Errico Malatesta

Neno Vasco

Junho e Julho de 1912


Primeira Edição: dois artigos publicados na revista A Sementeira de Lisboa (números 44 e 45 da 1.ª série, respetivamente junho e julho de 1912). O primeiro, «ERRICO MALATESTA», é parte de uma série de apresentações de importantes figuras do anarquismo e do movimento operário que A Sementeira estava a publicar; o segundo, com o título «ERRICO MALATESTA» e o subtítulo «AS SUAS IDEIAS», é uma continuação/conclusão do primeiro. Ambos foram publicados sem assinatura, sendo evidente a autoria de Neno Vasco, que em todo caso é corroborada, por exemblo, pelo investigador J. Freire aqui e aqui .

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/errico-malatesta/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


[I]

Quando, há um ano, a propósito duma grave doença de Malatesta, quisemos publicar aqui uma notícia biográfica e o retrato do nosso querido camarada, pouco e mal conhecido entre nós, recoremos a vários amigos do estrangeiro. E foi de um deles que um companheiro nosso recebeu a seguinte carta:

Bolonha, 10 de junho de 1911.

Caro camarada,

Lamento não poder satisfazer o teu desejo. Amo Malatesta como a um pai, e admiro-o como um dos homens que mais honram os nossos tempos e o nosso movimento; mas não tenho a sua fotografia nem possuo dados biográficos sobre ele. Sei que é natural de Santa Maria Capua Vetere (Nápoles), que hoje deve ter cerca de 65 anos, que foi um dos discípulos prediletos de Bakunin, que a ele se deve em grande parte a difusão das nossas ideias na Itália, na Espanha e na República Arguentina, que tomou parte nos movimentos insurrecionais italianos das Apúlias em 1874 e do Molise em 1877, que esteve na prisão e no «domicilio coatto» uma infinidade de vezes, em suma o que sabem todos os nossos camaradas que mesmo superficialmente conheçam a história do nosso movimento. Mas não sei muito mais.

É difícil escrever uma biografia de Malatesta, porque a sua modéstia superlativa nunca lhe permitiu escrever ou dizer muito sobre o que pessoalmente lhe diz respeito. Tenho por ele a admiração desconsolada que se pode ter por um herói e por um engenho, que se revelou só a poucos íntimos, e cujo valor real o mundo ignorará sempre.

Teria podido enriquecer a nossa literatura de obras geniais, dar das nossas ideias uma interpretação mesmo superior à que lhes foi dada pelos melhores dos nossos; mas preferiu sempre a ação à teoria, e, como Bakunin, pela ação descurou a elaboração para o público das nossas ideias. Basta falar um dia com ele para perceber que tesouro de ideias originais e belas lhe enriquece a mente.

Se Pedro Gori foi o poeta e o porta-bandeira da nossa ideia em Itália, Errico Malatesta é o seu pensador e agitador ao mesmo tempo. Exerce uma enorma influência sobre quem o avizinha, não só intelectual mas ainda moral, porque há nele também um tesouro de bondade, dessa bondade superior que pudémos encontrar nos nosso Eliseu Reclus e Luísa Michel.

Não sei dizer-te mais: a notícia última da sua doença aterrou-me, e espero que vencerá as insídias da morte e viverá. Se morresse, sinto que morreria uma grande parte de nós e se extinguiria o eco da mais alta consciência anárquica da Itália. Oxalá que viva e que as necessidades da vida lhe permitam dar ainda à nossa ideia alguma coisa da sua alma e da sua inteligência! É o melhor auspício que eu possa fazer nós mesmos e à sorte nosso movimento.

Crê-me fraternalmente teu camarada. – Luís Fabbri.

Esta carta é significativa, vindo de um dos melhores amigo e discípulos de Malatesta. Agora que chegou de novo a ocasião de falar desta alta e nobre figura do anarquismo, vítima duma clamorosa injustiça da «justiça» inglesa e da abjeta polícia secreta internacional, fomos um pouco mais felizes, pois pudemos obter da amabilidade de La Bataille Syndicaliste um retrato que julgamos ser da juventude do nosso biografado.

Quanto aos dados biográficos, pouco podemos ajuntar à carta de Fabbri, e esse pouco sujeito a caução e tirado em grande parte dum livro que combate o anarquismo, mas cujo autor, Pedro Latouche, presta calorosa homenagem ao valor moral e intelectual do nosso camarada.

Errico Malatesta nasceu em 1853: tem portanto 59 anos. Estudante de medicina, aos 18 anos já combatia nas fileiras da grande Internacional, deixando logo a sua carreira e a sua situação de filho de família rica para se aproximar do povo, viver a vida dele, trabalhando como mecânico.

Teve então uma larga e movimentada vida de propaganda e ação, entrando em insurreições. Em 1884 estava no exílio, para escapar a uma longa pena de prisão a que fora condenado, quando estalou uma grande epidemia de cólera em Nápoles. Não hesitou: correu a prestar o seu concurso, de tal modo que o governo suspendeu a execução da sentença e concedeu-lhe, por mérito excepcional, o livre exercício da medicina.

Passada a epidemia, foi à Argentina, onde desenvolveu uma grande atividade, e já em 87 assistia em Londres a um Congresso Internacional, sendo pouco depois condenado a prisão em Florença. Em 89 redigia, primeiro em Niza, depois em Londres, o semanário L’Associazione. O governo espanhol acusou-o, em 93, de ter chefiado a revolta camponesa de Xerez, condenando-o à morte, à revelia felizmente.

Refugiado geralmente em Londres, Malatesta fazia repetidas visitas à Itália. Em 1897 foi redigir em Ancona L’Agitazione, cuja coleção forma um dos mais brilhantes repositórios das ideias anarquistas. Acusado de instigador de motins contra a carestia dos géneros, foi com sete camaradas condenado a 6 meses de prisão, apesar das defesas de notáveis advogados, apesar de sua eloquente e notabilíssima autodefesa, apesar da forte pressão da opinião pública.

Deportado para a ilha de Lampedusa, realizou num barco uma arrojada e retumbante evasão, passando a Tunis, depois a Malta e daqui a Londres. Em 1899 redigiu em Patterson, Estados Unidos, La Questione Sociale, sendo La Rivoluzione Sociale o último jornal que redigiu em Londres.

Os congressos a que assistiu, as conferências e controvérsias que efetuou não têm conta. Malatesta é um polemista incomparável e um «orador poderoso» (Latouche), sem flores de retórica, mas com uma grande elevação de ideias, uma argumentação rica e cerrada, ordenada e lógica, onde não há uma frase escusada, nem inúteis divagações. Algumas das suas polémicas, escritas ou orais, ficaram célebres.

Como escritor, todos lhe conhecem e admiram essas pequenas obras primas de propaganda – Entre Camponeses e a Anarquia, traduzidas em todas as línguas, até em arménio e japonês. Fabbri explica na sua carta o motivo por que Malatesta não escreveu ainda grossos volumes; mas estes, e dos melhores, seriam desde já obtidos, reunindo os seus escritos profusamente espalhados por jornais e revistas. Esperemos que alguém o faça e que ele próprio nos dê a obra que é capaz de produzir.

Que diremos do seu valor moral? Que, herdeiro de extensas terras, as deixa ao trabalho dos campónios? Que, podendo viver da sua pena e da sua cultura, prefere a vida de operário manual? Que todos quantos o conhecem, camaradas e adversários, o estimam e admiram?

A prova é o facto recente. Um miserável espião italiano, toscamente disfarçado em anarquista, vendo-o fustigar a guerra italo-turca e a agressão italiana, acusou-o de ser… espia turco! Malatesta, aproveitando a calúnia grotesca, disse em boletim ao asqueroso malandrim: «Você, suspeito de ser agente da polícia italiana, sobretudo porque não trabalha e gasta à larga, acusa-me de espionagem. Pois bem: em reunião pública, exponhamos ambos a nossa vida, expliquemos ambos a proveniência dos nossos recursos. Você até me deve agradecer este meio de se defender de suspeitas.» Nem um insulto, nem uma acusação formal!

Pois – coisa inacreditável, se não fosse um facto – Malatesta por este documento foi chamado aos tribunais, e as polícia obteve contra ele uma condenação a 3 meses de hard labour e o pedido judicial de expulsão!

Este absurdo levantou o protesto até de jornais burgueses. Na Inglaterra, França e outros países sucedem-se os comícios. Constituiu-se um comité, formado por pessoas de várias opiniões, para promover a agitação e angariar recursos para a defesa. Não protestam só anarquistas e socialistas: Malatesta tem amigos e admiradores em todos os campos.

Resta-nos falar das ideias de Malatesta, e havemos de falar, porque foram um tanto traídas entre nós pelas traduções e porque será este o único meio de alcançarmos do nosso camarada o perdão para estas palavras de amizade. Como Fabbri, temos por Malatesta um amor filial. Não se é parente só pelo sangue: quem traça estas linhas deve-lhe uma parte da sua vida intelectual. Portanto, nestas palavras, vai a expressão dessa amizade, mas também o desejo de apontar o belo exemplo de vida de Malatesta e o de aproveitar o ensejo para falar das ideias que lhe são queridas, como o são a nós.

Mas como artigo vai longo, será isso tarefa para o próximo número.


[II]

AS SUAS IDEIAS

Prometemos falar das ideias de Malatesta, e vamos fazê-lo muito resumidamente, tocando apenas nos pontos em que elas divergem da corrente comunista libertária dominante em França e que por isso foram alterados pelos tradutores, sobretudo no Entre Camponeses.(1)

Malatesta prefere o comunismo, como mais equitativo e de mais fácil e seguro funcionamento que o coletivismo, mas não faz dele a condição sine qua non da revolução, cujas bases essenciais são a socialização dos meios de produzir e a supressão de todas as instituições governamentais. Em 1899, repetia ele na Questione Sociale, de Paterson: «No princípio do movimento éramos todos coletivistas, tornando-nos depois comunistas muitos de nós (quase todos na Itália e em França); finalmente as diferenças foram-se atenuando e quase desapareceram ante o conceito da livre organizaçao e da livre experimentação social, conceito essencial ao programa anarquista.» Adota, pois, sempre o apelativo de socialista-anarquista.

Passemos a outro ponto. Nos meios comunistas de França, circulou a ideia de ser desde já a produção superior às necessidades do consumo. Malatesta manifestou sempre opinião contrária: em regime capitalista, naturalmente (pois o proprietário ganha com a carestia e é ele que regula a produção), as coisas produzidas não bastam para o consumo real da população. As chamadas crises não indicam uma sobreprodução real, mas um subconsumo: há crise porque a grande massa popular não tem meios, não tem possibilidade de consumir segundo as suas necessidades, restringidas pelo salário. Mas não faltam os meios (terras, máquinas, matérias primas, braços) de produzir com abundância. Enquanto subsistir o monopólio dos meios de produção, a limitação dos nascimentos não resolve o problema, como se vê nas regiões mais ricas e menos habitadas. E só quando tudo for de todos e para todos é que os homens poderão e saberão restringir a procriação, se isso depois for necessário.

Uma consequência prática desta insufiência atual da produção é que, em greve geral revolucionária, será preciso regressar quanto antes ao trabalho em proveito de todos, tomando logo posse especialmente dos meios de aprovisionamento e reorganizando a produção, sob pena de provocar uma reação das massas. Daí a necessidade de agir rapidamente e de estar disposto e preparado para a insurreição.

Malatesta foi sempre o mais estrénuo defensor da organização, princípio essencial à sociedade e ao anarquismo. E não se limita a combater os individualistas e anti-organizadores, cujas doutrias ele considera, além de falsíssimas, extremamente danosas e dissolventes, e dos quais entende que o socialismo anarquista deve energicamente separar-se (quando não se trata de uma mera questão de palavras); combate também o que ele chama o erro do harmonismo, resultado de infiltrações individualistas no comunismo, consistindo em confiar na harmonia natural e espontânea, no livre jogo da natureza. (Ver os n.os 23 e 24 da Sementeira.).

Quanto à organização operária, Malatesta, continuando e clarificando as ideias de Bakunin e da Internacional federalista, propagou sempre as ideias fundamentais do que se chama hoje o sindicalismo, muitas vezes até com as mesmas expressões, que se supõem novas (como ação direta). Em 1897, em L’Agitazione, a propósito do Congresso operário de Tolosa, escrevia Malatesta, repisando velhas ideias suas: «Não queremos impor o nosso programa às massas ainda não convencidas, e ainda menos tomar uma aparência de força fazendo votar pelos operários, por meio de surpresas e de manobras mais ou menos hábeis, declarações de princípios que os operários não aceitam ainda. Não queremos que o nosso partido se susbstitua à vida popular; mas trabalhamos para que essa vida seja ampla, consciente, ardente, e para que o nosso partido possa exercer no meio dela a parte de influência que lhe vier naturalmente da atividade e da inteligência que souber por na sua propaganda e em toda a sua ação de partido. E uma das principais razões das nossas mais recentes desavenças com os socialistas democráticos foi a pretensão que eles têm de querer, contra a nossa reclamação de ampla liberdade para todos e de solidariedade na luta económica, açambarcar o movimento operário, impor-lhe o credo socialista-democrático e empregá-lo para os seus fins eleitorais.» Em suma, independência da organização operária ante os partidos; neutralidade ante a ação eleitoral; liverdade para todos de ideias e de propaganda. Ponto de encontro de todos: a luta contra os patrões e seus apoios , com os meios que não próprios da sociedade de resistência (sindicato) e dependem da qualidade de produtor salariado (greve, boicotagem, sabotagem, etc.).

O sindicato teve sempre para Malatesta (como para os modernos sindicalistas) não só o papel de associação de resistência ao patrão, mas o de núcleo reorganizador da nova sociedade socialista, na revolução, pois a vida social não sofre interrupções (ver o artigo publicado no n.º 35 da Sementeira, traduzido de L’Agitazione, de Ancona, nº de 18 de junho de 1897). E como funcionará a sociedade futura? Por meio de sindicatos, de associações produtoras. «Penso que os encarregados dos serviços públicos serão as associações dos que trabalham em cada serviço; que estas associações olharão por certo ao mesmo tempo ao bem estar dos seus membros e à comodidade do público, e que serão impossibilitadas de prevaricar pela fiscalização da opinião pública, pelos laços de dependência recíproca com as outras associações e pelo direito de todos a entrar em qualquer das associações e a fazer uso dos meios de produção que elas empreguem.» (L’Agitazione, 2 de dezembro de 1897).

Em vários pontos, porém, divergem as ideias de Malatesta de uma certa corrente sindicalista e um dos principais e a sua rejeição do automatismo revolucionário dos sindicatos. O sindicato é bom terreno revolucionário, é uma excelente escola de luta de classe e de solidariedade operária; mas entre os operários há também concorrência e antagonismos, por causa do salariato. O movimento de reformas tende por um lado a ser tomado como um fim, a legalizar-se; a organização operária pode emburguesar-se, tornar-se contralizada e autoritária. A história do trade-unionismo inglês e norte-americano e do do corporativismo alemão é alucidativa.

O terreno precisa, pois, de semente, a massa necessita de fermento. É o papel dos anarquistas nos sindicatos.

Mais. «A organização operária basta-se a si própria», se isso quer dizer que deve ser autónoma, independente dos partidos; mas ao lado dela é necessário um partido revolucionário, que acolha todas as consciências e energias vindas de qualquer procedência; que desenvolva com toda a franqueza a propaganda e a ação que os anarquistas (sobretudo se são funcionários sindicais) não podem exercer dentro dos sindicatos; que empenhe vigorosamente a luta política, isto é, a luta contra todas as instituições governamentais. Há mesmo lugar para os grupos que, na ocasião oportuna, se deverão encarregar das tarefas que não competem aos sindicatos, nem aos partidos abertos, nem às massas.

Tais são, imperfeita e resumidamente expostos, alguns dos pontos principais das ideias que Malatesta tem tão lucidamente propagado e que aliás serão aqui desenvolvidos em artigos seus, que traduziremos. Agora parece acentuar-se em França um movimento para essas ideias nos meios anarquistas; mas se ele se tivesse produzido há mais tempo, antes deste momento de atividade e de crise, não assistiríamos aos desvios, ao confusionismo e às hesitações que transparecem das tentativas e das discussões ali em curso.


Notas de rodapé:

(1) Está para breve uma nova edição conforme o original italiano. [Nota do autor] (retornar ao texto)

Inclusão: 24/06/2021