Os grilhões dos escravos

Neno Vasco

Junho de 1916


Primeira Edição: revista A Sementeira – 2ª série, N.º 6, Junho de 1916

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/os-grilhoes-dos-escravos/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


No capítulo XLVII do Génesis, versículos 14 a 26, a Bíblia descreve-nos o modo como o hebreu José administrou o Egito pela fome, como ele pela fome escravizou os homens, reduzindo-os à miséria e à dura necessidade de servir. É a história resumida e simplificada de todas as espoliações e de todas as tiranias políticas e económicas.

Como a fome afligiu a terra, sobretudo o Egito e o país de Canaan, José vendia para todos os lados o trigo açambarcado, guardando no erário régio o dinheiro recebido.

Mas o dinheiro faltou aos famintos. E então o povo pediu pão ao açambarcador, para não morrer de fome na sua presença. «Se não tendes dinheiro, trazei-me o vosso gado», redarguiu o infame senhor das coisas e, pelas coisas, dominador dos homens que delas vivem.

O povo deu o seu gado e assim viveu mais um ano. Mas os rebanhos e animais domésticos vieram também a faltar-lhe; e então os míseros súbditos, em vez de expropriar o que era fruto do suor de todos, ofereceram-se como escravos e pediram sementes para se não tornar a terra em charneca, perecendo os cultivadores. Mas leiamos o livro sagrado:

«Portanto, comprou José todas as terras do Egito, vendendo cada um deles as suas propriedades por causa da extrema fome. E fez a faraó senhor delas, com todos os seus povos desde uma extremidade do Egito até à outra: exceto somente a terra dos sacerdotes, que lhes tinha sido dada pelo rei, porque a estes se davam géneros determinados dos celeiros públicos; e por isso não se viram na precisão de vender os seus bens.

«Depois disto disse José ao povo: Bem vedes que vós e vossas terras sois de faraó; tomai sementes e semeai os campos, para poder colher frutos. Dareis ao rei a quinta parte, e eu vos deixo as outras quatro para semente e para sustento de vossas famílias e filhos.

«E os homens do povo responderam: «A nossa vida está na tua mão; atenda-nos pelo menos o nosso senhor, e alegres serviremos ao rei».

«Desde aquele tempo até ao dia de hoje se paga em todo o Egito aos reis a quinta parte; e isto como se passou em lei, exceto a terra dos sacerdotes, que ficou isenta desta condição.»

Literatura de dominadores, destinada a celebrar os tiranos e suas leis e a ensinar o povo a resignação e a obediência, a bíblia expõe o mecanismo da escravisão em termos claros, quase cândidos – à luz da hipocrisia democrática moderna.

Os homens, privados da terra e dos gados, dos meios de produzir, são forçados pela fome a vender o próprio corpo, os próprios braços, sob quaisquer condições, ao açambarcador, ao faraó, ao patrão. É, então como hoje, a coação económica ou indireta.

Além desta, há a coação direta: ou exercida sobre a inteligência, pela mentira, os falsos ideais, as vãs promessas, o terror da divindade e do castigo eterno – é a coação moral ou religiosa; ou a exercida sobre o físico, por meio das punições corporais, pela privação da vida ou da liberade de movimentos – é a coação política. Com efeito, se ao patrão não basta o açambarcamento dos meios de produzir, dos instrumentos de trabalho, lá está o sacerdote, ser privilegiado, que combate o diabólico espírito de revolta e incita à vontade do… Senhor; e se o padre não é ainda suficiente, acode o juíz, o esbirro e o soldado, que guardam os celeiros, forçam ao trabalho e domam as revoltas.

Todas essas coações são inseparáveis, persistindo através dos tempos com formas ou designações várias. Assim hoje, o padre disfarça-se amiúde sob o nome de jornalista, sábio ou poeta, sacerdotes duma religião chamada o patriotismo.

E o que se dá entre os indivíduos e entre as classes, dentro dum Estado, dá-se entre os Estados, alguns dos quais exercem sobre os mais fracos ora a coação direta, militar, ora a coação indireta, económica, quando detêm o ouro, o comércio mundial, os produtos essenciais, os mares e as terras.

Para que o homem seja livre na terra livre, é pois necessário começar por atacar o edifício de mentiras dos dominantes pela propaganda e ação incessantes das minorias conscientes, conjugadas com as agitações e descontentamentos das massas, para chegar enfim a destruir ao mesmo tempo a coaçao económica e a política. Uma não pode viver sem a outra; e se após uma revolução, encontramos tal qual uma delas, é porque a outra só mudou de nome ou de feitio.

Se porventura subsistisse o senhor das coisas, este em breve se rodearia de guardas e cointeressados; e o mesmo faria o detentor do poder político, que o persistisse sob o pretexto de defesa dos interesses comuns: trataria de se amparar numa classe privilegiada, distribuindo pelos apaniguados as funções mais leves ou mais bem remuneradas, criando de qualquer forma uma burocracia ociosa e parasitária. O faraó, que isenta os padres (e certamente os guerreiros), dá o exemplo clássico.

Os egípcios deviam ter comunizado os celeiros, terras e gados e organizado o trabalho por conta de todos, por meio de associações produtoras. E se os modernos não querem continuar a vegetar na servidão e na carestia – terreno onde floresce a riqueza dos açambarcadores – não têm outro caminho a seguir.


Inclusão: 24/06/2021