Octave Mirbeau

Neno Vasco

Maio de 1917


Primeira Edição: revista A Sementeira – 2ª série, N.º 17, Maio de 1917

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/octavio-mirbeau/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Em má hora morreu o virulento panfletário e caricaturista do romance e do teatro. Hora confusa, hora turva, de regressão e ancestralidade…

Entretanto, no próprio mal está o seu corretivo: a imensa preocupação do presente, sobrecarregada ainda com a nova tragédia auroral da revolução russa, não permite prender a cada facto a nossa atenção fatigada e ansiosa. Antes assim. Mais tarde, voltaremos a considerar com calma a imperecível obra de vida de Mirbeau, sem reparar nos seus problemáticos gestos sobre o leito de morte. Deixemos que os corvos das batalhas debiquem no cadável inerte do iconoclasta, e nós guardemos-lhes apenas a sua alma ardente de grande artista revolucionário.

Grande artista revolucionário como bem raros o são. Em geral, o literato faz diletantismo mais ou menos sincero, e as ideias avançadas não os interessam senão pelo seu lado estético, pela sua fertilidade em sensações novas, pela frescura rara do motivo, pela facilidade de as engalanar com formas imprevistas e originais. Esgotado o filão, lá vão eles, muito despreocupadamente, em busca de novo assunto e de novo público, em viagem de exploração para o outro polo. E o mal que os literatos, com os seus exageros literários intencionais e as suas palinódias elegantes de estetas, têm causado à tarefa apaixonada e honesta de emancipação proletária e social apresenta um saldo considerável sobre o bem que lhe possam ter feito, oferecendo-lhe o veículo transmissor da arte, mas vestindo-lhe as ideias, aspirações e intúitos com o manto nem sempre diáfano da fantasia.

Eis porque sinto uma certa contrariedade, quando leio em ingénuos artigos da imprensa operária e avançada um elenco do pessoal em vista, no qual, de cambulhada com os militantes completos, com os simples propagandistas e vulgarizadores, e – vamos lá! – com os teóricos de gabinete, lé vêm candidamente citados romancistas e poetas – artistas, essas crianças mimadas e terríveis de todos os partidos e escolas. Porque enfim os literatos, na melhor das hipóteses, amam sobretudo a sua arte e vêem tudo pelo prisma da sua mentalidade especial, num desequilíbrio provocado por uma constituição social em que a arte e a ciência são modos exclusivos de atividade, separados do trabalho produtivo.

Mirbeau não estará de todo isento dos defeitos por assim dizer profissionais, não estará inteiramente livre da pecha de diletantismo; mas, em todo caso, na sua obra poderosa parece vibrar bem sintidamente a ânsia, a raiva de ferir os esteios da sociedade de rapina e de violência que dispõe do mundo.

E os seus romances e dramas são mais caricaturas ferozes do que novelas e peças de teatro. Aquilo é uma sarabanda infernal de flibusteiros da finança, de tubarões da política, de padres pederastas e vorazes, de meretrizes da alta roda, de lacaios abjetos, de pricólogos de bidé, à Bourget, de pintalegretes e merdimbucas, de pelotiqueiros e safardanas. Mirbeau, no meio da roda, pingalim a estalar continuamente, um riso sarcástico e implacável nos lábios, excita, chicoteia, espicaça. A roda gira, gira, aos pinotes, aos guinchos, às gargalhadas, às contorções epilépticas e sangrentas, a arregaçar a saia até ao baixo ventre, a bater regateiramente no traseiro, a escabujar, a estrebuchar, a mostrar porcamente a alma sórdida e cúpida nos seus mais imundos esconsos. E o pingalim estala continuamente, nas mãos crispadas e nervosas de Mirbeau, que não sente a menor piedade ante aquela turba vil, arquejante de fadiga e lustrosa de suor.

O espetáculo chega a incomodar. Alguns espectadores, muito lívidos, saem da sala cambaleando. Eu confesso que não pude ler até ao fim o horrível «Jardim dos Suplícios».

O estilo é adequado à violência dos sentimentos. São mancheias de tinta, arremessadas raivosamente para a tela. É uma torrente impetuosa, aos borbotões e aos saltos, que às vezes se espreguiça e murmura sobre o areal.

Entretanto, na obra de Mirbeau, que é a mais completa sob o nosso ponto de vista, não se nota demasiadamente a preocupação da tese, escolho onde vão sossobrar tantas tentativas de arte revolucionária. O artista parece apenas pintar o quadro exato da vida social, embora lhe faça realçar as taras com traços caricaturais de extrema violência, sobretudo no romance, porque o seu teatro, naturalmente, é obrigado a assumir formas mais moderadas.

Nenhum grande escritor esboçou como ele tipos mais aproximados do anarquista militante. Jean Roule, o agitador dos «Maus pastores?, é uma bela figura de revolucionário de ação direta. Já os anarquistas de Zola – no Germinal, no Paris, no Roma, no Trabalho – ou são incompletos, ou excecionais, ou falsos.

Nesta mesma revista dei a entender algumas das minhas ideias sobre o valor revolucionário da arte. Desde que ela não seja impudicamente destinada a glorificar o crime e a monstruosidade, a arte, mesmo sem pretenções a propaganda nem a catequização, colabora com os militantes revolucionários, se é posta ao alcance do povo, ou das suas camadas melhores. Comovendo-nos, aperfeiçoando-nos o sentimento, ela torna-nos mais sensíveis e mais sociáveis – criando novas necessidades superiores, delicados e finos sucedâneos dos prazeres brutais e animalescos, fomenta a revolta contra uma organização social em que essas necessidades não podem ser amplamente satisfeitas.

Ora, se a excessiva preocupação da tese vem prejudicar esse efeito, produzindo um meio termo entre a obra de arte e a de ciência, entre o romance e o tratado, com prejuizo para a beleza artística e para a profundidade científica, então permito-me preferir as duas coisas… mais ou menos separadas. Não sei se ofenderei muito a opinião dominante entre os meus amigos e se descairei muito no seu conceito, confessando-lhes francamente que não sinto excessivo entusiasmo por muitos dos livros de Zola, e que a este prefiro decididamente Mirbeau e Anatole France, entretanto tão diversos um do outro, mas ambos possuindo, entre outras, as sublimes virtudes artísticas da sobriedade evocadora e profunda.

Não quer isto dizer que eu concorde inteiramente com a filosofia que se depreende, ou que se pode depreender da obra de Mirbeau. Mirbeau exagera as taras e a preocupação em que elas se encontram. A crueldade, a violência, o sadismo, a cupidez, a hipocrisia aparecem muitas vezes na sua obra como vícios indeléveis, como instintos fundamentais da besta humana. E daí, para o leitor, um sentimento de amarga desesperança, o sentimento desanimador e anti-revolucionário do irremediável.

O militante revolucionário, pelo contrário, confia no poder da vontade e na educação desta força transformadora, e entende que o homem não é bom nem mau, mas é bom ou mau conforme as circunstâncias, conforme o meio em que vive, conforme as condições da sua vida, conforme a situação em que o colocam ou que o deixam ocupar. Para que lutaríamos com efeito, se assim não fosse?

E isto mostra que Mirbeau não era um militante, nem mesmo um teórico, mas sim um literato, apesar de tudo, um com olhos e alma de artista, reforçado de homem de ideias e de alto sentimento, mas artista em todo caso.

Dos mais perfeitos e completos, sem dúvida – e quem nos dera a nós muitos como ele!


Inclusão: 24/06/2021