra "staviskrata" refere-se ao principal protagonista do mais famoso desses escândalos: Stavisky, vigarista ligado às altas esferas governamentais.

[9*] A primeira divisão ocorreu imediatamente após o congresso de Clermont Ferrand: o líder da minoria, Gabriel Cudenet, demitiu-se, com grande repercussão. Nos anos seguintes, o Partido Radical foi dividido em dois entre os adversários da abertura à esquerda, com Emile Roche, e seus partidários, os "jovens radicais" de Pierre Cot e Jean Zay. Este último, no entanto, depois de ter se abstido no Parlamento, iria aprovar no Congresso a participação radical no governo Doumergue.

[10*] No dia 9 de outubro de 1934, durante uma reunião de coordenação dos partidos Socialista e Comunista, o dirigente do PC Maurice Thorez propôs "ampliar" a unidade com vistas a constituir "a aliança das classes médias com a classe operária".

[11*] Os dirigentes dos partidos Social-Democratas da Alemanha (Wels) e da Áustria (Otto Bauer) tinham chamado os trabalhadores a "exigir" aos governos Brüning e Dollfuss o desarmamento dos grupos nazistas. Mais tarde, depois da oferta do deputado Ybarnégary, da Cruz de Fogo, de dissolver os grupos armados de sua organização, Blum, e depois Thorez, propuseram igualmente dissolver os "grupos de proteção" de seus partidos.

[12*] O giro provocado pela proposta de Thorez no comitê de coordenação de 9 de outubro foi seguido pela reunião de Bullier, no dia 10, onde ele defendeu um "vasto agrupamento popular". A partir de 22 de outubro, Cachin, no L'Humanité, retoma sistematicamente nos seus títulos a expressão "Frente Popular", a qual Maurice Thorez, em 24 de outubro, em Nantes, precisa que deve englobar "os grupos de radicais hostis à reação". A Frente Popular será finalmente constituída com os Radicais e na base de seu programa.

Inclusão 25/10/2005