Acrobatismos Esotéricos

Neno Vasco

25 de abril de 1915


Primeira Edição: A Lanterna de S. Paulo, N.º280, 15 de Maio de 1915.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/acrobatismos-esotericos/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Afinal de contas, tristezas não pagam dívidas; e nestes tempos de tragédia, um intermédio cómico, para aliviar o espírito, não vem fora de propósito.

Iniciou-se a publicação duma «revista trimestral de literatura», Orfeu, destinada a Portugal e Brasil, que «é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou a um tormento» e cujos fundadores pretendem «formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em Orfeu o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos.»

E vai daí, estes moços, em vez de se refugiarem em sessões secretas, missas negras e iniciações esotéricas, sentindo-se e conhecendo-se reciprocamente à sua vontade, sem escândalo público e sem desperdício de excelente papel e caracteres tipográficos, estes moços, que já por aí têm feito das suas, em extravagâncias literárias, a propósito ou a despropósito de António Nobre, ou em diletantismo de monarquismo integralista, à Charles Mauras, estes moços desatam a escrever coisas neste gosto:

As mesas do café endoideceram feitas ar…
Caiu-me agora um braço… Olha, lá vai ele a valsar
Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei…

(Subo por mim acima como por uma escada de corda,
E a minha ânsia é um trapézio escangalhado…)

Não é um espetáculo banal, por certo; e o sr. Mário de Sá-Carneiro, que tais habilidades possui, tem o seu futuro garantido como funâmbulo, se quiser escriturar-se numa companhia de cavalinhos, para regalo de empresário em cata de atrações sensacionais. Maravilha! Assombroso! Nunca visto! O famoso homem que sobe por si acima! Quem resistiria?

Porque o rapaz está realmente para a coisa, e tanto assim que diz ainda, num soneto:

Desci de mim. Dobrei o manto d’Astro,
Quebrei a taça de cristal e espanto.
Talhei em sombra o oiro do meu rastro…

Findei… Horas-platina… Olor-brocado…
Luar-ânsia… Luz-perdão… Orquídeas-pranto…
Ó pântanos de mim – jardim estagnado…

Os jornais que se ocuparam destes moços aristocratas e esotéricos afirmaram tratar-se de casos de vesânia bem caracterizados. São psicopatas que podem andar à solta. E cita-se o estudo feito há quinze anos por Júlio Dantas, sob o título de Pintores e poetas de Rilhafoles, chamando-se também para o assunto a atenção do eminente psiquiatra Júlio de Matos.

Eu, francamente, desconfio um tanto da queda profissional dos alienistas, dispostos a ver em tudo uma manifestação de loucura. E bem sei o que diria a propósito um desses robustos e sanguíneos homens de bem, que pensam e procedem «à antiga portuguesa»:

– Qual «vesânia» nem qual carapuça! A maluquice lhes daria eu com um bom marmeleiro nas costas!

Medicina, porém, demasiadamente brutal e ineficaz, e porventura contraproducente, pois que um deles, o sr. Álvaro de Campos, nos diz na sua Ode triunfal:

Metam-me debaixo dos combóios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismos através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu barulho!

Com esta fome de bordoada, muito conhecida em patologia sexual, o marmeleiro agravaria a doença; e se recebessem uma valente sova, os pobres moços eram capazes de desatar a subir por si acima ainda com maior desespero.

O remédio vem talvez indicado nestes versos do mesmo Álvaro de Campos:

Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais prò centro.
Não fazer nada é a minha perdição!

Justamente! O mal todo desta pobre mocidade doente e inútil é a ociosidade. Só o trabalho útil a curaria e regeneraria.

E então se a colocassem num meio social livre, do qual tivessem sido banidos o privilégio e o ócio parasitário, toda aquela maluqueira lhe desapareceria, sem tempo para vir à supuração… Se algum pobre moço quisesse ainda trepar por si mesmo, com riscos de se estatelar desastradamente, não haviam de faltar mãos amigas e serenas para o reter e acalmar.

Lisboa, 25 de abril de 1915.


Inclusão: 24/06/2021