Os parasitas

Neno Vasco

19 de novembro de 1903


Primeira Edição: A VOZ DE AMARANTE (publicação semanal de Amarante) — N.º 71, 19/11/1903.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/os-parasitas/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Não os há somente entre os vegetais, nem no reino animal, em degraus inferiores: subindo na escala dos bichos, encontramos entre os mais nobres, entre os bípedes, várias espécies desta simpática família. E estas espécies não são das menos interessantes.

Distinguem-se dos bípedes produtivos por várias ordens de distintivos e emblemas. Em globo, conhecem-se pelo seu ar contente e grave, pelas suas maneiras superiores, pelo seu asseio. Entre uns e outros há, porém, ainda certas direfenças. Uns, esmeradamente vestidos, do mais fino e do mais caro, usam com frequência grossas e ricas correntes de relógio, anéis de brilhantes nos dedos, castões cinzelados nas bengalas, e outras jóias ou adornos selvagens. Outros quasi sempre nutridos e reluzentes, vestem de negro, uma espécie de saia como as mulheres, e têm a singular mania de pedir ao barbeiro que lhes abra à navalha, no alto da bola que nos homens úteis se chama cabeça, uma roda em forma de moeda — clara alusão ao próprio parasitismo. Outros ainda trazem um facalhão ao lado, que é às vezes arrastado com ruído pela calçada, trajam dum modo extravagante, com cores vistosas, e olham sobranceiramente os outros mortais humildes.

Todos estes seres nocivos vivem à custa dos que produzem e que por eles são obrigados a substituir o trabalho agradável que dá vida e alegria pela fadiga brutal que mata e arruina. Eles dizem viver dos seus rendimentos, do seu dinheiro, que certamente, se fosse semeado, não daria frutos, nem se multiplicaria, se fosse encerrado num cofre. Do que eles vivem, na realidade, é do trabalho alheio, criador de todas as riquezas. São portanto souteneurs, como aqueles que vivem do amor vendido das prostitutas.

Estes souteneurs gabam e prescrevem — sobretudo aos trabalhadores — uma trapalhada de preceitos excelentes, que se juntam sob a bonita designação de moral. E uma das cousas que essa senhora Moral condena e reprova é o parasitismo dos caftens ou souteneurs, esmagados sob o formidável peso do desprezo público… Mas, para obedecer ao ditado — todos vêem o argueiro no olho do visinho e ninguém vê a tranca no seu — a D. Moral só para os que vivem das meretrizes tem desdéns e censuras. Quando um parasita encontra na rua uma pessoa útil, qualquer amante da lógica e da moral poderia parar afim de ver a atrapalhação do pobre souteneur, — que decerto vai ficar todo envergonhado, escondendo-se ou passando cabisbaixo e humilde ao dar de cara com o trabalhador — que é o seu bem-feitor, o que o mantém naquele luxo. Cousa curiosa! Sucede exatamente o contrário: o trabalhador passa rasteiro e servil, fazendo rasgados cumprimentos, ao passo que o parasita, que o nosso bom amante da moral ingenuamente esperava ver corar, caminha orgulhoso e direito, com uma sobranceria soberba de fidalgo!!!

É que todos os souteneurs, todos os rufiões, tanto os das desgraçadas que prostituem o baixo-ventre, como os dos infelizes que prostituem os braços — aquelas e estes por um salário — são irresistivelmente levados a desprezar, a espancar, a olhar superiormente, a governar, enfim, os seus protetores de alcouce.

E os parasitas de que nos ocupamos têm um meio fácil de dominar: têm nas suas mãos tudo aquilo de que os trabalhadores necessitam, além dos seus braços e da sua vontade, para produzir as cousas úteis ou indispensáveis à vida. Têm as ferramentas, as máquinas, todos os instrumentos de trabalho, todos os materiais, toda a terra e os seus frutos.

Tudo isto é alugado ao trabalhador, que deixa em paga, nas mãos do alugador, a maior parte do que produz, com uma resignação que dá vómitos, acreditando estupidamente nas palavras desse usurário, que lhe diz: «Meu caro, és livre; se não te serve o salário que te dou caridosamente, a pequena parte dos teus produtos que te deixo levar, vai-te embora; ninguém te obriga a alugar os braços». O pobre diabo volta para casa, e encontra ao pé dos filhitos e da mulher, uma senhora muito feia, chamara D. Miséria, que lhe faz este discurso ajuizado: «Aceita! que remédio tens tu? Pouco é melhor do que nada.»

Às vezes o produtor, apesar de muito crédulo, apesar do seu respeito pela propriedade do seu senhor, amontoado com a sua fadiga, acha que é demais a pouca-vergonha do parasita, não pode suportar as comichões zanga-se, isto é, coça-se. É o bastante para levantar alvoroto entre os bichos que lhes gritam que esteja quieto, porque além de tudo, eles lhe são muito necessários. Imaginai a graça que tem um piolho a demonstrar ao porco que o mantém, lá do alto da cabeça, a própria utilidade ou necessidade!

Os tais que vestem de negro como os corvos e que recebem nomes diversos nas diferentes latitudes — padres, pastores, bonzos, feiticeiros — dizem-lhe com brandura: «Tem paciência, filho. Tu, quando julgas que morres, não morres, mesmo depois de morto, continuas a viver, indo para um céu delicioso se fores resignado e obediente neste mundo, e arder numa caldeira, se julgas que o nosso é teu também, e queres fozar nesta miserável vida.»

Mas muitos acham já a mentira gorda de mais e estão desconfiados, havendo mesmo muitos que assobiam irreverentemente o pregador.

Vêem então uns parasitas que uns aos outros se chamam sábios economistas, doutores etc. que começam a dizer gravemente: «Desprezível ignorante: tu não percebes nada da nossa ciência, mas enfim ouve ao menos isto: — Não há que chegue para todos; a terra é pequena. Que seria dos homens sem diretores? Respeita a lei! Sê patriota!»

Mas alguns já descubriram o jogo e respondem: — «Os homens, com o bem estar, irão adquirindo a consciência do fim, da sua responsabilidade e saberão cada ve melhor adaptar o globo à sua felicidade e dirigir a história as leis da população. Se não há produtos em abundância, é porque vós, parasitas, tendes os monopólio dos meios de produção, utilizando-os em vosso proveito exclusivo, estupidamente. Não há tantas matérias primas abandonadas? Não há tantas máquinas inativas? Não há tantos braços desocupados? Não há tantas terras incultas e outras mal cultivadas? Porque há tanta gente descalça, rota, esfomeada ou mal alimentada, sem abrigo ou mal alojada, quando há tanto couro para o calçado, tanto tecido para o vestuário, tanto campo para semear, tanta pedra ou barro para construir, e tanto sapateiro, tanto alfaiate, tanto agricultor, tanto pedreiro em busca de trabalho? E porque se trabalha tanto, quando há tanto material e tanto braço para construir boas máquinas, que tornariam os serviços leves e agradáveis? E para que servem diretores, se os trabalhadores associados conhecem melhor o seu trabalho que os ociosos acionistas? Que nos importa a pátria, se vós roubais nacionais e estrangeiros, se nada temos que defender, se os inimigos sois vós unicamente?»

Um terceiro parasita, chamado o político, toma a palavra e diz eloquentemente, batendo no coração: — «Trabalhadores, meus amigos: tendes razão. O reino da justiça há-de vir. Há-de vir, sim senhores, digovo-lo eu! Mas respeitai a evolução… legal, respeitai a lei! Só a assim chegareis, com paciência. Confiai em mim; eu tratarei dos vossos negócios. Ide para casa socegados, que eu cá fico a bater-me por vós, a dar a vida por vós… na rude poltrona dum parlamento». etc.

Alguns, porém, encolhem os ombros e dizem sem cerimónia: «Histórias, a lei é feita por vós, pelos que mandam, contra nós. Só com o nosso esforço chegaremos: não cremos que vos retireis de vontade. Mãos à obra rapazes!»

Então entra em cena o parasita de faca e… mantém a ordem (em linguagem de gente pobre: socego para fazer as boas digestões, e impunidade no roubo), apresentando por sua vez sólidas razões de aço… de baioneta, muitas vezes empregada por infelizes trabalhadores que perpetuam e aumentam assim a própria escravidão!

Uns poucos insubmissos — a quem os parasitas chamam criminosos — tratam de convencer os outros da necessidade de se armarem também: e alguns fatigados de esperar, abafando numa atmosfera insalubre, desesperam-se, avançam sozinhos e esmagam um dos mais gordos parasitas, expondo-se às iras furiosas dos outros… e até dos próprios companheiros!

Aí fica a descrição dessa classe de parasitas de duas patas, desses animais inúteis e nocivos que vivem à custa dos outros e impedem que os meios de produção sejam de todos e utilizados em proveito de todos; que não vendo um palmo adiante do nariz, no seu cego e estreito exclusivismo, regulam a produção no seu interesse, deixando na rua, sem trabalho, milhares de homens esfomeados, quando os produtos são demais (!), por causa dos preços, por causa do inútil dinheiro; que para os seus hábitos de ociosos sacos digestivos e de governantes, criam trabalhos prejudiciais, onde se empregam milhares de braços; que, numa palavra, reduzem o trabalho a uma fadiga infernal. Aí fica o retrato dos parasitas que devem ser expropriados dos meios de produção, sendo estes postos à disposição de todos os que trabalham e querem satisfazer as reclamações das suas necessidades.

São nojentos: o hábito de mandar e o seu parasitismo tornou-os degenerados e repugnantes. Mas repugnantes são também aqueles que os suportam, obrigando a gente limpa a suportá-los do mesmo modo. Quando vemos um homem asquerosamente coberto de parasitas — piolhos, pulgas, percevejos, etc. — temos mais nojo dele que dos bichos. A ignorância é a porcaria do proletário, sujo e resignado.

Por isso, temos na boca este grito constante, dirigido ao escravo moderno:

—Lava-te, porco dos diabos! desinfecta-te, porcalhão!


Inclusão: 24/06/2021