Estado e Propriedade

Neno Vasco

Setembro e Outrubro de 1909


Primeira Edição: revista A Sementeira de Lisboa, números 13 e 14 da 1ª série (setembro e outrubro de 1909). Publicado originalmente em O Libertário do Rio de Janeiro, nos números de outubro de 1904.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/estado-e-propriedade/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


I

— Que seria de nós sem Estado, sem todas essas belas instituições governamentais que vão desde o primeiro magistrado do país ao soldado, desde o juiz ao beleguim? Perguntam os espíritos habituados à escravidão, que imaginam não poder dar um passo sem o amparo duma providência.

E no entanto, observando despreocupadamente os factos, descobrimos que o Estado é não somente inútil, mas ainda imensamente nocivo. Conclusão, na verdade, difícil de tirar, porque uma núvem de interessados (interesse, no fundo, mal compreendido) — funcionários, sábios oficiais mais ou menos estipendiados, jornalistas com mais ou menos largo subsídio — e um bando de vítimas duma secular educação autoritária e religiosa, nos cantam diariamente a beleza do Estado, a necessidade de ter e respeitar leis, pela violência impostas a uma multidão de cérebros diferentes.

Trata-se duma lei — «de proteção operária», por exemplo. Inutilidade manifesta! Ou a «reforma», ociosamente registrada num diploma, está já nos factos, foi desejada e conquistada e é sentida e defendida pela energia e consciência dos interessados, e então a lei é supérflua, dispensar-se-ia perfeitamente; ou a reforma não pode ser sustentada «de facto» pelos interessados, e a lei desfaz-se, impotente, contra os interesses opostos, sobretudo se esses interesses são os dos poderosos, dos que têm em suas mãos a riqueza, e por seu intermédio o braço, a vida do operário e a própria força do governo.

Pois com este sacrifício, com esta mentira, o Governo ganha duplamente. Só com mudar as riquezas de lugar, tirando daqui para por ali, ou ainda menos, só com escrever num papel meia dúzia de artigos com os relativos parágrafos, o Estado aumenta o seu prestígio no coração dos que confiam numa providência e pensam ter obtido um grande favor. Depois, esse monstro devorador que nada produz, que tudo estorva, aproveita a ocasião para criar uma nova classe de parasitas, para semear em volta de si interessados na sua conservação, sentando-os à mesa do orçamento — à custa dos governados que trabalham e produzem.

Conservar-se a todo o custo — tal é a lei que rege todo o organismo. E o Estado procura conservar-se primeiro que tudo e por todos os meios. Os governantes, qualquer que seja a sua tabuleta — para a galeria — são solidários, revezam-se — eu hoje, tu amanhã, eu outra vez, tu depois — auxiliam-se na manutenção do queijo comum.

Os seus panegiristas fartamente pagos trombeteiam a todos ventos os seus altos feitos. Cada gesto, cada palavra sua assume em sonoras girândolas as proporções dum rasgo de sapiência, de heroísmo, de génio; cada peido seu repercute, nas paredes da fama, como um tiro de canhão. E no entanto a experiência ensina que são as mais leves mediocridades que, como os líquidos mais leves, ocupam a parte superior.

Para se conservar, o Governo sacrifica tudo ao seu interesse próprio, naturalmente. Primeiro que tudo trata de procurar pontos de apoio e de se defender. Para isso alarga a sua esfera de ação, açambarca iniciativas, encarrega-se de novos serviços, aumenta os impostos, talha fatias a novos afilhados, seus fiéis servidores; e enquanto descontenta um, trata de contentar e armar outro.

Depois mantém um pesado maquinismo de repressão, especialmente para defesa própria. À medida que se sente ameaçado, pelo despertar do espírito de revolta, destina cada vez mais às instituições armadas, polícia especialmente, o dinheiro arrancado ao contribuinte, que é sempre o trabalhador, o único que produz utilidades, embora pareça ser o proprietário. É enorme a soma de energias que os governos consomem nessa sua principal preocupação de defesa. E as instituições criadas ou alargadas procuram do seu lado sustentar-se, justificar a sua existência, o seu «ordenado», inventando mesmo perigos e conspirações, como faz a «polícia secreta», por exemplo.

Um crime de insubordinação é para o Estado mais importante que o mais grave ato anti-social: também para a igreja era outrora mais punível a «heresia» do que o parricídio, perdoado mediante uma esmola. É que a primeira atacava-lhe o poder, e ela, como o Estado, procurava conservar-se.

Qualquer iniciativa, qualquer ato de independência, qualquer inovação, uma ameaça de associação livre ou de resistência é um perigo para o Estado. Ele quer fiscalizar tudo, em tudo assentar a pata, por o selo, com duas vantagens: primeiro vigia e acautela-se: segundo, arranja mais lugares para os compadres, que o apoiam.

Assim, nos «serviços públicos», em todos os seus trabalhos gasta dez, cem mil vezes mais do que se fossem entregues à iniciativa privada, ao livre acordo dos interessados, e faz tudo pessimamente. A burocracia está abarrotada de incompetentes e ociosos; e não há mesmo poder executivo ou parlamento que se atreva a descontentá-los, a não ser dando com uma mão o que tirou com a outra.

O Estado desconfia mesmo da Igreja, que, embora o ajude, contribuindo para o embrutecimento e ignorância populares — as mais firmes colunas de todos os domínios, mantendo no povo a passividade, a obediência, o providencialismo, a esperança no futuro, também trabalha por sua própria conta, procurando predominar; e isso embaraça o Estado, que pretende a suprema fiscalização, a mais direta possível, de toda a vida social. Eis porque ele, adquirindo ainda por cima novo prestígio aos olhos dos anti-clericais legalistas e dos pantomineiros da maçonaria, quer explorar por sua conta a escola e a religião, a sua religião — o Patriotismo, o Legalismo, a Autoridade, a Democracia, e todos os santos da corte governamental.

Mas o que o Estado olha sobretudo com desconfiança é o sábio não oficial, rebelde, o trabalhador independente, o «indivíduo» enfim. Este não existe mesmo para ele: deve sacrificar-se a uma falsa associação que não satisfaz os interesses de todos os pretendidos associados — a Pátria, a Nação, a Sociedade — ou por outra, a uma abstração social por trás da qual se abriga a oligarquia que comanda e rouba.

As conquistas do progresso, como disse Sismondi, «têm sempre origem em baixo, nascem do fundo da sociedade, do pensamento individual, que depois se divulga, se torna opinião, maioria, mas deve sempre encontrar no seu caminho e combater nos poderes constituídos a tradição, o costume, o privilégio e o erro».

A história, cheia de tiranias do Estado, só ou aliado com a Igreja, de todas as instituições autoritárias, as revoluções e lutas do passado e do presente, demonstram claramente que o progresso é impedido por todos os governos. Cada governo pensa naturalmente em conservar consigo as condições históricas que o criaram e sustentam e traz consigo a fatalidade de nova revolução. Não há melhores governos: é só onde há maior soma de iniciativa e de solidariedade, onde o povo sabe usar e defender as suas conquistas positivas, que estas são respeitadas.

E afirma-se que o governo é necessário para manter a ordem! Para manter a desordem e exploração dos proprietários e governantes, isso sim: mas a ordem fundada na solidariedade, na extinção do monopólio, na igualdade de condições, na iniciativa e no livre acordo, não!

Que série de contradições! O sufrágio universal? Mas então é o povo incapaz de se governar, considerado capaz de escolher bem! A ditadura? É a luta desenfreada, a desordem, porque cada um se julga digno dos altos postos!

E quem guarda os governantes? Quem nos garante contra as suas arbitrariedades? Se ninguém, eles são nossos senhores absolutos; se são os governados que os mantêm em respeito, que fazem «cumprir a lei», então não é o governo que mantém a ordem!

E não é. É a sociabilidade adquirida e transmitida através dos séculos, é a solidariedade cada vez mais consciente, é o indivíduo vendo cada vez melhor o seu interesse na associação voluntária, na livre cooperação dos esforços, no respeito mútuo e não na luta entre os homens.

Se há alguma desordem, é produzida e mantida pelo Estado e Propriedade; e se estas instituições existem, devem-no à ignorância, aos hábitos e à preguiça dos oprimidos, mais ainda que à violência.

É por isso que lhes queremos abrir os olhos acusando o estado dos seguintes males:

1.º — É um obstáculo ao progresso, um inimigo das iniciativas, obrigando a consumir, para o vencer, uma grande porção de forças úteis, e sufocando outras;

2.º — Para defender os seus interesses e os da classe que o ampara, para se conservar, desperdiça uma soma enorme de energia social;

3.º — Mantém, pelo simples facto da sua existência, a esperança numa salvação providencial, vinda do alto do governo e adormece assim o espírito de iniciativa;

4.º — Defende o roubo, a exploração capitalista, a Propriedade individual, cujos males diremos noutro artigo.

II

Além da sua própria conservação e engrandecimento, o Governo (ministério, burocracia, parlamento, magistratura, polícia, exército, etc.) defende a «propriedade privada»; e não a propriedade baseada sobre o trabalho, como alguns procuram fazer crer por meio de sofismas, mas a propriedade baseada sobre o roubo — a exploração capitalista. O privilégio económico é garantido em todos os códigos e com todas as armas, desde a astúcia e a mentira à carabina e ao canhão. Assim, o pobre diabo que furta um pão é esmagado sob o pesado maquinismo autoritário, ao passo que a empresa que reparte em grossos dividendos uma parte do que é produzido por operários miseravelmente pagos, o especulador da Bolsa que num minuto e com uma falsa manobra arruina milhares de famílias e mete no bolso milhares de contos, o ilustre autor de importantes desfalques e fraudes, o grande ladrão que não cai na asneira de roubar unicamente um pão, têm a mais franca proteção da lei ou passam sob o olhar benévolo da «justiça», boa matrona que só sabe fornicar com os grandes. Se o patrão, destruindo o tal «livre contrato do trabalho», pode obrigar o operário a vender-lhe o braço por um salário mesquinho, sob pena de fome, a lei não intervém para defender «a propriedade» do operário, assaltada pelo capitalista, intervém pelo contrário para proteger o ladrão, quando os operários, unindo-se, procuram obter, pela solidariedade e com energia, uma parte maior do que produzem, pretendem ser menos roubados.

É o roubo organizado e legalizado, chamado «propriedade particular», que o governo garante. Pode alguém, muito raramente, juntar um pecúlio, uma quantia relativamente importante por meio do trabalho. Mas se deixa de trabalhar, dentro de algum tempo esse pecúlio acaba, consome-se. A terra não produz de por si só; os instrumentos não se movem sozinhos; o dinheiro não se multiplica por força própria. Quando o dono do pecúlio o põe a juros, começa a viver dos «seus rendimentos», torna-se um parasita, vivendo do trabalho alheio: principia então o roubo. E quanto mais rico é mais depressa aumenta a riqueza: quanto mais pobres faz trabalhar e quanto mais mal os paga mais entesoura.

Para ver que o capital monopolizado, a «propriedade particular» atual não é fruto do trabalho próprio, bastaria considerar que há proprietários de terras incultas (que eles não cedem para o cultivo, mesmo porque isso os prejudicaria, fazendo baixar os preços). Foram eles que as produziram?

O «direito de propriedade», apoiado na velhacaria e prepotência duns e na ignorância dos outros, é o poder que tem o proprietário de dispor a seu bel-prazer dos produtos e dos meios de produção; de cultivar ou deixar inculta a terra; de por em movimento ou parar as máquinas; de fazer produzir ou não, quaisquer que sejam as condições dos indivíduos. Populações famintas podem morrer de inanição ao lado de terrenos inúteis para o dono, de celeiros repletos até: o respeito supersticioso da maioria das baionetas dos soldados amparam a «sagrada propriedade», a deusa cujos favores os capitalistas monopolizam.

E em vez de se produzir em proveito exclusivo de alguns, em vista dum preço ou dum lucro, não se poderia produzir em vista das necessidades de todos, de todos, de cada um? É sabido que não faltam terras incultas, sementes, novos e melhores métodos de culturas. Máquinas há, muitas inativas, cada dia param outras, há depósitos delas, e não falta o material para fabricar esses instrumentos que facilitam e abreviam o trabalho. Quanto a braços, sabemos que os há abundantes em busca de trabalho, e as estatísticas confirmam que em toda a parte se acham centenas de milhares de descocupados, que bem desejariam produzir. Inúmeros são igualmente os indivíduos ocupados em serviços inúteis ou nocivos. Há também abundante material textil para o vestuário, pedra, cal, barro e madeira para o abrigo, porque não se empregam todas essas forças inativas, todo esse material desaproveitado?

É que o regimen da propriedade privada e do salário, impedindo o consumo, restringe por isso a produção. O trabalhador, por capital, tem apenas os braços, vê-se obrigado a alugá-los, para poder viver; por um «salário» que, representando só uma parte do que produz, não pode «comprar» o que lhe seria necessário para uma vida normal e equilibrada. Por momentos há uma febre de produção, motivada pela concorrência; mas como os consumidores, embora possam «consumir» mais, não podem comprar, os produtos ficam armazenados. Se os preços baixassem, baixariam os salários, ficaria tudo na mesma, mas os proprietários, sobretudo se temem o descontentamento e a resistência operária, preferem fazer cessar ou moderar a produção. Cresce então o número dos desocupados, os salários diminuem, diminui portanto a possibilidade de consumir, isto é, aumenta a miséria no momento de maior abundância!

De mais os capitalistas pretendendo a elevação dos preços (sem subirem os salários, é claro), ganha com a carestia. Eis porque alguns varrem do mercado certo género de mercadorias, guardando-o e fixando-lhe o preço que desejam; para isso organizam muitas vezes «trusts», companhias de monopólios. Se isso lhes convier, inutilizam parte da produção, queimam produtos, deixam-nos apodrecer nos armazéns ou nos campos — como acaba de dar-se com as uvas em França. Um montão de absurdos!

A miséria assim produzida tem como consequências a ignorância, a superstição, a falta de higiene. O excessivo trabalho e insuficiente reparação de forças trazem o enfraquecimento orgânico, a predisposição para a doença. E isto não é só um mal para quem o sofre diretamente, mas para todos. Num meio ignorante são impossíveis os sábios e os artistas, e se logram existir, são incompreendidos, odiados, embaraçados: a miséria de outros prende-os ao solo com sólidos grilhões. O homem de saúde expõe-se a todas as doenças e epidemias onde a higiene é desconhecida. Quando não se aceita a solidariedade no bem-estar é-se obrigado a aceitá-la no sofrimento.

O mesmo com o crime. Ignoram-se, ou não se podem praticar os mais elementares preceitos de higiene sexual. Os filhos são concebidos, trazidos no ventre, amamentados, educados, nas mais horríveis condições de insalubridade, violência e embrutecimento. Depois, desde que estão assim preparados, o meio social, as necessidades os levarão ao crime. E a autoridade, os juízes, representantes da sociedade (sic), distribuirão punições, não se importando com as suas causas! Não tratando de as remover! E essas penas, longe de emendarem, corrompem. Uma sentença condenatória é o Diploma do criminoso: pode continuar! Tem uma profissão: a sociedade não lhe permite outra. Charlatanismo parecido com o do médico, fiel conservador do estado social, que organiza festas de caridade — a tuberculose. Ao cabo de poucos meses, o feliz tuberculoso curado volta ao meio que produz tantos, às condições anteriores: recai, é claro. Mas a medicina, a beneficência, a glória… e os empregos estão salvos!

E é assim, para defesa da «sagrada propriedade», que se justifica o Estado! Matai o Estado, deixando de pé o monopólio económico: os proprietários, senhores um momento da riqueza toda, reconstituirão o poder político, a violência organizada, para se manterem na sua posse. Do mesmo modo, matai a propriedade particular, mas conservai um governo, e esse criará uma classe interessada na sua conservação, privilegiada e como o poder económico é segura base, uma classe é detentora da riqueza, embora com o pretexto de a administrar. É pelas coisas necessárias que os homens são governados.

Privilégio económico e privilégio político são inseparáveis. Por isso somos socialistas, isto é, queremos abolida a apropriação privada da terra e instrumentos de trabalho, queremos esses meios de produção ao dispor de todos e de cada um: e só assim a propriedade, sendo social, será verdadeiramente individual; e somos anarquistas, isto é, queremos, em vez do Estado, a vida social livremente organizada, entregue à iniciativa individual e à livre associação, ao livre acordo dos interessados.

Vimos os males do governo; podemos resumir deste modo os da propriedade monopolizada:

1.º — Impede a produção em vista das necessidades individuais;

2.º — Produz a miséria: – a ignorância, a porcaria, o aviltamente e o crime;

3.º — Ampara e justifica o governo, conservador nato, inimigo natural da iniciativa do progresso.


Inclusão: 24/06/2021