Uma encíclica sobre a guerra

Neno Vasco

1 de maio 1915


Primeira Edição: jornal A Aurora – Porto, 1 de maio 1915

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/uma-enciclica-sobre-a-guerra/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Benedido XV lançou encíclica sobre a guerra e acha que parecem chegados os dias do supremo cataclismo anunciado por Cristo. Quem diria, exclama ele, que esses homens tão encarniçados uns contra os outros são descendentes do mesmo pai e seres participantes da mesma natureza e da mesma sociedade humana?

Mais abaixo vereis que o supremo bonzo romano não considera tampouco irmãos e sócios iguais esses filhos do mesmo pai…

As causas da guerra são, na opinião do pontífice, as seguintes: 1.º o esfriar da caridade; 2.º o desprezo da autoridade; 3.º o antagonismo das classes; 4.º o desejo desenfreado dos bens temporais.

Pareceria, pois, que o papa, à maneira dos anarquistas, devia pedir a abolição das classes, a comunicação das riquezas, o fim da exploração e tiranização do homem pelo homem. Só assim, com efeito, suprimidas as causas de luta e antagonismo, de cobiça e de inveja, poderiam os homens apaziguar-se solida e definitivamente e a «caridade» livremente florir e expandir-se.

Mas não. O magno sacerdote pretende que subsistam as classes trabalhadores e parasitas, exploradores e explorados, opressores e oprimidos, – e roga hipocritamente que o lobo devore com caridade o cordeiro e que o cordeiro se deixe passivamente devorar pelo lobo.

E assim proclama aos crentes ingénuos:

Aqueles a quem a fortuna ou a atividade própria trouxeram alguma abundância de bens vêem levantar-se contra eles os proletários e operários azedados pela malevolência ao pensamento de que, participando da mesma natureza, não se acham entretanto na mesma condição que eles. Uma vez imbuídos das teorias mentirosas dos agitadores, ao menor gesto de quem eles têm o costume de se curvar inteiramente (é boa! diz isto o chefe infalível da Igreja dos dogmas e das obediências passivas!), quem poderia persuadi-los de que da paridade de natureza não deve seguir-se necessariamente que todos os homens obtenham a mesma situação na sociedade, mas que a condição de cada um deve ser a que ele adquiriu com seus talentos quando não é impedido pelas circunstâncias? Assim, os menos afortunados que lutam contra os ricos, como se estes detivessem uma parte dos bens alheios, não pecam somente contra a justiça e a caridade, mas violentam a própria razão, tanto mais que poderiam também, com honesta concorrência no trabalho, alcançar uma condição melhor se assim quisessem.

Um velho filósofo, bem inspirado, disse um dia, aliás sem grande esforço de observação nem de inteligência, que «um homem de coração e de espírito só por acaso pode enriquecer». É uma verdade banal e palpável, conhecida até pelos não-filósofos. A miséria e a ignorância andam estreitamente aliadas; e quanto mais longo, pesado e fastidioso é um trabalho, mais mal remunerado ele é, mais miserável e ignorante é quem o desempenha e menos probabilidade têm este e os filhos de sair da sua condição. É assim que a riqueza é fruto da «atividade própria!»

«É mais fácil ganhar o segundo milhão do que o primeiro tostão», diz com acerto a sabedoria das nações. Os que enriquecem a valer, ou o devem à herança (à fortuna, diz o papa, com linguagem vaga ou mitológica…) – do mesmo modo que os reis herdam a coroa, sejam embora míseros abortos físicos, morais ou intelectuais – ou o devem ao trabalho… dos outros, na razão direta do número de salariados ou escravos modernos às suas ordens.

A Igreja, hoje como sempre, defende a escravatura e finge ignorar ou encobrir que uma das injustiças sociais consiste precisamente em não poder cada um, na sociedade atual, desenvolver as suas faculdades e aptidões, dar aplicação aos seus «talentos». A desigualdade não está na diferença de situação, mas no «ponto de partida», nos meios e condições de desenvolvimento e de vida.

Verdade seja que o pontífica romano fala em circunstâncias que impedem os homens de adquirir a condição adequada aos seus talentos… Ora as tais circunstâncias resultam de «deterem os ricos uma parte dos bens alheios», ou antes, os meios de produzir; do facto de, por isso, regularem a produção em seu proveito exclusivo; do facto de obstarem ao desenvolvimento e aplicação completa daqueles meios produtivos.

Se a riqueza universal fosse de todos e administrada por conta e em proveito de todos, se a produção fosse regulada, não pela ganância duma minoria interessada na raridade do produto e na elevação dos preços, mas pelas necessidades reais de todos, não veríamos terras incultas, nem braços desocupados, nem máquinas inativas, nem fábricas cerradas, nem matérias primas e materiais de construção inaplicados, nem produtos sem saída ou destruídos, enquanto os pobres pedem trabalho e carecem de tudo – pão, vestuário e abrigo com suficiência.

Se assim não é como explicas tu, santíssimo padre, esses absurdos e contradições da economia capitalista?

O santíssimo bonzo não explica coisa alguma. Apenas diz estas profundas palavras: «Não precisamos de repetir aqui os argumentos que refutam com evidência os erros dos socialistas e outros do mesmo género».

Como há-de, porém, o pobre homem refutar o socialismo se ele não sabe o que isso seja?

Este grande doutor da Igreja merecia ficar reprovado no mais simples exame de economia política, se aos examinadores fosse dizer o que impinge aos pobres de espírito que o escutam: «Suprimir a diversidade das condições e portanto das classes é coisa irrealizável, exatamente como no corpo vivo é impossível que os membros tenham todos a mesma função e igual dignidade.»

Mas quem diabo pretende que os homens desempenham todos a mesma função?! Igualdade de condições significa: os meios de que dispõe a sociedade empregados em facultar a cada um o desenvolvimento e livre aplicação das suas capacidades próprias, em proporcionar a cada membro do organismo os elementos de que ele necessita para o seu regular, contínuo, equilibrado funcionamento – exatamente como num corpo vivo… Significa a supressão das funções inúteis e parasitárias e o dever para cada um de pagar a sua cota de trabalho manual, com o direito de consagrar à cultura do espírito e do coração, ao progresso da arte e da ciência, as largas horas de ócio, proporcionadas pela mecânica bem aplicada, pelo esforço solidário de todos os adultos válidos e por uma justa divisão de trabalho. Significa, santíssimo rábula, a equivalência das funções, igualmente necessárias à manutenção do organismo social.

E só assim, com a igualdade de facto, não com vãos e hipócritas apelos à caridade, terão fim as lutas dolorosas provocadas pela divisão em classes e as hediondas carnificinas originadas pela concorrência entre as castas financeiras, com o apoio dos seus servidores, os Estados.


Inclusão: 24/06/2021