Confiemos na lei!

Neno Vasco

24 de julho de 1911


Primeira Edição: A Guerra Social (Rio de Janeiro), N.º 4, 20 de Agosto de 1911.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/confiemos-na-lei/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Recentemente, uma comissão de operários e mestres da construção civil do Porto apresentou ao governo uma representação relativa aos acidentes no trabalho, descrevendo o longo esforço empregado para obter uma lei de proteção razoável e eficaz.

Há vinte anos que se consomem em demandas e requerimentos. Em 1905 foi finalmente promulgado um decreto regulamentar ou coisa que o valha, mas ficou letra morta; e outro de 1909 descontentou a gregos e troianos. E representações para aqui, e propostas para ali, e promessas para acolá – e tudo como dantes, mesmo quando, proclamada a república e avivadas novas esperanças, recomeçou o mesmo jogo, de tal modo que a comissão ameaça demitir-se e declinar toda a responsabilidade no que possa suceder.

Há vinte anos!

E poderão continuar assim indefinidamente, sobretudo se confiam na nova ordem política de coisas e no grande estadista Fulano que, tendo decretado reformas democráticas simpáticas às classes médias, há-de melhorar certamente – como se fosse a mesma coisa! – a situação do operariado com um «conjunto de leis redentoras» que «assegurem a sua liberdade económica»!

Porque, se entre os políticos republicanos há quem reconheça a necessidade da organização operária e da ação direta, não falta quem veja na simples mudança do regimen político a garantia de aplicação certa de válidas reformas operárias, apesar da demonstração quotidiana de parcialidade favorável aos patrões, dada pelas novas autoridades republicanas, que acabam, por exemplo, de encerrar no Porto a Federação das Associações Operárias e a União Geral dos Trabalhadores.

E quando há monarquias onde se aplicam numerosas reformas, se há organização operária, consciência de classe e… riqueza industrial.

Respondendo a um deputado, disse há dias na Assembleia Constituinte portuguesa o ministro do fomento:

«Aludiu o sr. Ladeira ao trabalho dos menores nas fábricas.

Quanto a esse assunto é mui fácil legislas mas dificílimo de executar.

Por exemplo, é frequente em muitas fábricas declararem os patrões que admitem crianças porque os próprios pais o exigem e, assim, encontramo-nos perante a exploração dos menores pelos próprios pais, e não pelos patrões.»

Falou com cabeça a excelência ilustre. É o próprio operário que tem de tomar consciência dos seus direitos e da sua situação, de conquistar e manter os melhoramentos desejados. Pela propaganda, pela organização, pela ação, é que a classe operária se emancipa a si própria – e que chega a perceber que a lei é coisa nula, e que afinal as reformas não modificam sensivelmente as suas condições gerais, não podendo os produtores dispor dos instrumentos de trabalho, fábricas e máquinas e organizar a produção, não para lucro de poucos, mas para consumo de todos.

No caso citado pelo ministro, o operário inconsciente ignora que, além da infâmia praticada contra a infância, prejudica os seus próprios interesses e os de todos, porque a concorrência das crianças faz baixar os salários. Mas não é certamente o patrão, interessado em tal concorrência, que lhe vai abrir os olhos!

Quantos exemplos mais de obstáculos opostos às reformas pelos próprios beneficiados – por ignorância ou por desunião em face do patrão – se poderiam citar!

E disse o ministro:

«O que é preciso, no que toca a relações entre operários e patrões, é que todos aqueles se compenetrem da necessidade de tornar próspera a indústria em que trabalham e que não têm direito de forçar o industrial a pagar-lhes mais do que eles produzem»

Fala em nome da classe que ele representa, naturalmente. Porque se o operário se põe com essas considerações e espera pacientemente que a indústria prospere, arrebentará de fome antes de chegar ao fim. E se a indústria alcançar a prosperidade e ele, habituado a esperar, permanecer na espetativa – está servido. O patrão enriquece, mas ele continua na mesma, se não se mexe: é o que acontece nos países que atingem rapidamente um grande desenvolvimento industrial, como os Estados Unidos.

Quem não pode arreia. Se o patrão se sente fatigado e impotente, que renuncie à sua função inútil e parasitária e abandone aos trabalhadores o encargo da produção. Se estes, por inconsciência e desorganização, não estiverem aptos a receber a herança, que abra falência, que vá para o diabo – e os operários emigrarão. Cruel necessidade deste absurdo regimen social; mas sempre é melhor isso do que morrer de fome na «querida pátria».

Demais o ministro dissera antes:

«Há ainda a notar, quanto às condições gerais da indústria, que é também vulgar, se não genérico, encontrar da parte dos próprios industriais uma insciência lamentável quanto aos meios de produzir melhor e mais barato; e daí a exploração do operário.»

Pois bem: que os industriais se mexam, se desembaracem, se desembrulhem, aperfeiçoando a técnica, desenvolvendo o maquinismo, para poderem satisfazer as reclamações dos operários – e estes por sua vez, empurrados pela introdução de máquinas, irão exigindo redução de horas, para que não fiquem alguns sem lugar, e irá tudo num crescendo e numa alternação de progressos e conquistas, até ao estoiro final…

E então os nossos operários, fatores de progresso, impulsores da técnica industrial, habituados à luta, aos melhoramentos, à nova indústria – acharão pronta uma boa maquinaria, capaz de bem servir, sem grande esforço humano, a comuna libertada…

Lisboa, 24 de julho.


Inclusão: 24/06/2021