O semeador

Neno Vasco

13 de fevereiro de 1915


Primeira Edição: A Lanterna (S. Paulo), N. 274, 13 de fevereiro de 1915

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/o-semeador/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Na pequena sala de redação do semanário de propaganda, saboreávamos com delícia uma palestra amiga entre camaradas, quando de súbito entrou um rapagão com uma caixa afivelada às costas.

Saudou jovialmente os presentes, desafivelou a caixa e, depondo-a no chão, sentou-se nela a limpar o suor.

Enquanto esperávamos que falasse, examinámo-lo silenciosamente, Era um moço alto e espadaúdo, de buço negro sobre a pele morena e tostada e uns olhos vivos e crepitantes como vinho espumoso. Vestia um traje aldeão, temperado por alguns retoques ou reminiscências da cidade.

Por fim, com um sorriso, muito à vontade, o visitante disse-nos o seu nome.

O administrador do jornal conhecia-o perfeitamente, como um militante infatigável, que lhe escrevia muito amiúde, ora duma localidade, ora de outra, e fazia um consumo endiabrado de folhetos. Por onde ele passasse, pululavam os assinantes para o periódico. Se não era caixeiro viajante, havia de ser judeu errante com certeza… — o judeu errante da propaganda, disse o mocetão da caixa, alargando contente o seu bom sorriso.

E como nas nossas caras se expandia com franqueza a avidez da curiosidade, pôs-se a narrar a largos traços a sua vida ambulante.

Na cidade, era mecânico e ganhava já um bom salário. Mas, amigo de ler e de saber, frequentador assíduo de conferências, todo ouvidos para as discussões travadas na sede do sindicato, em breve o inflamara este nosso brilhante ideal de emancipação humana. E logo o queimara uma sede insaciável de proselitismo, logo o preocupara o grande problema da propaganda rural, da sementeira fora dos centros industriais — por esses vastos campos incultos da provìncia, inquietantes e cheios de mistério. Poderá ir longe qualquer tentativa do operariado citadino, solitário e hostilizado? Porque não imitar o belo exemplo dos revolucionários russos, que vão viver e trabalhar entre os camponeses?

Jovem e robusto, sem compromissos de família, um belo dia o nosso mocetão abalou por essas terras fora. Munira-se de objetos úteis e baratos, que ia vendendo com lucros mínimos. Aprendera os rudimentos de variados misteres e era nos campos um obreiro serviçal e enciclopédico. Nos casebres rústicos, não havia móvel ou utensílio que ele não soubesse concertar ou mesmo fabricar. Arranjava até o rude calçado, à falta de remendão, e não era raro verem-no contribuir com seu engenhoso esforço para a reparação ou construção de casas…

Depois, com pouco se contentava. Comer e dormir, era como calhava, umas vezes melhor, outras vezes pior; umas vezes a troco de alguns vinténs, outras vezes em paga de trabalho. No tempo do calor, não se lhe dava de dormir ao relento, nas eiras ou sob as medas. Morrer, não morria. Enfim: ia vivendo — e com saudinha…

Daquele modo, conquistava rapidamente os corações e a confiança da gente das aldeias e pequenos burgos, que escutava com atenção as suas palestras e leituras, aceitava de boa mente as suas brochuras e jornais, seguia pensativamente as claras e luminosas visões de um futuro de mais liberdade e de mais bem-estar.

Fixávamos comovidos o bom semeador, decorando-lhe as formas e feições, como se procurássemos ver a corporização daquela paixão nobilíssima e daquele heroísmo vivificante.

— Já levo cinco anos nesta vida, concluiu ele singelamente.

Um dia lá ficarei preso em alguma parte…

Supusemos que se referisse a cóleras e vinganças da autoridade. Não; tínhamos entendido mal: tratava-se dos laços do amor. Ocasiões e tentações, não lhe tinham faltado; e não era por se gabar, mas de muitas sabia ele que não lhe diriam que não… Mas, com franqueza, a resolução não lhe parecia das mais fáceis de tomar, como não achava fácil encontrar mulher que lhe servisse. Terrível problema…

Houve risos.

E como o valente rapaz se dispusesse a partir, tendo já feito a sua provisão de papel impresso, quisemos acompanhá-lo até fora da cidade.

Despedimo-nos naquele ponto em que a estrada, girando sobre as últimas casas, se lança numa reta magnífica, a perder de vista, ladeada de terras de lavoira. Nos campos, homens e mulheres trabalhavam nas sementeiras.

O nosso amigo disse-nos adeus com um riso franco, apertando-nos a mão com energia, e empreendeu alegremente a marcha; os seus sapatorros batiam o solo rijamente, com acompanhamento de bordão ferrado.

Ficamos ali até que o seu vulto escuro se perdeu no horizonte. A estrada branca, interminável, faiscava ao sol. Dos campos, vinham vozes de trabalho. E, ao longe, o vulto negro, bamboleando o braço, parecia fazer o gesto bem-dito do semeador.

(Lisboa).


Inclusão: 24/06/2021