O valor da ação operária

Neno Vasco

Setembro e Outubro 1912


Primeira Edição: A Guerra Social (periódico anarquista do Rio de Janeiro), números 28, 29 e 30 (Setembro e Outubro 1912)

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/o-valor-da-acao-operaria/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


I

A burguesia, isto é, a classe das diferentes espécies de capitalistas, proprietários, patrões, gerentes e políticos, dispondo do solo e de todos os meios de produzir, governa e dirige os homens e a produção. Ela escraviza o assalariado, privando-o dos instrumentos de trabalho, reduzindo-o aos seus braços nus, constrangendo-o assim a alugá-los em troca dum salário insuficiente para o consumo necessário e para a reserva. Ela domina e maneja o seu instrumento político de repressão e espoliação, o Estado. Ela regula a produção segundo os seus próprios interesses e caprichos, não conforme as necessidades verdadeiras de todos os consumidores. Ela fixa os salários dos trabalhadores e os preços das coisas.

Deste modo, qualquer reforma que não toque nas engrenagens essenciais do sistema capitalista é impotente para melhorar sensível e duradouramente a situação dos trabalhadores; e se o proletariado se contentasse com essas reformas superficiais, não faria senão girar eternamente num círculo sem saída, começar e recomeçar mil vezes os mesmos esforços e esperanças. A burguesia tem sempre meios – o aumento dos preços, das rendas e dos impostos, o desenvolvimento da maquinaria, sua propriedade exclusiva, etc. – para neutralizar e destruir as pequenas vantagens materiais conquistadas pelos operários, tirando com uma mão o que com a outra foi obrigado a ceder.

Tratando-se de reformas legais, nem sequer esse trabalho terá, geralmente: bastar-lhe-á não as aplicar, na parte em que possam incomodá-la ou prejudicá-la. Para as iludir e fazer esquecer pelos próprios interessados, tem um poder ecónomico e político mais do que suficiente, sobretudo onde não existe uma resistência popular solidária e organizada, onde não há o exercício vigilante e permanente da ação direta proletaria. Demais, quando para acalmar descontentamentos e revoltas a burguesia concede uma «lei operária», é principalmente para, sob a capa de ilusórias e fugitivas melhorias, fazer aceitar a consagração de interesses seus, desenvolver a fiscalização do Estado, aumentar o número de funcionários e de impostos (que tudo sai do trabalho), travar e dirigir a ação operária independente. Em cada «lei operária» há, sob a magra isca, um sólido anzol de aço.

Infinitamente superiores às reformas legais são os melhoramentos conquistados pela ação direta do operariado – superiores sobretudo sob o ponto de vista moral. Superioridade tanto maior, quanto mais espontaneamente são concedidas as leis pseudo-operárias, presentes gregos de que os troianos devem sempre desconfiar.

Mas essas mesmas reformas, obtidas pela ação direta da classe operária, são incapazes de alterar eficazmente as condições económicas e políticas da sociedade. Admitindo embora a luta diária sob todos os seus aspetos – greves de produtores para elevação de salários e redução de horas de labuta, boicote, sabotagem, ação dos consumidores e inquilinos contra a alta de preços e de aluguéis, diminuição voluntária dos nascimentos, emigração, etc. – todos os resultados obtidos são sempre escassos, frágeis e precários dentro da sociedade burguesa. As suas crises periódicas, os seus craques financeiros, a emigração dos capitais em busca de salários mais baixos, enfim, o seu próprio funcionamento normal torna insubsistentes quaisquer tentativas de sólidas reformas económicas.

Demais, essas fórmulas não podem ser tais que não deixem ganho aos detentores da riqueza social, e modo de viver ao exército imenso dos parasitas da produção. Os capitalistas, os governantes, os defensores diplomados ou armados do privilégio burguês, o exército incontável dos intermediários, a burocracia, os executores de tarefas inúteis ou nocivas, tudo isso vive à custa do trabalho útil, às vezes com o maior esplendor. E o dano capital do sistema vigente é a absoluta incapacidade e insuficiência do seu modo de produção, apesar dos poderosos meios já existentes, apesar das forças e riquezas inertes.

Só a revolução social, que suprima a propriedade privada e o Estado, nos poderá dar a solução eficaz. É preciso expropriar a impotente burguesia dos meios de produção, fruto do trabalho indestrinçável das gerações passadas e presentes. É preciso pôr esses meios de produzir à disposição de todos. É preciso dar a todos a liberdade de consumo, organizando os próprios trabalhadores a produção e a troca segundo as suas necessidades reais, não para lucro de poucos. É preciso que ninguém tenha meios de explorar e dominar os outros, de viver do trabalho útil dos outros. É preciso abolir o dinheiro, que permite a acumulação e o roubo.

Tais são as verdades que o socialismo vem demonstrando e propagando há longos anos.

Mas deverá concluir-se daí que são inteiramente vãs e desdenháveis quaisquer reformas parciais e transitórias, estéreis de todos os esforços dia a dia empregados pelo proletariado, essa ação constante traduzida principalmente em greves?

Vejamos.

II

Os socialistas democráticos que, visando à conquista dos poderes públicos para transformar por meio deles a sociedade, encarreiraram cada vez mais, apesar de seu antiparlamentarismo, do começo, pela via burguesa do parlamentarismo, era natrural que contrariassem o exercício diário da ação de classe do proletariado.

Os operários não precisavam de agir diretamente; os seus representantes tomariam conta dos seus interesses. Votar bem era o suficiente. Do mesmo modo, depois de conquistados os poderes públicos, de cima é que seria organizada a sociedade, de cima é que viriam as medidas salvadoras.

Assim, os operários não precisavam de se habituar à ação. Quando muito, deviam agir muito circunspetamente, muito disciplinadamente, sob a chefia dos seus pastores, e sobretudo para reforçar a obra destes, dar-lhes força e prestígio. Nada de comprometer a ação legal dos deputados, e sobretudo a sua… eleição. A greve era, afinal, uma arma de dois gumes, que feria o manejador e o inimigo, ao contrário da arma eleitoral e parlamentar… que não tinha gume algum e não feria quem quer que fosse.

Mas, se era natural que assim falassem e procedessem os socialistas democráticos, pondo de acordo os seus métodos com o seu escopo, para os anarquistas, que não confiam na Providência-Estado, que não querem libertar o povo trabalhador mas que ele próprio se emancipe, que pretendem que os produtores organizem diretamente a produção, que a vida social seja obra direta de todos, para os anarquistas a questão era outra, bem diferente o método a seguir.

Infelizmente, após a guerra franco-prussiana e a derrota da Comuna de Paris quando uma onda reacionária invadiu a Europa, após sobretudo a dissolução da Internacional e em face do caráter refratário e pesado dos meios operários e suas organizações, os anarquistas apartam-se em grande parte da massa proletária e da sua vida de cada dia, encerrando-se na torre de marfim da ideia.

E, se é certo não terem muitos perdido a perceção clara da realidade, nem quebrado a continuidade teórica do socialismo anarquista, tal como nos viera de Bakunin e da Federação Jurassiana, sistematização e interpretação das necessidades populares, também é verdade que começaram a formar-se as capelinhas doutrinais, onde se pratica uma espécie de masturbação intelectual e se prega aos convertidos uma espécie de teologia e de misticismo contemplativo.

Fabricaram-se silogismos até ao infinito. Nasceram as discussões abstratas sobre os mais miúdos pormenores da doutrina, como em Bizâncio. Acharam-se, em problemas secundários e derivados, sucedâneos para propaganda e ação principais do socialismo anarquista. Magnificou-se, como Tolstoi, como todos os reformadores religiosos, o poder do verbo, a eficiência da pura educação. Desprezou-se a organização das massas, a vida das massas, o movimento operário; e chegou-se a fazer sobre as greves a mesma explicável crítica social democrática e… burguesa. Em muitos, o anarquismo, quase desprovido da sua segura base essencial, o fim socialista, aproximava-se mais ou menos do liberalismo individualista da burguesia.

Em suma, como o gigante Ateneu da fábula, que perdia a sua força ao perder contacto com a mãe-terra, o anarquismo, perdendo contacto com as massas definhava e degenerava.

Apareceram, pois, anarquistas que, apartados do povo, se limitaram a uma propaganda teórica sem alcance e sem presa e a exercer, de fora, uma crítica acerba e enervadora da ação proletária, que mais suspeitos e insulados os tornava.

Mas havia ainda outros revolucionários que, embora com uma conceção menos infantil dos métodos de ação, embora partidários da organização operária, achavam que se deviam gastar todos os esforços em preparar a greve geral expropriadora e a revolução social, desdenhando as impotentes greves parciais e as fatigantes escaramuças de cada dia! Como se fosse possível organizar e educar as massas, atingi-las pela propaganda, preparar aquela mesma revolução sem a ação direta e contínua dos trabalhadores pelos fins imediatos, sem as miúdas escaramuças!

O renascimento da ação económica de tendência revolucionária e autonomista e a entrada dos anarquistas, que não tinham perdido a noção do método, nos sindicatos profissionais, vieram porém reatar a límpida tradição socialista-anárquica, restituir ao gigante insulado a sua bela virilidade juvenil, reduzir a justas proporções a crítica feita e selecionar o trabalho mental elaborado, aproveitando-lhe os progressos e eliminando as excrecências e infiltrações estranhas.

E ficou de novo assente o valor da ação operária quotidiana, como procurarei mostrar.

III

Embora insuficientes e precários, os melhoramentos dia a dia conquistados e mantidos pelo exercício contínuo da ação direta, não são, mesmo sob o ponto de vista económico, inteiramente nulos e para desprezar. Mesmo em regimen capitalista, a situação do trabalhador oscila dentro de certos limites: o máximo, determinado pelo ponto em que deixaria de haver lucro para o proprietário, isto é, pelos interesses e pela força da classe burguesa; e o mínimo, determinado pelo ponto em que o proletário já não poderia trabalhar nem viver, isto é, pelo estalão de vida e pela resistência da classe trabalhadora.

Se o trabalhador se adapta a viver mal e com pouco, se não resiste à exploração patronal, é reduzido à condição mais miserável, a ponto de perder muitas vezes a vontade e a energia de se revoltar; se, porém, não pode sujeitar-se à situação do bruto, se tem necessidades de civilizado e se para as satisfazer resiste e organiza a resistência, promovendo ao mesmo tempo o aumento de produção pelo aumento de consumo, é possível que o patrão recupere por um lado o que por outro perde, mas isso não é sempre imediato (sobretudo por causa da concorrência interpatronal), e em todo caso o operário eleva o seu estalão de vida, adquire hábitos que não quererá perder e que defenderá com tanto mais energia e consciência, quanto mais se tiver acostumado à luta contra o explorador e à solidariedade com os explorados e quanto mais nessa ginástica e nessa experiência tiver aprendido a conhecer a causa dos seus males.

Basta notar a diferença, não apenas de salário (pois os salários podem ser diferentes, mas igual o seu poder de compra), mas também de condição material, moral e intelectual, entre os operários do mesmo ofício de diversas regiões e entre os de diversos ofícios da mesma região; basta notar como a ignorância, a miséria, a desorganização e a apatia são inseparáveis e proporcionais entre si, para ver que a situação do trabalhador não é sempre a mesma, que ela é mutável dentro dos limites do capitalismo e que nessa mudança influi como importante fator a resistência operária, tanto mais eficaz quanto mais coletiva e organizada, em vista da impotência da ação individual, insulada e dispersa. Nos países de imigração cosmopolita, vemos trabalhadores de certa procedência, habituados a comer e vestir miseravelmente e a amontoar-se em pocilgas insalubres, oferecerem-se mediante condições que nem o próprio patrão ousa propôr; e o operário acostumado a uma alimentação mais humana e substancial, a maior asseio e conforto no vestuário e na habitação, em face dessa concorrência, ou se rebaixa, aceitando o mesmo estalão de vida, vencido pelo número, ou abandona a região, ou ainda, se encontra apoio, trata de arrastar à resistência a massa aviltada e de levá-la a maiores exigências e a melhor vida.

A estatística das greves, dando-nos apenas a quantidade, não a qualidade nem os efeitos, é uma indicação incerta e enganadora. Assim, das 1.443 greves que houve em França em 1911, terminaram 167 pela vitória total, 563 por um triunfo parcial e 613 por uma derrota. Mas como averiguar, ante esses algarismos, se uma vitória parcial não foi no fundo completa, sabido que os grevistas em geral pedem mais que o que tencionam obter? Como verificar que uma derrota, registrada como tal, não foi de facto um triunfo, sabido que patrões se empenham em vencer para manter sobretudo o prestígio patronal, mas cedem depois disfarçadamente para evitar a renovação da luta? E como saber se uma vitória não equivaleu a uma derrota, ou foi pior do que ela, sob o ponte de vista moral, pelo espírito com que foi conduzida, pelos métodos empregados e pelas ideias que deixou nos operários?

Em todo caso, a estatística mostra-nos que, conforme os métodos de ação, a percentagem das vitórias, como no exemplo acima, pode ser superior à das derrotas. Quando, aliás, as greves fossem todas malogradas, nem por isso estaria provada a sua inutilidade, porque às greves sucede como às insurreições: mesmo vencidas produzem efeitos salutares, e o maior mal é a inação. Mas a estatística é sobretudo expressiva mostrando-nos que cresce a proporção das greves de solidariedade, e que a ação operária vai encarreirando mais para a conquista das reformas mais dignas e duradouras, como são a redução de horas de trabalho, o melhoramento da higiene nas fábricas, a diminuição da autoridade patronal ou sub-patronal, o respeito da dignidade do trabalhador, etc.

Um ponto importante a considerar nesta questão é que o aumento do custo da vida, em vez de ser consequência das reclamações operárias, é pelo contrário determinante delas. O custo de vida sobre principalmente pelo jogo das instituições capitalistas: o aumento do parasitismo, da especulação e do açambarcamento, a formação e desenvolvimento dos trusts, etc.; e o movimento operário de resistência, como por exemplo nos Estados Unidos ficou demonstrado pelos números, não faz mais do que seguir, de bastante longe, essa ascensão. A ação operária é, na verdade, de resistência, de defesa; o proletariado vê-se constrangido a agir e sem demora. Sobem os preços, e tem de reclamar melhor paga; inventam-se e aperfeiçoam-se máquinas, e urge que exija menos horas de labuta. Sem essa luta forçada, seria reduzido à última expressão da miséria e do aviltamento; e os progressos da indústria e da mecânica, em lugar de lhe trazerem uma participação, escassa embora, nas vantagens da civilização, seriam para ele um mal crescente, pois que essas vantagens não se lhe aplicariam automaticamente. Os patrões, à medida que enriquecem, não fazem concessões espontâneas: procuram cada vez ganhar mais, reduzir os gastos, aproveitar cada vez mais o braço de ferro para dispensar o braço humano, e só cedem ante o medo da revolta e a resistência que encontram.

Certamente, a situação geral dos trabalhadores não é profunda nem estavelmente transformada com os melhoramentos, e o regimen capitalista continua a ser este absurdo regimen que restringe a produção para dar proventos a poucos em vez de a aumentar para dar pão, vestuário e alojamento a todos. Mas entretanto a revolução social não se faz; é preciso prepará-la. Ora a massa, não sendo sacudida primeiramente pela ação com fins imediatos, não aprendendo nessa ação, de grande valor moral e educativo, a lutar, a conhecer e encarar de frente os exploradores e seus sustentáculos, a apertar os laços de solidariedade entre oprimidos, a discutir as questões de comum interesse, não só não estará organizada e preparada para a revolução social e para a reorganização da vida social, mas não ouvirá sequer a propaganda mais simples nesse sentido e muito menos a que lhe servem certos adversários da organização de classe e das greves, toda transcendente e própria para intelectuais ou semi-intelectuais, que a discutem tranquilamente ao café, e para os quase indiferentes que mal a lêem e a desprezam ao primeiro abalo da sociedade.

E esse é o principal valor da ação operária, sobretudo da ação coletiva, sobretudo da greve, que chama todos a agir, que desperta em todos o interesse direto pela luta, que suscita as mais belas iniciativas. Assim como a queima constante de castelos feudais e arquivos preparou, realizou, caracterizou a revolução francesa, a ação económica contínua do operariado prepara e caracteriza a revolução social; e ao contrário das reformas legais ou de concessão patronal aparentemente espontânea, desenvolve-se a si mesma e faz fermentar a massa.

Aos revolucionários, vivendo a vida do povo e no seio dele, cumpre pelo exemplo e pela palavra alargar o movimento operário, propagar os métodos conducentes à realização da emancipação integral e, aproveitando todas as efervescências, todas as circunstâncias, todas as ocasiões em que os «ouvidos estão abertos», apontar a solução radical do problema económico e político – expropriação da burguesia, abolição das instituições governamentais, socialização dos meios de produção.


Inclusão: 24/06/2021