Anselmo Lorenzo

Neno Vasco

6 de dezembro de 1914


Primeira Edição: A Lanterna (S. Paulo), N. 272, 16 de janeiro de 1915

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/anselmo-lorenzo/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O telégrafo anuciou-nos há dias o falecimento do velho Anselmo Lorenzo, em Barcelona. Não farei a biografia, aliás bastante conhecida, do ilustre internacionalista, uma das mais belas figuras do anarquismo e do movimento operário, uma daquelas individualidades de alto valor moral e intelectual de que Ferrer teve a inteligência de se cercar na realização da sua obra; apenas indicarei uma característica desta personalidade e o formoso exemplo da sua longa mas sempre intensa vida.

Mente eleita e cultivada, escritor elegante e claro, Anselmo Lorenzo deixa em jornais, revistas e volumes uma larga e substanciosa obra de propaganda, polémica e recordações históricas, preciosos documentos para a história da velha Internacional e do movimento que a continuou, sobretudo no que se refere à Espanha.

Era então o que se costuma chamar hoje um «intelectual»? Hoje que o trabalho manual e o trabalho intelectual estão separados, havendo os que trabalham para todos e os que por todos estão encarregados de pensar, assim como de dirigir em proveito próprio e da sua classe a produção, o trabalho intelectual vem a ser aquele que se incumbe da honrosa e nobre tarefa do estudo e do saber e faz disso profissão ou estado.

Ora Anselmo era ao mesmo tempo intelectual e um operário manual, um homem integral em suma. E se o desenvolvimento simultâneo e harmónico da mente e dos músculos num labor produtivo, num casamento íntimo e necessário da ciência e da técnica, teve neste obreiro do braço e do cérebro um exemplo triunfante, numa triste época em que a faina bestial do assalariado tira a este todos os momentos e todas as energias para o estudo e para a compreensão, que seria então numa sociedade da qual houvesse desaparecido a distinção entre assalariado e patrão, entre governante e governado, entre rico e pobre, entre a ligeira ocupação intelectual do dirigente e a embrutecedora labuta passiva do dirigido, numa sociedade em que ninguém fosse dispensado da sua quota-parte de trabalho braçal e em que a cooperação de todos e a aplicação completa da mecânica à indústria abreviassem e aligeirassem a tarefa humana e proporcionassem a cada um vagar suficiente para gozar os meios de se instruir postos pela comunidade à sua livre disposição? Que seria numa sociedade em que a força motriz do trabalho e do saber não fosse como hoje o interesse duma classe de homens, que ganham em geral com a carestia de produtos, com o afrouxamento da produção e com o aviltamento e ignorância do produtor, mas sim o interesse de todos e de cada um, sendo todos sócios iguais e administradores diretos da riqueza social?

Mesmo na atual luta pela emancipação comum – sem fazer disto uma regra absoluta – os homens nas condições de Anselmo Lorenzo, intelectual que não largou o componedor, que enquanto pôde empunhou a ferramenta do seu ofício manual, são os que oferecem mais sólidas garantias de firmeza de caráter, de coerência de ideias e de atos, de equilibrada compreensão das coisas.

Os intelectuais, vindos em geral das classes médias, ainda quando dão a sua adesão à causa dos oprimidos, quase nunca rompem de vez com o seu mundo, conservam nele muitas ligações corruptoras, trazem dele muitas taras e preconceitos, modos viciados de agir e de pensar, e tendem a encarar os problemas sociais sob um aspeto exclusivamente intelectual e artístico, a fazer puro diletantismo, desprezando os interesses fundamentais, a organização e a ação prática. Do seu lado, os trabalhadores manuais tendem a restringir demasiadamente o horizonte da sua ação, a perfilhar a moral e os conceitos teóricos que lhes são servidos já prontos pelas classes dirigentes; e, quando se instruem, a abandonar a sua classe, passando mais ou menos ostensivamente para o inimigo.

Muito se tem dito e escrito sobre a ação dos intelectuais no movimento operário. A questão é bastante simples no que se refere à organização operária por ofícios ou indústrias. O intelectual é automaticamente excluído do sindicato, que só recruta os membros da profissão e não admite uma direção externa – se o sindicato é um verdadeiro sindicato, aceitando o lema da Internacional: a emancipação dos trabalhadores há de ser obra dos próprios trabalhadores.

Ao lado, porém, da organização económica do proletariado, há os partidos que se agrupam, não segundo a condição social e a profissão, mas em torno de ideias, tendentes à emancipação social e à abolição das classes, com soluções e métodos diversos.

Pois bem: aí mesmo os intelectuais vindos da burguesia têm dado fartos exemplos de palinódias, deserções e confusionismos, desmoralizando e desorientando. E o mal é mil vezes maior quando o método de ação é eleitoral e parlamentar – porque não há nada como o parlamentarismo para atrair os aventureiros e as meias consciências.

Anselmo Lorenzo foi, pois, um grande e salutar exemplo. Sob todos os aspetos, a sua nobilíssima figura inspira o mais profundo respeito.

Este octogenário morre de espírito lúcido e com coração sempre moço e ardente. Soberba têmpera de lutador! Maravilhosa fibra de homem de convicções! Extraordinário obreiro do futuro! Magnífico modelo nesta triste hora de crise, quando bastantes intelectuais, mesmo anarquistas, mostram ter do anarquismo e da luta operária uma conceção mais democrática e burguesa do que propriamente «anarquista»!(1)

Lisboa, 6 de dezembro de 1914
Neno Vasco.


Notas de rodapé:

(1) Neno refere-se ao posicionamento de certos anarquistas a favor dos aliados na guerra mundial que acabava de eclodir. (retornar ao texto)

Inclusão: 24/06/2021