O primeiro triunfo

Neno Vasco

25 de junho de 1911


Primeira Edição: A Guerra Social (Rio de Janeiro), Nº3, 2 de Agosto de 1911.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/o-primeiro-triunfo/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Os socialistas portugueses conseguiram levar ao parlamento – à Constituinte – o seu primeiro deputado: conseguiram-no, mas sem grande esforço, por uma espécie de bamburrio ou de favor. Saiu-lhes a sorte grande por aproximação…

Somados todos os votos obtidos nos vários círculos onde apresentaram candidatos, o total foi de 3.308 (três mil trezentos e oito). Nenhum candidato foi eleito, nem mesmo pela minoria, com a representação proporcional posta em vigor pela república.

Apesar disso, aquela cifra encheu de contentamento os nossos bons socialistas parlamentares e, no dizer dos seus jornais, causou irritação e desespero à imprensa republicana, que por esse motivo guardara silêncio sobre a votação!

E então parece que foi mesmo de propósito: um dos republicanos eleitos pelo Porto foi pelo governo provisório incompatível com a função legislativa, e deixou assim uma vaga, que a comissão de apuramento declarou tranquilamente pertencer a um candidato socialista…

E eis aí como o governo republicano respondeu com fina ironia às suposições, dando-lhes os prazeres duma primeira vitória fácil e presenteando-os com o que se pode bem chamar «uma entrada de favor» no teatro da representação nacional… Se eles depois não souberem corresponder à gentileza, é porque são dotados de muito mau coração!

A questão é entrar, e o que custa é o primeiro passo. O resto virá de si. E quando se entra assim por tão largo e cómodo acesso, não admira que o caminho depois seja todo atapetado de rosas.

Ademais, os socialistas democráticos portugueses já não estão nos primeiros tempos. Em que se começava a enveredar para o parlamento sob ingénuos ou manhosos pretextos de propaganda ruidosa: os nossos sociais-democratas entram já maduros, e aqueles ilusórios tempos vão longe…

Depois, veio a experiência e disse tanta coisa – que alguns tinham previsto!

«Porque não aproveitar as eleições e o parlamento – ao menos para naquelas gritar à massa eleitoral as nossas reivindicações e clamar neste, à face aterrada dos representantes burgueses, a cólera tempestuosa das nossas revoltas, com larga retumbância pelo mundo?… »

E eis os fogosos propagandistas ante a massa eleitoral. Era uma classe unida por um grande interesse comum? era ao menos uma legião agrupada em torno duma vasta e forte ideia?

Nada disso. Tratava-se dum amálgama discorde de descontentes por motivos diversos e com bem diversos pequenos interesses e fins, de lojistas, taberneiros, pequenos proprietários, empregados, funcionários, operários.

Como falar-lhes? Fazer a crítica da propriedade privada, da pátria, do exército? Falar-lhes de revolução social, de socialização, de expropriação revolucionária? Credo!

Qualquer programa nítido, qualquer afirmação revolucionária dispersaria aquela gente, afugentaria os melhores.

Ali estavam os pequenos burgueses, a maior força eleitoral, pela sua instrução e pela sua relativa independência económica. Era preciso lisonjeá-los, falar-lhes nos seus interesses, esconder em sua honra o mais rubro do programa. São meio patriotas, e as suas aspirações reduzem-se a certas reformas democráticas – tribuntárias, aduaneiras, locais… Prometa-se disso!

Junta-se número com vagas afirmações liberais e ribombantes, sobre as quais todo o mundo está de acordo. E aceitam-se concursos duvidosos, fecham-se os olhos sobre contingentes comprometedores, levam-se a cabo combinações e intrigas, executam-se «manobras»… A questão é entrar: depois…

Depois, era o parlamento. Não já a oficina, entre companheiros, a rua, entre revolucionários, o meio em que se ganha calor e ânimo, sob o incitamento e a vigilância direta de todos, e onde as tentações de suborno são tão grosseiras que só apanham os predispostos, os pequenos ambiciosos e alguns inutilizados pela miséria…

Era um ambiente burguês, requintado, acariciador, traiçoeiro, corrompido, uma assembleia de desesperante incompetência, impotente e de má vontade…

E vieram as manobras escuras, os compromissos e combinações, os escânda-los, os amansamentos; uns recolheram as suas iras, outros desertaram a causa, outros fizeram-se ministros e não foram dos mais doces…

E foi o partido organizado só com o fim eleitoral, gastando nisso rios de dinheiro e de energias e descurando o resto.

E foi o «trabalho» parlamentar, a obra legistlativa, vã e inerte, chamando todas as atenções, concentrando todas as energias, resumindo todas as lutas.

E foi a necessidade de refazer o caminho perdido – proclamando o movimento operário laboriosamente a sua independência, constituindo-se no partido uma facção para lutar, com proveito escasso, pelo remoçamento e revigoramento do socialismo, contra a mania e marasmo eleitorais.

E foi a invasão do partido por um bando de «intelectuais», de profissionais da política, do jornalismo e das profissões liberais, todos tarados de burguesismo nos hábitos e nas ideias, que vieram, não como propagandistas sinceros e desinteressados, mas como aventureiros ambiciosos, buscar, buscar popularidade e precipitar a queda do socialismo eleitoral e parlamentar, dando-lhe o programa dum partido burguês radical…

Radical? que digo eu? Não é preciso tanto! Monarquias e repúblicas fazem à porfia «legislação operária», e até ministros liberais e conservadores são dela corifeus…

Para isso não precisam os socialistas de ir ao parlamento… Assim a Constituinte portuguesa tem 6 dias, e já em duas sessões consecutivas foram apresentados vários projetos e propostas de «proteção» ao operário, na ausência do único deputado socialista…

Lisboa, 25 de junho.[1911]


Inclusão: 24/06/2021