Uma lição severa

Neno Vasco

27 de fevereiro de 1915


Primeira Edição: A Lanterna (S. Paulo), N.º 295, 27 de fevereiro de 1915.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/uma-licao-severa/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Os acontecimentos políticos dos últimos oito dias, em Portugal, são férteis em ensinamentos.

Subira poucas semanas antes ao poder um ministério «afonsista», o qual, mais pelos seus antecedentes do que pelos seus atos, tinha logo recolhido a antipatia e a hostilidade da maior parte do público e dos partidos adversos. «Novo reinado da formiga branca e das bombas!» — dizia-se por todos os cantos.

Demais, para os partidos habia um sério motivo de oposição. Não admitindo a Constituição o direito presidencial de dissolver o parlamento, o partido que faça as eleições tem o poder garantido para sempre, cedendo-o de vez em quando a um compadre, para o retomar mais tarde, quando acalmada a opinião… Aos partidos contrários resta apenas o recurso da rua, da agitação popular, da insurreição ou ameaça da insurreição, o que oferece os seus inconvenientes e perigos, sobretudo para partidos de «ordem» e de governo. E como os políticos sabem melhor do que ninguém (cada um no seu ofício) o que significa «fiscalizar o ato eleitoral», «presidir às eleições», «dirigir a consulta ao país», possuem razões de sobra para desconfiar uns dos outros.

Foi, pois, contra o ministério um combate sem tréguas, em que se distinguiu Brito Camacho com a sua «União Republicana». O partido afonsista não realizaria as eleições, asseverava Brito Camacho; como não enviaria a expedição militar ao teatro da guerra europeia, apesar da pressa que dizia ter e da sua áspera condenação dos vagares do ministério anterior. Porque, continuava o chefe unionista, os afonsistas bem sabiam que as finanças portuguesas não permitiriam a participação ativa e direta na guerra europeia, nem a Inglaterra a pedira: o que eles desejavam apenas era a preparação para a guerra, com as relativas negociatas.

E eis que surgue a questão militar. Os afonsistas proclamam a necessidade de tomar medidas contra os oficiais suspeitos, graças a uma «certeza moral», de desafeição pela República. É transferido um oficial e depois mais dois, que compunham uma comissão de protesto. A oficialidade dos regimentos de Lisboa faz então uma reclamação coletiva contra o que ela considera intervenção da formiga branca na vida do exército. O ministro não lhe dá ouvidos, e é então ao presidente da República que a corporação militar profissional resolve ir diretamente, na manhã de 20.

Mas os primeiros oficiais que sairam, os dum regimento de cavalaria, são presos. Altas personalidades governistas percorrem os quartéis, garantindo que se trata duma tentativa de restauração por parte dos oficiais monárquicos. O mesmo dizem as notas oficiosas, que falam até da entrada de conspiradores realistas pela fronteira do Norte. Na província, os agentes do governo espalham idêntica versão, chegando a um jornal afonsista de Coimbra a fantasiar encarniçados e demorados combates entre os reberldes e as forças fiéis! Os jornais que começam a desmentir a versão oficial são suprimidos.

E como os oficiais, por esse país fora, principiam a solidarizar-se com os seus camaradas, é proibido à imprensa publicar as suas declarações.

A princípio enganados pelas afirmações do governo, os oficiais mandam protestos de fidelidade ao regime; mas, logo informados pelos colegas de que se trata dum movimento de classe, quase todos se apressam a entregar a espada, a considerar-se presos como os seus camaradas lisboetas! É a greve geral da profissão, perfeitamente caracterizada: abstenção do trabalho, motivos corporativos, lista de reivindicações — reintegração dos oficiais nos seus anteriores lugares, demissão do gerente, o ministro da guerra, desmentido solena da acusação de monarquismo e não menos solene retirada da portaria de louvor à formiga branca pelo esmagamento da pretensa conspiração realista.

Uma greve geral de militares profissionais!

Entretanto o governo, já demissionário, procura salvar-se. Na madrugada de 25, dois ministros vão ao palácio presidencial tentar arrancar um decreto de suspensão de garantias, pois iam dar-se graves acontecimentos. Ou isso, ou a sua imediata substituição — não podendo eles responsabilizar-se pela manutenção da ordem. O presidente escolheu a segunda ponta do dilema; foi no mesmo instante nomeado ministério um só homem, o general Pimenta de Castro, já incumbido de constituir gabinete.

E voltou-se o feitiço contra o feiticeiro. A ordem do ia, com efeito, ser perturbada, mas pela formiga branca, sob o comando do governador civil afonsista de Lisboa, e foi contra ela que os quartéis tinham estado e ficaram de prevenção, recusando cumprir ordens dos ministros demissionários, e é ela que, em bom número, contempla agora os acontecimentos através das grades das prisões!

Quantas lições a tirar de tudo isto!

A acusação de cumplicidade com os realistas foi em tempos vilmente jogada aos operários sindicalistas — e então os políticos não protestaram. Achavam bem que os trabalhadores fossem vencidos com armas desleais e infames, que hoje se voltaram contra os compadres de ontem.

Depois outro objeto de irónica reflexão é o uso da greve, arma tão vituperada quando a manejam as mãos calosas dos obreiros.

Mas entre todas a lição mais severa e instrutiva foi o trambolhão do partido afonsista.

Muitas vezes lhe foi feita a fácil profecia: os partidos ou regimes que se notabilizam na perseguição ao operariado ou ao seu fermento ativo e inteligente acabam em breve por se ver abandonados de todas as outras classes, mais interesseiras, menos ardentes e menos idealistas do que o povo das fábricas e dos campos.

O partido afonsista especializou-se no arreganho com que desafiou os sindicalistas e arremeteu contra o proletariado organizado.

Em 26 de janeiro de 1914 era derrubado sobretudo pelos esforços operários; em 25 de janeiro de 1915, lançava-o por terra a classe militar profissional. E vai-se sob as vaias, o desprezo ou a indiferença da grande maioria da opinião atuante de Lisboa e do país.

Severa lição — que aproveitará pouco aos governantes: e tanto pior para eles!


Inclusão: 24/06/2021