Carta a Max Shachtman

Leon Trotsky

6 de Novembro de 1939

logotipo

Primeira Edição: Leon Trotsky, In Defense of Marxism, New York 1942.
Fonte: "Em Defesa do Marxismo", publicação da Editora "Proposta Editorial"
Direitos de Reprodução: © Editora Proposta Editorial. Agradeçemos a Valfrido Lima pela autorização concedida.


Querido camarada Shachtman:

Recebi a transcrição de seu discurso de 15 de outubro, e claro, li-o com a maior atenção que merece. Encontrei muitas idéias e formulações excelentes, que me pareceram estar em total acordo com nossa posição comum, tal e como estão expressas nos documentos fundamentais da Quarta Internacional. Porém, não pude encontrar a explicação de seu ataque à nossa posição anterior, como "insuficiente, inadequada e antiquada".

Você diz que "o que difere nossas hipóteses e predições teóricas, o que modifica a situação, é o concreto dos acontecimentos" (p. 17). Mas infelizmente, você fala sobre "o concreto" dos acontecimentos muito abstratamente, tanto que não pude ver em que medida modifica a situação e quais são as conseqüências destas mudanças para a nossa política. Você menciona alguns exemplos do passado. Segundo você, "vimos e previmos" a degeneração da Terceira Internacional (p. 18); mas somente depois da vitória de Hitler achamos necessário proclamar a Quarta Internacional. Este exemplo não está formulado de maneira exata. Previmos não só a degeneração da Terceira Internacional, mas também a possibilidade de sua regeneração. Somente a experiência alemã de 1929-1933 nos convenceu de que o Comintern estava condenado e que nada poderia regenerá-lo. Porém, foi então que mudamos fundamentalmente a nossa política: à Terceira Internacional, opusemos a Quarta Internacional.

Porém, não extraímos as mesmas conclusões no que diz respeito ao Estado soviético. Por quê? A Terceira Internacional era um partido, uma seleção de indivíduos com base em idéias e métodos. Esta seleção chegou a estar tão fundamentalmente oposta ao marxismo, que nos vimos obrigados a abandonar toda esperança de regenerá-la. Porém, o Estado soviético não é somente uma seleção ideológica, é um conjunto de instituições sociais que continua existindo, apesar das idéias da burocracia serem agora quase que o oposto das idéias da Revolução de Outubro. Por isso não renunciamos à idéia de regeneração do Estado soviético, através da revolução política. Você acredita agora, que devemos modificar esta atitude? Se não acredita, e estou certo de que você não propõe isso, onde está a mudança fundamental produzida "pelo concreto" dos acontecimentos?

Junto com isso, você cita a palavra-de-ordem de Ucrânia Soviética Independente que, com satisfação, vejo que você aceita. Porém, você acrescenta: "Entendo que nossa posição básica sempre foi a de nos opormos às tendências separatistas na República Soviética Federativa" (p.19). Com relação a isso, você vê uma "mudança" fundamental "na linha política". Mas: 1) a palavra-de-ordem de uma Ucrânia Soviética Independente foi proposta antes do pacto HitlerStalin. 2) esta palavra-de-ordem é somente uma aplicação no campo da questão nacional, de nossa palavra-de-ordem geral de derrocada revolucionária da burocracia. Você poderia dizer, com todo o direito: "Entendo que nossa posição básica sempre foi a de nos opormos a qualquer ato de rebeldia contra o governo soviético". Está certo, mas modificamos esta posição básica há vários anos. Não vejo qual é a nova mudança que você realmente propõe, agora, em relação a isto.

Você cita a marcha do Exército Vermelho sobre a Polônia e a Geórgia em 1920, e prossegue: "Agora, se não existe nada de novo na situação, por que a maioria não propõe apoiar a marcha do Exército Vermelho na Polônia, nos paises Bálticos, na Finlândia...?" (p. 20). Nesta parte decisiva de seu discurso, você afirma que algo é "novo na situação" entre 1920 e 1939. Mas, claro! A novidade da situação, é a falência da Terceira Internacional, a degeneração do Estado soviético, o desenvolvimento da Oposição de Esquerda, e a criação da Quarta Internacional. "O concreto dos acontecimentos" ocorreu exatamente entre 1920 e 1939. E estes acontecimentos são suficientes para explicar porque mudamos radicalmente nossa posição em relação à política do Kremlin, incluindo sua política militar.

Parece que você esquece algo; em 1920 nós apoiamos não só as atuações do Exército Vermelho, mas também as da GPU. Desde o ponto de vista de nossa avaliação do estado, não existe diferença de princípio entre o Exército Vermelho e a GPU. Estão não só estreitamente conectados em suas atividades, mas entrelaçados. Podemos dizer que em 1918 e nos anos seguintes, impulsionamos a Cheka em sua luta contra os contra-revolucionários russos e espiões imperialistas, mas em 1927, quando a GPU começou aprender, exilar e caçar os autênticos bolcheviques, modificamos nossa avaliação sobre esta instituição. Esta mudança concreta, ocorreu no mínimo, onze anos antes do pacto germânico-soviético. E por isso que estranho ainda mais, quando você fala sarcasticamente de "a recusa da maioria, inclusive (I) em tomar hoje a mesma posição que todos tomamos em 1920..." (p. 20). Começamos a mudar nossa posição em 1923. Procedemos por etapas, mais ou menos de acordo com os desenvolvimentos objetivos. Para nós, o ponto decisivo desta evolução foi 1933-1934. Se não conseguimos apreciar quais são as mudanças fundamentais que você propõe em nossa política, isto não significa que tenhamos que retroceder a 1920!

Você insiste, especialmente, na necessidade de se abandonar a palavra-de-ordem de defesa incondicional da URSS, após isso, interpreta nossa utilização desta palavra-de-ordem no passado como nosso apoio incondicional à cada ação militar e diplomática do Kremlin, e portanto, à política de Stalin. Não, querido Shachtman, esta apresentação não corresponde "ao concreto dos acontecimentos". Já em 1927, proclamamos no Comitê Central: "Pela pátria socialista? Sim! Pelo curso stalinista? Não (A escola de falsificação stalinista, p. 177). Então, você parece esquecer as chamadas "teses sobre Clemenceau", que significavam que em interesse da autêntica defesa da URSS, a vanguarda proletária poderia estar obrigada a eliminar o governo de Stalin e substituí-lo pelo seu próprio governo. Isto foi proclamado em 1927! Cinco anos depois, explicamos aos operários que esta mudança de governo poderia ser realizada somente através da revolução política. Dessa forma separamos, essencialmente, nossa defesa da URSS como Estado operário, da defesa da URSS da burocracia. Então, você interpreta nossa política anterior como apoio incondicional às atividades diplomáticas e militares de Stalin! Permita-me que lhe diga que tal coisa é uma horrível deformação de toda nossa posição, não só desde a criação da Quarta Internacional, mas desde o próprio início da Oposição de Esquerda.

Defesa incondicional da URSS significa, literalmente, que nossa política não está determinada pela ação, manobras ou crimes da burocracia do Kremlin, mas somente pela nossa concepção dos interesses do Estado soviético e da revolução mundial.

No final de seu discurso, você cita a fórmula de Trotski concernente à necessidade de subordinar a defesa da propriedade nacionalizada na URSS aos interesses da revolução mundial, e continua: “Agora, minha compreensão sobre nossa posição no passado, mostra que negávamos rotundamente qualquer possível conflito entre os dois... Nunca entendi que nossa posição significasse que subordinávamos uma à outra. Se entendo inglês, o termo significava que ou existe contradição entre os dois, ou que existe possibilidade de tal conflito" (p. 37). E a partir daqui, você deduz a impossibilidade de manter a palavra-de-ordem de defesa incondicional da União Soviética.

Este argumento está baseado em duas incompreensões, com o mínimo. Como e por que os interesses de manter a propriedade nacionalizada podem estar em "conflito" com os interesses da revolução mundial? Tacitamente, você deduz que a política do Kremlin (não a nossa política) de defesa pode entrar em conflito com os interesses da revolução mundial. Lógico! A cada passo! Em cada aspecto! Apesar disso, nossa política de defesa não está condicionada pela política do Kremlin. Esta é a primeira incompreensão. Porém, se não existe conflito, você pergunta: por que a necessidade da subordinação? Aqui está a segunda incompreensão. Devemos subordinar a defesa da URSS à revolução mundial, na medida em que subordinamos uma parte ao todo. Em 1918, nas polêmicas com Bukarin, que insistia em uma guerra revolucionária contra a Alemanha, Lênin respondeu de forma semelhante:

"Se agora houvesse uma revolução na Alemanha, então seria nosso dever ir à guerra, inclusive correndo o risco de sermos derrotados. A revolução alemã é mais importante do que a nossa, e se necessário, devemos sacrificar o poder soviético na Rússia (por um momento) para ajudar a estabelecê-lo na Alemanha".

Neste momento, uma greve em Chicago em si e por si mesma, pode não ter sentido algum, mas se a questão é ajudar uma greve geral em escala nacional, os operários de Chicago deveriam subordinar seus interesses aos interesses de sua classe e chamar a greve. Se a URSS está implicada na guerra, ao lado da Alemanha, a revolução alemã certamente pode ameaçar os interesses imediatos de defesa da URSS. Aconselharíamos os operários alemães a não agir? Certamente o Comintern lhes daria tal conselho, mas nós não. Nós diríamos: "subordinamos os interesses da defesa da URSS aos interesses da revolução mundial".

Me parece que alguns de seus argumentos estão respondidos no último artigo de Trotski "Novamente e uma vez mais sobre a natureza da URSS", que foi escrito antes que eu recebesse a transcrição de seu discurso.

Vocês possuem centenas e centenas de novos militantes que não passaram pela nossa experiência comum. Temo que sua exposição possa levá-los ao erro de acreditarem que estivemos pelo apoio incondicional ao Kremlin, pelo menos em escala internacional, que não previmos a possibilidade da colaboração StalinHitler, que fomos colhidos de surpresa pelos acontecimentos e que modificamos essencialmente nossa posição. Tal coisa não é verdade! E, independentemente de todas as demais questões que são debatidas, ou só tocadas de leve em seu discurso (direção, conservadorismo, regime partidário, e tudo o mais), em minha opinião, devemos examinar novamente nossa opinião sobre a questão russa com todo o cuidado necessário, em interesse da seção americana bem como da Quarta Internacional em seu conjunto.

Agora, o perigo real não é a defesa "incondicional" daquilo que merece ser defendido, mas a ajuda direta ou indireta à corrente política que tenta identificar a URSS com os Estados fascistas em benefício das democracias, ou à corrente que trata de impulsionar todas as tendências para um mesmo saco, com o propósito de comprometer o marxismo ou o bolchevismo com o stalinismo. Somos o único partido que previu os acontecimentos, não em suas concreções empíricas, é lógico, mas em sua tendência geral. Nossa força reside no fato de que não necessitamos modificar nossa orientação mesmo que a guerra comece. E considero muito falso o fato de que alguns de nossos camaradas, movidos pela luta fracional por um "bom regime" (que, segundo sei, nunca definiram), persistam em vociferar: "Fomos surpreendidos! Ficou demonstrado que nossa linha era falsa! Devemos improvisar uma nova linha!" e tudo o mais. Me parece completamente errado e perigoso.

Com as mais calorosas saudações comunistas,

LUND (Leon Trotsky)

Cópia a J. P. Cannon

P.S.: As formulações desta carta estão longe de serem perfeitas, na medida em que não é um artigo elaborado, mas somente uma carta ditada por mim em inglês, e corrigida pelo meu colaborador durante o ditado.


Inclusão 07/05/2009