Vozes de paz

Neno Vasco

1 de maio de 1915


Primeira Edição: A Lanterna (S. Paulo), N.º 279, 1 de maio de 1915.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/vozes-de-paz/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Os socialistas de vários matizes começam a levantar nos países beligerantes vozes de paz, apelos desesperados à concórdia entre os povos. Ao social-democrata alemão Karl Liebknecht fez eco um manifesto ardente do anarquista francês Sébastien Faure, aliás antecedido pelo sindicalista Pierre Monatte, na notável carta em que justificou a sua retirada da Comissão Confederal da Confederação Geral do Trabalho.

Afrontando corajosamente a repressão governamental e a terrível atmosfera de suspeições, sofismas e rancores nacionais, fomentados e explorados pelos dirigentes, os revolucionários sociais que assim procedem querem separar bem as suas responsabilidades das de todos os governos. Os que não são responsáveis pelo estalar da conflagração, não o querem ser pelo prolongamento dos seus horrores e pelo alargamento do abismo que ela vai cavando entre os povos. Ou poderá dizer-se de nós, pergunta Sébastien Faure, que, adversários da guerra em tempo de paz, nos convertemos em adversários da paz em tempo de guerra? Sim, deixemos aos governos essa responsabilidade e habilitemo-nos a exigir-lhes contas dela.

Numa passagem do seu manifesto, Sébastien Faure apela candidamente para a iniciativa pacificadora da Itália ou dos Estados Unidos, naturalmente no intuito de sugerir uma proposta prática aos moderados, cujos esforços ele tenta agrupar em torno da sua tentativa. Mas os «neutros» armam-se ativamente para tutelar os seus interesses estatistas, financeiros e militaristas; e os Estados hão-de procurar celebrar uma «paz» acomodada às conveniências próprias e às das classes possuidoras e dominantes. Fujamos igualmente às responsabilidades dessa espécie de «paz».

É, porém, sobretudo com as energias do povo e dos homens da vanguarda que Faure e outros contam, na sua esperança duma paz «sem conquistas, nem humilhações», como diz Liebknecht. «Só a afirmação contínua e simulada desta vontade em todos os países beligerantes poderá deter o sangrento morticínio antes da exaustão completa de todos os povos interessados.» Só o povo saberá impor essa paz, e só essa paz, assim conquistada, «baseada na solidariedade internacional da classe operária e na liberdade de todos os povos», poderá extinguir os ódios de nacionalidades e ser o primeiro triunfo popular, o primeiro passo eficaz para a extinção das carnificinas internacionais.

— Mas é preciso destruir antes o militarismo prussiano, exclamam os revolucionários sociais que dignificam com tão nobre intuito a colaboração, forçada ou voluntária, com os exércitos dos Aliados.

— É necessário aniquilar o tsarismo, respondem os sociais democratas que enfileiraram ao lado do Kaiser.

O militarismo prussiano e o tsarismo russo são dois factos e dois perigos terríveis e verdadeiros; mas é falso e traiçoeiro o pretexto que eles proporcionam aos governos e aos políticos para justificar a guerra perante a opinião e obter a adesão dos liberais.

Com a guerra, com os exércitos, ao mando dos governos e das classes burguesas, não se destroem militarismos, nem despotismos: Não ficará tudo como dantes, depois de esgotadas de parte a parte todas as forças? Ou a um imperialismo momentaneamente decaído não sucederão indispensáveis novas coligações e novos armamentos, desde já sancionados pela atitude de muitos revolucionários? Ou ainda, se às classes dominantes se mostrar perigoso o eclipse total duma das estrelas da reação, não poderão elas forjar uma paz que as garanta contra os riscos duma revolução?

Quem provoca e promove as guerras? Quem comanda os exércitos? Que espírito predomina nos combatentes dum Estado contra o estrangeiro? Quem discute e assina a paz? Quem combina, nos secretos conluios das diplomacias, a sorte dos povos espoliados e chacinados?

E hão-de revolucionários ter servido de joguete nas mãos velhacas dos árbitros das nações? Hão-de, para um resultado incerto, ter abandonado a sua missão específica? Sob pretexto de trabalhar indiretamente para a revolução, hão-de trabalhar diretamente para as instituições nefastas de opressão e de morticínio?

Não! Trabalhemos diretamente pela nossa causa, e deixemos que por ela trabalhem indiretamente os nossos inimigos e os factos — única maneira, aliás, de tirarmos proveito desse trabalho indireto e desses factos.

Inimigos das guerras e ódios entre povos, devemos — hoje mais do que nunca — incitar os povos a confraternizarem, a imporem a paz e a declararem a guerra aos senhores. Inimigos dos Estados, do Capitalismo e da Igreja, devemos altamente denunciá-los como fautores únicos das carnificinas internacionais, e cindir energicamente da deles a nossa responsabilidade.

Se algum alvo dos nossos ataques devemos especializar, é precisamente o que nos está mais próximo; a pontaria é mais certeira. O nosso «patriotismo» revolucionário deve consistir em combater especialmente os que exploram e oprimem a «nossa pátria», o politicante, o patrão e o padre que vivem e mandam em nossa casa. Deve consistir em evidenciar como eles nos arrastaram à catástrofe e acumularam a pólvora que havia de explodir e em impedir que eles encubram as suas próprias culpas com as do «estrangeiro».

Somos nós os mais capazes dessa tarefa e só executada por nós é que ela é verdadeiramente eficaz. Os outros farão o mesmo aos seus amos — e só eles o poderão fazer a valer. O tsarismo só pode ser abatido pelos russos; só os alemães poderão fazer ruir a sua casta militar. O pior serviço prestado a uma revolução é a imposição, vinda do exterior: ensina-o a própria história da Revolução Francesa.

Ainda que se pretenda apenas ajudar indiretamente a revolução, humilhando com a derrota o militarismo ou o despotismo que a estorva, o apelo à guerra não pode senão ser mal interpretado do outro lado, empanando de jacobinismo e de furor nacionalista o sol da Revolução e o sacudimento da revolta. Só o clamor da paz congraçará os povos.


Inclusão: 24/06/2021