A Liberdade

Neno Vasco

15 de dezembro de 1912


Primeira Edição: A Aurora do Porto, 15/12/1912.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2020/03/01/a-liberdade/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Que é, ao certo, a liberdade? Qual o seu conceito positivo?

Em busca duma definição o mais clara possível, creio poder deixar de lado a questão do livre arbítrio e do determinismo. Os deterministas negam a liberdade volitiva, isto é, a vontade independente de motivos, com o poder absoluto de se determinar a si própria; para eles tal liberdade não existe, sendo a vontade a resultante do meio cósmico, individual e social, do ambiente em que se exerce. Os livre-arbitristas, pelo contrário, afirmam essa liberdade, admitindo, porém, como fez o advogado italiano Luigi Lala, numa crítica ao livro do camarada Luigi Molinari, «Il Tramonto del dirito penale», que algumas vezes a autonomia da vontade pode, pelo concurso de fatores externos ou internos, ficar parcial ou totalmente paralisada.

Logo a vontade pode encontrar, na sua realização, obstáculos insuperáveis, que anulam a liberdade no terreno dos factos, nas suas relações com o ambiente social, com o mundo exterior. O que nos importa, pois, é estudar esses obstáculos e os meios de os evitar. A questão reduz-se a definir a manifestação exterior da liberdade, para os livre-arbitristas, ou a única liberdade existente, para os deterministas: a liberdade de agir. E esta é a possibilidade de realizar uma vontade. Pouco importa, para o nosso caso, que esta seja ou não determinada.

Donde podem vir os obstáculos à realização da vontade? Ou das forças naturais físicas (seria preferível talvez), ou do mundo social, das forças humanas.

A liberdade afirma-se primeiramente como ato positivo; é o produto duma conquista sobre o ambiente, o resultado duma luta contra as forças exteriores.

Já aqui, em consequência da lei universal – visto que a coordenação vence maiores resistências – a associação aparece como fator de liberdade. A cooperação de esforços, agindo contra as forças naturais e sociais, aumenta a soma de possibilidades, de bem estar de cada uma das partes associadas. E se a solidariedade se desse entre todos os seres humanos, a luta teria como único alvo o triunfo sobre a natureza bruta, e as forças conscientes, antes divididas, agora unidas, obteriam vantagens bem mais apreciáveis que as mesquinhas vitórias duma guerra fratricida, de que saiem muitas vezes os vencedores mais debilitados que os vencidos.

Realizada pela cooperação voluntária (voluntária e não obrigatória, porque a coação seria a continuação da luta) a harmonia entre as forças humanas, a liberdade seria uma afirmação positiva unicamente contra as forças inconscientes da natureza; sob o ponto de vista social, ela seria ao contrário negativa, a abstenção de constrangimento, o não emprego da violência num contrato de reciprocidade, de utilidade comum.

De dois modos gerais pode um homem ser constrangido ou violentado por uma vontade alheia: ou diretamente, pelo emprego da força (violência) – à qual responde naturalmente uma reação, outra força (resistência) para o restabelecimento do equilíbrio, para a conquista da liberdade (possibilidade de agir); ou indiretamente, pela detenção dos meios, das condições de existência, a que responde a expropriação.

A violência direta, que podemos chamar opressão política (ou religiosa quando se traduz no emprego do engano – ao qual respondem o livre exame e a propaganda), é exercida pela «autoridade política»; a violência indireta, digamos opressão económica, é exercida pela «autoridade económica».

Hoje a autoridade política (o Estado) com a força social que ela monopoliza e apoiada sobre o engano e a ignorância, obriga todos a uma regra uniforme, da qual procura tirar a maior vantagem possível; e a autoridade económica, aliada da primeira, monopolizando os meios de produção, obriga o produtor a deixar nas mãos do capitalista uma parte do seu trabalho, restringindo-lhe as possibilidades de consumo.

Eis porque, dizendo-nos anarquistas, reclamamos a abolição do Estado, da instituição governamental; queremos a socialização do poder político, isto é, a autonomia individual, o indivíduo governo de si próprio; queremos substituir a atual organização política autoritária por uma organização libertária, que parta do indivíduo para a sociedade, associando-se livremente os indivíduos, federando-se livremente os grupos; queremos a cooperação baseada sobre a iniciativa particular e o livre acordo, a organização adaptando-se plasticamente às múltiplas necessidades humanas.

Eis porque, dizendo-nos socialistas, queremos a socialização dos meios de produção, da terra e dos instrumentos de trabalho; queremos a abolição da propriedade particular, isto é, do monopólio da riqueza social, do capital humano, representado não pelo dinheiro, mas pelas verdadeiras utilidades, monopólio que diminuindo na maioria dos homens as possibilidades de consumir, estorva por isso mesmo a produção.

Socialistas-anarquistas, queremos substituir à luta ruinosa entre indivíduos da mesma espécie a «lei da solidariedade». Não a queremos certamente implantar de novo. É essa uma lei que, sob uma forma ou outra rege as sociedades; estas não podem subsistir sem ela. A violação dessa lei traz o mal estar e a tirania; quem a transgride sofre as consequências duma reação muito natural. O mal irradia em torno de si, corrompe tudo. A minha liberdade é solidária com a liberdade de todos os outros. Sofro num meio escravo, ignorante, miserável e imundo; esse meio embaraça-me o cérebro, reduz-me a uma vida mesquinha, expõe-me a todos os contágios e perigos.

É um facto averiguado: a solidariedade existe no sofrimento ou no bem-estar, na opressão ou na liberdade. E o progresso humano é devido à sempre crescente solidariedade na luta pela vida, a despeito da autoridade, força conservadora e regressiva.

Nós queremos, pois, unicamente adquirir e espalhar a consciência dessa lei. As leis da eletricidade tinham sempre existido: mas foi somente depois que o homem teve delas consciência que pôde defender-se do raio e alcançar uma série de maravilhosos inventos. Que o homem conheça o valor da solidariedade, saiba que nela está o seu interesse, harmonizando com o interesse de todos, e poderá tirar dela novas e inúmeras vantagens, utilizá-la em aplicaçõers felizes. As leis naturais não são impunemente violadas; mas são domadas, isto é, coordenadas pela vontado do homem para sua própria felicidade.

A solidariedade é o único e fecundo terreno onde pode florescer a liberdade. A liberdade de cada um não limita a doutrem: aumenta-a, garante-a. Pela solidariedade consciente, pela cooperação voluntária, a liberdade do indivíduo (possibilidades, meios de realizar a vontade, bem estar, independência material), quer seja o fruto duma vitória sobre a natureza inconsciente, quer seja no seu sentido social, a ausência de coação, de violência, cresce – e cresce na mesma proporção que a solidariedade moral.


Inclusão: 24/06/2021