A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


OS PRECURSORES
A PRIMEIRA INTERNACIONAL E OS TRÊS PROCESSOS DE PARIS


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Uma ideia cara a Dmítrov é que um operário sem grande conhecimento da lei, sem grande experiência politica, bode, graças ao seu instinto de classe e ao seu devotamento proletário, fazer boa figura perante o tribunal e servir utilmente sua causa. Falará, sem dúvida, menos brilhantemente, não encon1rará bastante depressa a réplica justa aos ataques da acusação; mas nada dirá, pelo menos, que possa prejudicar sua classe, seu Partido, cujo interesse jamais perderá de vista e pelos quais estará sempre disposto a sacrificar-se.

Eis uma verdade da qual a história do movimento operário internacional fornece numerosos exemplos. Mas poucos há que sejam, ao mesmo tempo, mais flagrantes e menos conhecidos na França do que certos exemplos franceses: é verdade que a burguesia francesa tudo fez para sufocá-los e emporcalhá-los.

A defesa dos operários da Primeira Internacional, no decorrer dos três processos que o “Império liberal” instituirá para entravar o movimento revolucionário, mereceriam estudo especial. Aqui, dele não podemos dar senão um rápido apanhado e citar alguns breves extratos.

Foi a 28 de setembro de 1864, que nasceu, em Londres, a Associação Internacional dos Trabalhadores. Um programa lido no decorrer de um meeting, por Tolain, um dos três delegados franceses, foi adotado como base de organização. Foi, dois anos depois, em Genebra, que teve lugar o primeiro congresso e foram votados os estatutos inspirados por Marx. Um ano depois, no congresso de Lausanne (no decorrer do qual se enfrentaram o coletivismo e o mutualismo que, aliás, levou a melhor), foi decidido que, uma vez que a emancipação social dos trabalhadores era inseparável de sua emancipação politica, era preciso lutar, por qualquer preço, pelas liberdades politicas. A Associação aderiu também ao congresso da paz que, alguns dias depois, abriu suas sessões em Genebra.

Paz e liberdade! A secção francesa da rua dos Gravilliers, associando essas palavras de ordem às suas reivindicações econômicas, declarava guerra ao Império.

O “Império liberal”, que acreditara poder domesticar o movimento operário francês concedendo-lhe (a 25 de maio de 1864) o direito de coalizão (pouco perigoso para o regime e perfeitamente ilusório, sem os direitos correlativos de reunião e de associação!) não admite essa intromissão do “social” no domínio político.

Pior ainda: os trabalhadores franceses, não contentes com apoiar os grevistas de Roubaix, tomaram a liberdade de protestar contra a intervenção francesa na Itália e de manifestar, a 4 de novembro de 1867, nos grandes boulevards.

A Associação tornara-se “subversiva”; recordou-se que, apesar de seus três anos de existência pública, era não autorizada, ilícita, e, em virtude de uma lei de abril de 1834, começaram as perseguições, a 30 de dezembro, contra todos os membros do bureau parisiense, entre os quais Tolain, Camélinat, Héligon, Murat.

A defesa coletiva foi confiada a Tolain. O advogado imperial acusava cinicamente a Associação de ter rompido o pacto tácito em virtude do qual o governo tinha, até então, fechado os olhos, de tê-lo rompido, intrometendo-se em questões politicas. Tolain demonstrou que era impossível “distinguir o limite que separa a politica da economia social”.(1)

Impossível a tal ponto, que o próprio advogado imperial se mostrara incapaz de fazê-lo!

A guerra, os impostos, não serão, porventura, questões que interessam vitalmente os operários? E as greves de Roubaix?

“Em Roubaix... o fabricante era, ao mesmo tempo, legislador, magistrado e gendarme. Legislador, expedia decretos; magistrado, sentenciava condenações por infrações a esses decretos; gendarme, fazia-as executar, pondo os delinquentes pela porta fora das oficinas. Combatemos esse estado de coisas monstruoso: será isso fazer politica?”(2)

Condenados, cada um a 100 francos de multa (e a Associação dissolvida), os 15 militantes apelaram. Perante a Corte, Murat apresentou a defesa comum. Politicamente, foi mais fraca. Mas foi Tolain quem replicou ao advogado geral: denunciou o processo de opinião(3). Melhor ainda: formulou o problema do Estado; proclamou o papel e o futuro das organizações operárias:

— “Quanto a nós, socialistas, que fomos metralhados em junho e deportados em 2 de dezembro(4) ...absolutamente não nos contentamos com uma palavra ou uma forma exterior. O que queremos mudar são as coisas; na sociedade com que sonhamos, o trabalho será a base constitutiva. Temos, pois, procurado qual seria o papel do Estado e buscado dar-lhe uma definição”.(5)

A Corte confirmou o julgamento.

E eis que novas forças se apresentam na brecha. Forma-se uma segunda comissão, composta de nove membros: entre outros, o encadernador Varlin, o tintureiro Benoit Malon, e ourives Combault. A comissão anuncia publicamente sua constituição, sem se preocupar com perseguições; lança um apelo em favor dos grevistas de Genebra, onde os rapazes da construção civil lutam pela jornada de dez horas. A imprensa, ao publicar o apelo, cria, sem detença, o arsenal de calúnias, que se tornariam tradicionais e quase que se repetem: “agitadores estrangeiros” “ordens vindas de Londres”, o “ouro da Internacional”. Isso em 1868.

A 22 de maio, o governo denuncia os nove membros da comissão ao tribunal correcional do Sena.

No decurso desse segundo processo, é Varlin quem toma a palavra em nome de todos e com que vigor de classe!

— “Se, perante a lei, diz ele, somos, vós juízes e nós acusados, perante os princípios, somos dois partidos: vós, o partido da ordem a qualquer preço, da estabilidade, nós, o partido reformador, o Partido socialista”.(6)

Põe em relevo a desigualdade social, põe em oposição a minoria gozadora parasitaria, e “a grande massa apática na miséria e na ignorância, aqui se agitando sob uma opressão implacável, acolá dizimada pela fome, por toda a parte chapinhando nos preconceitos e nas superstições que perpetuam Sua escravidão de fato”(7). Evoca “o ódio surdo entre a classe que quer conservar e a que quer reconquistar”.(8)

Todos foram condenados a três meses de prisão e 100 francos de multa!

A Associação estava decapitada; ainda era demasiado fraca para superar a provação.

1869-1870: o assassinato de Victor Noir pelo príncipe Pierre Bonaparte despertou a indignação popular; duzentos mil homens acompanharam as exéquias; por pouco teriam marchado sobre Paris. Estala uma grande greve no Creusot; as sociedades operárias confederam-se e crescem. O vento é propício para a união sindical e politica. A Internacional lança-se na luta anti- plebiscitaria. Enfim, surge a provocação policialesca conhecida sob o nome de “complot das bombas”, graças ao qual o ministro Emile Ollivier pretende apavorar o francês médio e dividir a oposição.

O ministro Emile Ollivier é aquele mesmo que, algumas semanas depois, a 30 de junho de 1870, antes da guerra franco-alemã, terá a clarividência de dizer:

— “Para qualquer lado que se olhe não se vê empenhada nenhuma questão irritante e, em época alguma, a manutenção da paz na Europa esteve mais garantida”.

É esse ministro tão bem inspirado quem faz insinuar pela imprensa não-ser a Internacional estranha ao complot. O Conselho federal parisiense repele com desdem a calunia: se o complot existe, a Internacional nada tem que ver com ele. Mas desafia o regime.

“A Associação Internacional dos Trabalhadores, conspiração permanente de todos os oprimidos e de todos os explorados, existirá, apesar de impotentes perseguições contra os chamados chefes, enquanto não houverem desaparecido todos os exploradores, padres e aventureiros políticos”.

Desta vez é demais: este apelo é considerado uma declaração de guerra. E é sob a acusação paradoxal de terem sido, seja chefes ou fundadores, seja simples membros de uma sociedade secreta (!), que 38 militantes da Associação comparecerão a 22 de junho perante a sexta câmara do tribunal correcional do Sena.

A 30 de junho, no próprio dia em que Emile Ollivier anunciava tão oportunamente a paz europeia, a defesa coletiva foi apresentada pelo torneiro de cobre Chalain. Sociedade secreta, a associação mais conhecida, mais numerosa, mais discutida do mundo? Sociedade secreta essa da qual cada resolução é publicada pelos seus vinte e cinco jornais e denegrida por todos os jornais burgueses?

Que quer a associação? A libertação dos trabalhadores “pelos próprios trabalhadores”. Quanto mais “salvador” interessado, mais arrivista: “a experiência ensinou às classes operárias, que só devem contar consigo mesmas: e é esta a ideia-mãe da Internacional’’’. Acusam-na de fomentar, secretamente, greves? Absurdo.

“O que há de verdade, é que a rapacidade dos grandes industriais, a concorrência imoral e desenfreada que fazem uns aos outros à custa dos trabalhadores, mergulham estes numa miséria cada vez mais profunda, e isso numa época em que as ideias de justiça e de emancipação impregnaram as massas”.(9)

A causa das greves são as multas, as retenções arbitrárias que, sob a aparência de previdência, não passam de um meio de fazer descontos sobre os salários para que apenas cheguem às mãos do operário alguns sobejos. “É a soma de trabalho sempre aumentando sem elevação de salário, extenuando o trabalhador, preparando o desemprego e acarretando, com um excedente de fadiga, uma sobrecarga de dependência e de miséria”.(10)

A fortuna de uma minoria de parasitas e de opressores edifica-se sobre o desperdício das riquezas, sobre a espoliação da classe operaria, “porque uma não poderia existir sem a outra”.

— “Será que podereis acreditar que, para sentir males intoleráveis e crescentes, os operários tenham necessidade de que lhes digam que sofrem?”(11).

Mas os privilegiados nada querem ver. Para combater e mal que fazem não conhecem senão a repressão e a calunia. E o mal se agrava.

Chalain denuncia a “Santa-Aliança dos governos e dos reacionários” contra a Internacional, a ignorância e a secura do coração dos economistas, “esses sumos sacerdotes do burguesismo”.(12) Exprime a esperança dos trabalhadores no “destino da espécie humana”.

— “Sim, os proletários estão, enfim, cansados de resignação! Estão cansados de ver suas tentativas de emancipação sempre reprimidas, sempre seguidas de decepções. Estão cansados de ser vítimas do parasitismo, de se sentirem condenados a um trabalho sem esperança, a uma subalternização sem limites, a ver toda a sua vida devorada pelas fadigas e pelas privações. Estão cansados de apanhar as migalhas de um banquete de que pagam todas as despesas”(13).

Os trabalhadores repelem a guerra com todas as suas forças “e não está longe o tempo em que a Internacional tornará, apesar das veleidades governamentais, impossível qualquer guerra”(14). Protestam contra o emprego da força armada ao serviço do capital “da feudalidade industrial e agrícola, não menos odiosa do que a antiga”(15). São injuriados e tratados de saqueadores e de partilhadores.

O que querem é governar-se a si mesmos, sem intermediários; sem salvador; querem a liberdade, a abolição da usura, dos monopólios, do salariado, dos exércitos permanentes, a instrução integral...

— “Qualquer que seja vosso veredito, continuaremos, como no passado, a condicionar abertamente nossos atos a nossas convicções republicanas e socialistas”(16).

E Chalain conclui por um ato de fé na Internacional invencível, expressão da República social e universal.

No decorrer dos debates, houve outras intervenções corajosas que merecem ser citadas:

Fournaise assiste retirarem-lhe a palavra por se ter gloriado de ter sido um dos fundadores da Internacional e condenado.

Outro, o operário gravador Theisz, vê-se também reduzido ao silêncio por ter magnificamente atacado o regime econômico e posto em relevo suas contradições, suas maldades:

— “A partir de 1789, todas as vossas Constituições afirmam e pretendem garantir a liberdade, a igualdade, a fraternidade! Ora, sempre que um povo aceita como objetivo uma fórmula abstrata, filosófica, econômica, religiosa, não tem mais repouso nem trégua, até que tenha trazido esse ideal do domínio das teorias para o mundo dos fatos. Quanto a nós, queremos fazer descer a fórmula revolucionária das, abstrações políticas, onde paira desde 89, para as realidades sociais. Vosso sistema econômico, vossa organização industrial têm como resultado inevitável, fatal, aumentar sempre o número dos assalariados e subordinar o trabalhador ao capitalista, ao mesmo tempo que afirmais como base da organização social a igualdade politica pelo sufrágio universal. E espantai-vos com esse imenso grito de revolta que os trabalhadores do mundo inteiro lançam. Espantai-vos da confusão que se introduz no velho corpo social! O que nos espanta, a nós, é vossa inconsequência!”(17)

Outro ainda, Franckel, ridiculariza o advogado imperial, que; a uma recusa de responder à instrução, tira a conclusão de que a Associação é secreta: “Ignoro em que escola filosófica o senhor advogado imperial aprendeu a dialética; porém seu arrazoado parece-me tão lógico como aquele que,.do fato de ver uma criança fechar os olhos, conclui que seu pai é cego”(18). O que era secreto era a instrução!

Casse, enfim, felicita-se pelo processo, que faz “urna propaganda bastante grande em favor da Internacional”(19); apesar das interrupções repetidas do presidente, faz prevalecer seu direito de dizer que deseja a revolução de todo o coração e quer “que ela rebente amanhã”(20). E conclui com este desafio: “Quereis abater-nos? Se é essa vossa pretensão, senhor advogado imperial, permiti-me dizer-lhe novamente a palavra do meu amigo Murat: não pegue no machado. A arma é pesada, vossa mão é débil e nosso tronco é nodoso”(21).

Varlin, Malon, Murat, Johannard, Pindy, Combault e Héligon foram condenados a um ano de prisão, seus camaradas a dois meses. A Internacional foi declarada “sociedade secreta”. Mas, no ponto em que ela estava, um tal processo, — Casse tinha dito a verdade —, não podia mais do que servi-la. Os acusados tinham-se defendido como proletários e os proletários tinham-nos entendido. Alguns meses depois, os condenados de 8 de julho serão os heróis da Comuna.

A COMUNA DE PARIS

A DEFESA DE FERRÉ

A Comuna! O proletariado parisiense no poder. Sua vitória, seu isolamento e sua derrota. Suas criações e seus erros. Sua atroz dizimação pela ferocidade versalhesa. A morte heróica de Delescluze, Milliére, Varlin e tantos outros. A carnagem e as execuções sumárias, a quente, depois a frio. Os 20.000 mortos. Os 50.000 prisioneiros. O horror das casamatas e dos pontões. A abjeção da imprensa caluniadora e da extrema-esquerda burguesa, que uiva com os lobos. Tudo isso é demasiado conhecido, para que nos detenhamos na sua exposição.

26 conselhos de guerra, 26 “metralhadoras judiciais” (como as apelida justamente Lissagaray(22), 26 máquinas de fuzilar, funcionam em Versalhes, Paris, Vincennes, no monte Valerien, em Saint-Cloud, Sèvres, Saint-Germain, Rambouillet, Chartres. Nelas, despacham-se suspeitos às dúzias, quase sem ouvi-los. Nem mesmo se cogita de respeitar formas jurídicas. É a vingança em série. As condenações caem como um cutelo de cortar carne de repetição, que nem mesmo se tem tempo de enxugar. Morte. Deportação. Degredo.

270 condenações capitais, oito das quais recaem sobre mulheres, dessas “ petroleiras” que cometeram o crime de bater-se nas barricadas e de cuidar dos feridos. Todos e todas morrem de cabeça levantada, sem pestanejar, como soldados operários.

410 condenações a trabalhos forçados por tempo fixo ou por toda a vida, 3.989 à deportação para um recinto fortificado, 3.507 à deportação “simples”, 1.629 à detenção. 64 à reclusão, 29 aos trabalhos públicos, perto de 2.000 à prisão, 322 ao desterro. Tal o balanço oficial que será estabelecido por Mac-Mahon, balanço incompleto, uma vez que apenas diz respeito aos conselhos de guerra (e não aos tribunais criminais) e só toma em consideração os casos da competência de Versalhes. Lissagaray avalia em mais de 13.700 o número total das condenações.

Não chegará a haver 50 comutações de penas: a tristemente famosa Comissão dos Indultos, nomeada a 17 de junho peta Assembleia Nacional, merecerá seu apelide popular de “Comissão dos Assassinos”.

Nessas condições, nessa atmosfera, pode-se imaginar a que ponto, em todos os processos da Comuna, a defesa pôde ser sufocada. Deve-se ainda dizer que os advogados de uniforme rivalizavam quase todos em covardia. Deve-se ainda reconhecer que nem todos os acusados estiveram à altura do seu papel e pouquíssimos dentre eles tentaram ampliar o debate, imprimir à sua defesa um caráter verdadeiramente coletivo. Souberam melhor morrer do que defender-se. Será, aliás, que os deixaram falar, indaga Louis Dubreuilh na Historia socialista?

Três, pelo menos, dentre eles, souberam, sem embargo, durante alguns minutos, não obstante as interrupções, as vaias, impor-se, fazer-se ouvir: Trinquet, Ferré e Louise Michel.

Trinquet e Ferré fizeram parte da primeira fornada: tinha-se decidido montar o primeiro processo com grande espetaculosidade, pois devia servir de tipo e firmar jurisprudência. Foi o 3.° conselho de guerra, com sede em Versalhes, que teve essa honra. É claro, comissário e presidente estavam decididos a recusar qualquer caráter político aos acusados e a seus “crimes”, a considerar a Comuna como um fato de direito comum. Deviam-se condenar à morte esses celerados, esses incendiários, e, uma vez que a pena de morte estava abolida desde 1848 em matéria politica, seria necessário observar, custasse o que custasse, essa regra do jogo!

O coronel Merlin, que presidia, tinha sido um dos oficiais de Bazaine. Quanto ao comissário do governo, o comandante Gaveau, estagiara numa casa de loucos e batia nos prisioneiros na rua. Vê-se que a composição do conselho fora cuidadosa.

Os debates abriram-se a 7 de agosto. Auditório de escol: oficiais, burgueses versalheses, cortesãs e jornalistas ladradores, que uivavam por morte.

A ata de acusação expõe a história da Comuna com a objetividade que logo se pode adivinhar(23): ela teria sido fruto de um duplo complot do partido revolucionário e da Internacional! Teria roubado, assassinado. Théophile Ferré, membro do Comitê de Segurança Geral, era apresentado como o incendiaria do ministério das Finanças. Literatura de baixa polícia!

Apresenta-se a Ferré uma falsificação, o fac-símile de uma ordem que ele teria assinado: “Flambes finances!”: Ferré exige, muito naturalmente, uma comparação das letras e a apresentação do original: “Mas isso é desconfiança!” grita o comissário Gaveau, indignado...

Enquanto a maior parte dos acusados se limita a uma defesa pessoal, um deles, o operário sapateiro Trinquet, membro -da Comuna, revolucionário corajoso e modesto, dá-lhes uma lição de dignidade proletária. Reivindica a honra de ter cumprido seu dever até o fim:

— “Fui enviado à Comuna por meus concidadãos; fiz o que pude; estive nas barricadas e lamento não ter sido morto nelas e não presenciaria, hoje, o triste espetáculo de colegas que, depois de terem tido sua parte de ação, não querem ter sua parte de responsabilidade. Sou insurrecto, não o nego”.(24)

Não foram necessárias menos de 17 audiências para interrogar os 17 acusados, entre os quais figurava o grande pintor Courbet. Durante todo esse tempo, a imprensa insaciável exigia suas cabeças. O requisitório foi de cabo de esquadra: o comissário Gaveau media esses homens por seu porte, reduzia a Comuna a uma empresa de pilhagem e de gorjetas, valia-se da calunia e apenas se sujava a si mesmo. O auditório deleitava-se, batia palmas a cada arroto do seu ator favorito! O comissário aplaudido impava; não se rebaixaria a discutir com tal gente, com um Ferré: “Perderia meu tempo e o vosso, Senhores, discutindo as numerosas acusações que pesam sobre ele”.

Quando a palavra é concedida ao defensor ex-officio de Ferré, é Ferré que se levanta e entende defender-se a si próprio, Lê uma declaração, sem fazer caso das interrupções com que o presidente a mutila, nem das vaias do auditório bem-pensante.

— “Depois da conclusão do tratado de paz, consequência da vergonhosa capitulação de Paris, a República estava em perigo, os homens que haviam sucedido ao Império, desabado na lama e no sangue

Merlin: — Desabado na lama e no sangue... Aqui eu vos interrompo. Vosso governo não estava, porventura, na mesma situação?

Ferré: — “...aferravam-.se ao poder e, embora acabrunhados pelo desprezo público, preparavam, na sombra, um golpe de Estado; persistiam em recusar a Paris a eleição de seu Conselho Municipal...”

Gaveau: — Não é verdade!

Merlin: — O que dizeis, Ferré, é falso. Continuai: porém, pela terceira vez, eu vos tirarei a palavra.

Ferré: — “Os jornais honestos e sinceros eram suprimidos, os melhores patriotas condenados à morte.

Gaveau: — O acusado não pode continuar essa leitura. Vou pedir a aplicação da lei.

Ferré: — “...Os realistas preparavam-se para a partilha dos restos da França; enfim, na noite de 18 de março, acreditaram-se em condições e tentaram o desarmamento da guarda nacional e a prisão em massa dos republicanos...”

Merlin: — Bem, sentai-vos, dou a palavra ao vosso defensor.

O advogado designado ex-officio pede que Ferré possa ler as últimas frases de sua declaração. Merlin cede.

Ferré: — “... Membro da Comuna, estou nas mãos dos vencedores. Eles querem minha cabeça: que a tomem! Nunca salvarei minha vida pela covardia. Livre vivi e livre quero morrer. Só acrescento uma palavra: a fortuna é caprichosa; confio ao futuro o cuidado de minha memória e de minha vingança’'.

Merlin: — A memória de um assassino!

Gaveau: — É ao degredo que se deve enviar um tal manifesto!

Merlin: — Tudo isso não corresponde aos atos pelos quais estais aqui.

Ferré: — “Isto significa que aceito a sorte que me está designada”.

Infelizmente, essas palavras altivas ainda não encontraram eco. Os coacusados de Ferré e de Trinquet não compreendem o quanto uma defesa politica teria repercutido mais longe, no espaço e no tempo, como teria continuado sua obra sem fazer-lhes correr nenhum risco a mais e que, ao contrário, teria constituído sua única chance de salvação coletiva. Mas Ferré ia pagar com a vida seu isolamento:

“Em vez de apresentar uma defesa coletiva, escreve, com razão, Lissagaray(25), ou de trancar-se num silêncio, que teria salvo sua dignidade, os acusados passaram a palavra aos advogados”.

E que advogados! O de Courbé era assistente do Figaro e confidente da Imperatriz. Cada qual procurou um sucesso pessoal à custa dos “celerados aqui presentes”. Foi urna corrida de servilismo. Nenhum acusado se levantou para protestar! A burguesia versalhesa e seu tribunal não os premiaram de modo algum por esse rebaixamento. O presidente insultava ps advogados, que não achava bastante servis. Ferré e Lullier foram condenados à morte, os outros ao degredo, à deportação, à prisão.

Lullier foi agraciado. Quanto a Ferré morreu como se tinha defendido: de pé.

LOUISE MICHEL

Uma mulher presa tinha podido trocar algumas cartas com Ferré. Foi denunciada, transferida para Arras, depois, após a execução de Ferré, devolvida a Versalhes, onde ia, por sua vez, afrontar os juízes militares: essa mulher, era a “Virgem Vermelha”, Louise Michel.

Admirável figura de revolucionária, Louise Michel, tinha abandonado a pena pelo fuzil e atirado. À frente de um batalhão de mulheres, era a primeira no assalto, a última a esconder-se por detrás da barricada. Escapa à morte. Na prisão, entre os condenados de direito comum, devorada pelos piolhos, tem conhecimento da sorte de seus companheiros de armas. Não fraqueja.

A 16 de dezembro é que comparece perante o conselho de guerra. Irá, como tantas outras, mostrar-se muito prudente, defender sua vida ou confiar a um defensor o cuidado de falar por ela e de solicitar indulgência?

Não. Enfrenta os juízes. Recusa qualquer compromisso.

O que defende não é sua pessoa; é a causa a que votou sua existência, a causa da Revolução. Reivindica a responsabilidade, a honra de seus atos:

— “Não me quero defender, brada ela; não quero ser defendida! Toda eu pertenço à Revolução social e declaro aceita; a responsabilidade de todos os meus atos. Aceito-a sem restrições”.(26)

Melhor ainda. Ataca, denuncia os massacradores e glorifica o povo que se defendeu. Afirma-se solidaria com todos os seus irmãos de combate:

— “Acusais-me de ter participado da execução dos generais? A isso responderei: sim; se me encontrasse em Montmartre, quando eles quiseram mandar atirar sobre o povo, não teria hesitado em mandar atirar sobre os que davam semelhantes ordens. Quanto ao incêndio de Paris, sim, participei dele. Queria opor uma barreira de chamas aos invasores de Versalhes. Não tenho cúmplices, agi por minha própria iniciativa”.

O comissário do governo, capitão Dailly, requer a pena de morte. Ela responde com este desafio heroico:

— “O que exijo de vós, que vos dizeis conselho de guerra, que vos apresentais como meus juízes, que não vos ocultais como a comissão das graças, é o campo de Satory, onde já caíram meus irmãos. É preciso separar-me da sociedade; disseram-vos que o fizésseis: pois bem! O comissário da República tem razão. Uma vez que, ao que parece, todo coração que bate pela liberdade só tem direito a um pouco de chumbo, exijo minha parte! Se me deixardes viver, não cessarei de gritar vingança e denunciarei à vingança dos meus irmãos os assassinos da comissão das graças” (112)fasa.

O presidente, sufocado, retira-lhe a palavra.

—“Acabei, conclui; se não sois covardes, matai-me!”

Os juízes militares hesitam. Não ousam condenar à morte a acusadora indomável: a pena aplicada é a deportação em recinto fortificado.

Na Nova Caledônia, seu devotamento aos deportados e aos indígenas impõe respeito e admiração. Em 1879, recusa a graça que se lhe oferece: não voltará à França senão com os outros comunardos. Mas a República e o socialismo reconquistaram o terreno; o povo exige anistia; ela será votada a 11 de julho de 1880.

Mal Louise Michel toca o solo dá França retoma seu posto de combate. Em janeiro de 1882, é condenada a 15 dias de prisão. Um ano depois, a 9 de maio de 1883, tendo uma grave crise agravado a miséria e o desemprego, toma parte numa manifestação de sem-trabalho: é perseguida, com o anarquista Emile Pouget, por excitação à pilhagem. Comparece nos dias 21 e 22 de junho perante a Corte Penal do Sena. Ainda desta vez, indiferente à própria sorte, são seus camaradas que ela vai amparar, é a revolução que ela vai defender:

— “O que ides julgar é um processo político. Dais-me o papel de primeira acusada; aceito-o. Sim, se há uma culpada a vossos olhos, sou eu e eu só. Fanatizei todos os meus amigos. A mim é que é preciso ferir, só a mim. Ha muito tempo, todos vós o sabeis, que fiz o sacrifício de minha pessoa e nada mais existe que me possa ser agradável ou desagradável. Só vejo a revolução. A ela é que servirei sempre, a ela é que saúdo. Que ela se possa erguer sobre homens em vez de erguer-se sobre ruínas!”

Seis anos de reclusão. Mas o povo ouviu-a: manifestar-lhe-á sua afeição por ocasião das exéquias de sua mãe, e, depois, no fim de sua vida de luta, em janeiro de 1905, em suas próprias exéquias. Seu exemplo não se perdeu: sua memória inspirou as heroínas de todas as Comunas, de Paris a Moscou, de Viena a Cantão. No momento atual, guia suas emulas admiráveis, as milicianas, que, ao apelo da Passionária, a Louise Michel espanhola, defendem vitoriosamente, em Madrid, as fronteiras da liberdade.


Notas de rodapé:

(1) Processo da Associação Internacional dos Trabalhadores (1.ª e 2.a comissões do bureau de Paris), p. 48, 2.° ed., publicada pela Comissão de Propaganda do Conselho Federal Parisiense da Associação Internacional dos Trabalhadores, julho de 1870. (retornar ao texto)

(2) Idem, p. 50. (retornar ao texto)

(3) “Enquanto a administração vos acreditou sem importância, escarneceu Tolain, deixou-vos agir; presentemente, porém, ela pensa que ides tornar-vos perigosos e denuncia-vos à justiça,” (V. Processo da Associação Internacional dos Trabalhadores, 2.a ed., julho1 de 1870, p. III). (retornar ao texto)

(4) Nisto, o presidente interrompe Tolain e ameaça-o de caçar-lhe a palavra. (V. Processo da Associação Internacional dos Trabalhadores, 2.a ed., julho de 1870, p. 114.) (retornar ao texto)

(5) Idem, p. 114. (retornar ao texto)

(6) Idem, p. 161. (retornar ao texto)

(7) Idem, p. 161. (retornar ao texto)

(8) Idem, p. 164. (retornar ao texto)

(9) Terceiro Processo da Associação Internacional dos Trabalhadores, em Paris. Paris, Armand le Chevalier, ed., julho de 1870, p. 100. (retornar ao texto)

(10) Idem, p. 101. (retornar ao texto)

(11) Idem, p. 102. (retornar ao texto)

(12) Idem, p, 103. (retornar ao texto)

(13) Idem, p. 104. (retornar ao texto)

(14) Idem, p. 105. (retornar ao texto)

(15) Idem, p. 106. (retornar ao texto)

(16) Idem, p. 106. (retornar ao texto)

(17) Idem, ps. 188 e 189. (retornar ao texto)

(18) Idem, p. 213. (retornar ao texto)

(19) Idem, p. 192. (retornar ao texto)

(20) Idem, p. 194. (retornar ao texto)

(21) Idem, p. 198. (retornar ao texto)

(22) Lissagaray: História da Comuna de 1871, p. 404, Librairie de Travail, 1929. (retornar ao texto)

(23) Idem, p. 404. (retornar ao texto)

(24) Idem, p. 404. (retornar ao texto)

(25) Idem, p. 408 (retornar ao texto)

(26) Ann-Léo Zévaès: Louise Michel, Bureau d’Édition, p. 13. — Irma Boyer: Louise Michel, p. 22. (retornar ao texto)

Inclusão: 05/06/2020