O apóstolo dos campos

Neno Vasco

25 de julho de 1914


Primeira Edição: A Lanterna (São Paulo), N.º 258, 29 de agosto de 1914.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/o-apostolo-dos-campos/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


LISBOA, 25 DE JULHO.

Há dias, tive pela primeira vez o prazer de conversar com um trabalhador rural, militante das ideias novas pelos campos do Alentejo. Contou-me alguns pedaços da sua vida e dos seus trabalhos.

À primeira vista, é um camponês rude como os outros. Veste o traje característico: calça apertada, jaqueta curta, carapuça (a carapuça é ainda muito usada no sul de Portugal). Mas ei-lo que fala. Dentro daquele envoltório tosco, há um espírito polido – polido nas serras e campinas, longe dos grandes centros, em contacto com gente inculta! A sua linguagem é fácil, animada, colorida, não despida de correção, nem, contudo, do pitoresco campestre.

Como estamos na sede da «Juventude Sindicalista», logo se formam em volta de nós – em volta dele – com alguns veteranos da propaganda, fileiras dobradas de moços, figuras finas de lisboetas, silenciosos, atentos, admirados. Escuta-se. Trocam-se olhares e sorrisos comovidos.

O nosso campesino, quando rapaz, era um valente para a viola e para a cantiga ao desafio. Ninguém o desbancava a improvisar versos, a acudir aos motes com glosas prontas e felizes. Depois veio aquilo das ideias… aquela nobre paixão pela propaganda… aquele labutar constante pela emancipação dos seus irmãos de penas e fadigas… Adeus, viola! adeus, fado! adeus, «triste canção do sul!»

Entretanto, ainda há pouco o nosso poeta rural glosou com quatro décimas um mote anti-capitalista, para exprimir as suas esperanças de libertação comum e chamar à revolta os rudes compenheiros… E quem dera a muitos vates literários o estro e a espontaneidade daqueles versos que ele, muito instado, acabou por nos recitar!

O que tem sido a sua vida desde que foi tocado pelo ardor proselítico! Não deixa escapar um ensejo. Durante o trabalho ou as refeições, à hora da sesta ou do recolher, nos pontos de reunião ou pelas estradas poeirentas, o nosso pertinaz semeador de ideias fala à mente e ao coração dos campónios, lê-lhes brochuras e jornais, insufla-lhes esperanças e ousadias, rasga-lhes diante da vista novos e amplos horizontes. Sob o sol calcinante, ao rítmo das foices, diz aos camaradas, curvados sobre o duro labor, de que mentiras e injustiças eles são vítimas, de que força eles podem dispor, como poderão emancipar-se, que futuro podem desde já entrever… O sol ardente brilha e a cadência das foices acompanha o sussurro das suas ardentes palavras…

Depois, os semeadores do pão acabam por compreender o seu irmão, semeador de ideias. Funda-se uma associação; e o nosso evangelizador dá o exemplo da atividade, da dedicação e da coragem. É ele o secretário do sindicato, é ele que formula e apresenta as reclamações coletivas, é ele que afronta as iras patronais, os anátemas do padre, as raivas e insídias dos políticos, as perseguições da autoridade.

E o que são no campo essas iras, ódios e despeitos! Na cidade, os que lutam sentem-se amparados, defendidos, animados por uma multidão simpática, por uma opinião esclarecida; o destaque individual não é tão violento como nas pequenas localidades da província – onde é preciso enfrentar diretamente o inimigo, como se enfrenta o toiro nas lezírias… O «elemento perigoso» é rapidamente conhecido e atacado… O nosso apóstolo rural refere-nos o caso recente de duas ou três mulheres do campo processadas por terem, a exemplo dele, cantado em versos ingénuos, depois publicados, a necessidade da revolta contra a prepotência e a exploração.

Chega, pois, o momento em que o propagandista aldeão se vê forçado, se não está na cadeia, a levantar a sua pobre tenda, indo «pregar a outra freguesia»… Ninguém lhe dá trabalho, fez-se-lhe o cerco da fome. Deixando a boa semente a germinal atrás de si, vai recomeçar a sua tarefa noutra parte; as perseguições são como os ventos: espalham largamente os germes, a toda a roda.

Às vezes, tem de ir para bem longe, na busca afanosa e humilhante do ganha pão, com a família atrás, alforge às costas, por atalhos e caminhos, através de montes e charnecas. Passam-se privações, de quando em quando dorme-se ao relento…

Passam-se privações, de quando em quando dorme-se ao relento…

E o nosso bravo militante diz isto com um sorriso animado, os olhos fuzilando de inteligência.

Em torno, ninguém diz uma palavra. Não é preciso. Todos sabem com certeza o que pensa cada um. Todos fazem o confronto dos seus esforços com os daquele rural, que ali está, mais uma vez fugindo à miséria, com a intenção de procurar trabalho, da outra banda do Tejo, na descarga das barcas… Todos tirando estímulo daquele exemplo.

Pois foi este homem que quis conhecer-me, simplesmente porque eu rabisquei duas mal amanhadas linhas dirigidas aos camponenes, as «Geórgicas»! Simplesmente porque eu buscara traduzir numa linguagem incerta de citadino as aspirações profundas do produtor primeiro! Mas, afinal, foi ele, o bom apóstolo dos campos, que veio entoar-me as Geórgicas mais enternecedoras, e fui eu quem as ouviu silencioso e recolhido.


Inclusão: 24/06/2021