A polícia

Neno Vasco

18 de Janeiro de 1912


Primeira Edição: A Guerra Social número 10 (Rio de Janeiro), 18 de Janeiro de 1912

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2018/11/23/a-policia/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Gustave Hervé, por um simples artigo que escreveu justificando a severa lição aplicada a dois dos selvagens policiais que se distinguiram pelas suas brutalidades no último 1.º de Maio em Paris, foi condenado a dois anos de prisão que, somados aos quatro já cumpridos até meio e aos que lhe valerão outros processos pendentes, sempre por horríveis crimes de imprensa, darão ao valente jornalista revolucionário o direito de asprirar ao título do seu mestre Blanqui, l’Énfermé, apesar das revoluções feitas e das liberdades promulgadas…

Na sua defesa perante o tribunal, Hervé distinguiu entre as funções policiais de repressão política e as que se referem aos atos anti-sociais, aos chamados delitos de direito comum. Foi contra as primeiras que ele escreveu: o que ele reclama é que os agentes de polícia se limitem a prender os malfeitores.

E exclama:

«Nesse ofício de guardas da paz, quem poderia desprezá-los? Eu não, em todo caso, pois como coletivista (autoritário) – de nenhuma maneira libertário, como pensais – sou partidário, na sociedade socialista dos meus sonhos, duma forte autoridade social, e nem amanhã, em república social, nem hoje, em república capitalista, estou resolvido a deixar-nos molestar ou esfaquear pelos elementos mórbidos, os degenerados, os alcoólicos, os sádicos, as escórias sociais que qualquer sociedade, a atual sobretudo, arrasta como uma bala de canhão presa aos pés.»

É estranho, na verdade, que Hervé, em contacto com anarquistas e tendo por eles tantas vezes manifestado a sua simpatia, oponha ainda ao que ele chama a nossa «metafísica» a ingenuidade de erros tão palpáveis!

Como pode, ele que foi professor de história e é propagandista do socialismo, ele que deveria conhecer a natureza de todo o poder político, como pode crer praticável a separação efetiva entre a ação repressiva da autoridade nos crimes comuns e a que ela exerce, ainda com maior afinco e furor, contra os seus próprios inimigos?

Não é qualquer governo instintivamente levado a considerar os seus inimigos políticos, os revolucionários, como os piores bandidos, como os elementos mórbidos, amantes da desordem pela desordem, seres perversos e perturbadores, muito mais nocivos à «sociedade» do que os mesmos culpados de atos anti-sociais?

Todo corpo autoritário organizado, Estado ou Igreja, seja qual for a sua denominação, tende naturalmente, por necessidade de defesa própria, a dar a maior importância aos crimes de heresia política ou religiosa, arrogando-se o pretencioso direito de representar os interesses de todos e de cada um e acobertando-se sob os mais especiosos pretextos de defesa social e garantia de liberdades.

É profunda ingenuidade, portanto, reclamar a extinção desta função essencial da autoridade. Se alguma concessão pudesse ser feita por um governo, reduzir-se-ia a organizar uma polícia política especial – cujo fim muito particular seria sobretudo, como é de facto, promover e cultivar o delito político, inventar «complots» e atentados, para ter ocasião de prestar serviços e justificar a sua existência; mas isso não impediria o governo de aproveitar, se de tal precisasse, a outra polícia comum, como aproveita sempre o exército, embora este seja teoricamente criado para defesa da «pátria» contra o «inimigo exterior».

Não menos ingénua é a crença na necessidade e na eficácia duma autoridade e duma polícia, sobretudo numa sociedade socialista.

Deixemos de parte a presente organzação social em que, sob o ponto de vista da classe burguesa, a polícia é necessária para aplicação de leis forjadas principalmente num intuito de proteção à exploração e domínio exercidos pelos privilegiados.

Mas na sociedade futura, se for verdadeiramente limpa de privilégios?

Organizadas a produção e a distribuição dos produtores-consumidores livremente associados; proporcionando cada grupo produtor a toda a população da comuna o seu trabalho, em troca dos serviços dos outros grupos e sem necessidade de dinheiro; tendo cada um o seu bem-estar assegurado, mediante um esforço breve e variado (o melhor, o verdadeiro repouso está na variação) executado com o poderoso auxílio dos mais perfeitos meios mecânicos, pertencentes à coletividade; onde estaria então a causa da enorme maioria dos crimes? Onde a justificação duma polícia?

Sabem-no todos os socialistas e os modernos criminalistas, é verdade adquirida e comprovada pelas estatísticas: os crimes têm em grande parte por móbil o roubo, e em quase todos entra como predominante o fator económico. Hoje delinque-se quase sempre em virtude do antagonismo de interesses, dos ódios que ele produz, das rivalidades que ele suscita, da ignorância e outros frutos da miséria; e rouba-se também porque há dinheiro e «valores» de fácil apropriação. Quando se assalta uma casa, ou um viandante, e se emprega, para roubar, o punhal, o revólver, ou o veneno, é porque se procura dinheiro ou se farejam jóias e riquezas portáteis, com grande valor comercial, facilmente transformáveis no ouro que proporciona todos os prazeres e abre todas as portas, ou garante a vida por algum tempo, no ócio soberbo dos ricos, considerados e respeitados por todos, como se trabalhassem e fossem seres úteis. E que admira, se essa ociosidade, dada como prémio e honraria, não como opróbio, é por muitos preferida, ao menos secretamente, ao terrível martírio da labuta permanente e escravizada?

Há as «escórias sociais», sem dúvida. Hervé fez notar que são sobretudo abundantes na atual sociedade. Com efeito, os elementos mórbidos, esses mesmos tenderão a diminuir rapidamente numa sociedade em que tudo seja de todos e em que o homem seja um produto são, sãmente gerado e criado. O alcoolismo, a tuberculose e a sífilis são ainda males da miséria e do desequilíbrio social.

Mas admitindo que subsistam longamente todos os degenerados ou viciados que hoje as prisões, em vez de curar, ainda corrompem mais, justifica-se por causa deles deles a existência duma corporação armada, encargo pesado para todos e ameaça gravíssima para a liberdade de cada um? Os guardas garantem-nos contra os criminosos; mas quem nos garante, a nós, contra os guardas? Quem nos põe ao abrigo dos seus abusos, se são eles que dispõem da força?

E protegem-nos eles eficazmente, verdadeiramente, contra os ataques dos desequilibrados? Além de tudo, há nisso até uma simples impossibilidade material. Nas atuais cidades amontoadas, concentradas, produto infernal da presente organização industrial e comercial, nessas mesmas seria preciso fazer polícia meio mundo para defender o outro meio. Os crimes repetem-se, mesmo nas barbas da autoridade; e em compensação há províncias, regiões inteiras onde não circula um guarda, e nem por isso os delitos são mais frequentes. A vida social e a segurança dos indivíduos repousam sobre bases mais sólidas e profundas, felizmente!

A sociedade livre e igualitária do futuro não precisará de polícia. Se tiver de se defender contra qualquer inimigo, e se para isso precisar de armar-se, todos sem distinção tomarão armas e se incumbirão da defesa. E as funções de vigilância ou sentinela, se forem julgadas indispensáveis, caberão a todos e todos as desempenharão por turnos.


Inclusão: 24/06/2021