A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


O PROCESSO DE LEIPZIG
A vitória de Leipzig: suas causas


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Desde esse grande acontecimento, de significação universra1, que foi a batalha de Leipzig, já se escoaram mais de quatro anos. *

E mal se pode ainda hoje apreciar todas as consequências dessa primeira derrota seria do regime hitleriano.

Antes, porém, de examinar-lhe as consequências, rememoremos-lhe as causas.

Tentamos evocar, em Dmitrov, o bolchevique exemplar, o chefe bolchevique tal como deve ser e tal como é quando cai nas mãos do inimigo. Procuramos mostrar o incomparável herói e o pujante dialético marxista-leninista isolado do mundo exterior, só, vitorioso de si mesmo e enfrentando todos, policiais, carcereiros, procuradores, juízes, defensores ex-officio, testemunhas, espiões, ministros, jornalistas.

Tão só, em aparência, que teve de lutar por e mesmo contra aqueles com cujo apoio devia poder contar, seus camaradas coacusados, oh! vacilantes.

Só? Verdadeiramente só?

Não. Chegou o momento de dizer que, na verdade, Dmitrov não esteve só, soube não estar só, soube vencer também a solidão.

Assim como tinha sabido romper os anéis de ferro que lhe algemavam as mãos, assim como soube romper o “círculo diabólico” das testemunhas de acusação antes de fecha lo novamente sobre o Mefistófeles que o forjara, também conseguiu romper o cerco de silêncio, de isolamento e de mentira em que o inimigo acreditava tê-lo cativo. E, se o conseguiu, foi precisamente pelo meio exclusivo de sua dialética e de seu heroísmo.

Pela frente, por detrás e em volta dele, por cima do crânio obtuso de seus juízes, para lá dos regentes da Propaganda, para lá do auditório hostil e consternado, soube fazer-se ouvir pelo seu verdadeiro auditório, invisível, porém presente., inumerável.

Soube forçar a audiência dos milhões de trabalhadores, alemães e não alemães, a audiência de todos os povos do mundo.

Soube, não obstante os rigores do segredo, não obstante os esforços do presidente e dos homens uniformizados encarregados de sua guarda, transformar seu banco de réu, não apenas em cátedra de acusação, mas em tribuna, e que tribuna! A mais alta que jamais fora erigida em plena cidadela inimiga.

Soube mobilizar os povos ao chamado de sua grande voz, de sua voz surda e martelada, que atravessaria paredes, mares e continentes.

E sem essa mobilização, — Dmitrov o disse à imprensa estrangeira e soviética, quando de sua chegada a Moscou, a 27 de fevereiro de 1934 —, “não estaríamos certamente aqui, a vos falar. E o fascismo alemão não teria renunciado a nos aniquilar moral e fisicamente”.(1)

Todos se lembram, Dmitrov sempre esteve consciente de que seria politicamente muito difícil condenar os quatro acusados comunistas como incendiários do Reichstag. Sempre esteve convencido de que, por este motivo, o processo conduziria à absolvição. Mas, ao contrário, não acreditava em sua libertação: contava ser condenado por alta traição e, em todo o caso, executado sob um pretexto qualquer.

— “Era muito claro para mim, disse-me. E nisso é que a campanha no estrangeiro, a mobilização mundial desempenhou papel muito grande. Eu sabia que, se existisse possibilidade de nos salvarmos, esta não poderia resultar senão de nossa luta corajosa, consequente e bolchevique perante o tribunal, uma vez que essa luta se ligasse com a grande onda de descontentamento que as provocações levantavam na Alemanha e no estrangeiro”.

Em primeiro lugar, na Alemanha.

— “Eu tomava em consideração os fatos seguintes: na Alemanha, inicialmente, parte da população acreditava realmente que os comunistas é que tinham incendiado o Reichstag. Mesmo alguns membros do Partido comunista alemão, politicamente pouco instruídos, admitiam que o Partido haveria de ter querido dar um sinal por esta maneira, etc... Contava sacudir essa convicção, por meio de uma atitude muito clara e política perante o tribunal e do desmascaramento político, sistemático, da provocação. Contava que uma opinião completamente diferente, um estado de espírito de desconfiança e de descontentamento para com o governo hitlerista contagiaria as próprias fileiras dos partidários nacional-socialistas; contava que, uma vez desmascarada a provocação, os nazis ficariam desacreditados no seio das grandes massas. Calculava que isso criaria na Alemanha uma disposição de espírito contraria ao governo e favorável aos acusados. E esperava, além disso, ao adotar uma atitude firme perante O Tribunal, encorajar de certo modo os nossos. Minha intenção era mostrar às massas oprimidas nas prisões, nos campos de concentração, nas usinas, etc., a essas massas que viviam em certo estado de depressão, uma centelha de coragem revolucionária.

Queria mostrar-lhes pelo exemplo — continuou — que isso de lutar contra O fascismo não é tão terrível como parece. E sabia, além disso, que tal atitude perante o tribunal mobilizaria, no estrangeiro, milhões de trabalhadores, conquistar-lhes-ia a simpatia, o apoio, a defesa. Sublinhei a diferença que existe entre acusados inocentes, a quem uma injusta perseguição vale a piedade das massas, e aqueles cuja atitude admirável perante o tribunal conquista a simpatia, o apoio e a defesa das massas. Sabia perfeitamente que, na nossa qualidade de acusados inocentes, estava ganha para nós a piedade das massas no estrangeiro. Mas não bastava a piedade: do que carecíamos, era de um apoio ativo, de uma defesa ativa, coisa que não poderia obter a não ser através de uma luta ousada e sem medo contra o fascismo, perante o tribunal. Eu não a poderia obter, já o sabia, a não ser fazendo de mim o porta-voz das massas antifascistas da Alemanha e do estrangeiro. E sabia que isso aconteceria na medida em que obtivesse êxito no papel de porta-voz dessas massas, o que levantaria sua simpatia, seu apoio, sua defesa ativa, tanto no estrangeiro quanto na Alemanha”.

Na Alemanha, sobretudo.

— “Sim, contava com uma maior repercussão desse estado de espírito na própria Alemanha, em comparação com o estrangeiro. Naturalmente, estava consciente de que isso não se poderia exprimir abertamente; mas, para mim, o decisivo era que as massas, nas usinas e na rua, nas próprias fileiras do Partido nacional-socialista, se tornariam descontentes e que, quando esse descontentamento subisse, o governo seria forçado a tomá-lo em conta. Isso constituía uma pressão sobre O governo hitleriano e sobre o tribunal fascista”.

E, assim, por sua coragem, pelo combate que travava perante o tribunal, Dmitrov buscava e obtinha um tríplice resultado:

  1. A participação ativa das massas na defesa, na libertação dos quatro acusados comunistas.
  2. O enfraquecimento da base de massas do poder hitlerista.
  3. O encorajamento das vítimas do fascismo e a demonstração, por exemplo, de que, nas condições mais difíceis, pode-se pôr em cheque e vencer o fascismo em seu próprio terreno.

Dmitrov provou que esses três objetivos estão indissoluvelmente ligados.

“Mesmo do ponto de vista pessoal, a defesa política e revolucionária é a mais justa”. O processo de Leipzig pôs em destaque o resultado dos dois métodos, o de Dmitrov e o de Torgler.

— “Torgler, observou-me Dmitrov, acreditava poder salvar-se mais facilmente e preparar para si um destino menos duro, escolhendo um defensor nazi e uma defesa não política. O resultado, é que ele ainda está na cadeia, ao passo que eu estou livre”.(2)

Hoje, não há ninguém que ignore que a libertação dos acusados comunistas de Leipzig se deva à pressão irresistível das massas mobilizadas pelo heroísmo de Dmitrov.

Mas, como Dimitrov o faz justamente observar, por muito importante que seja a mobilização internacional, é a mobilização nacional, a mobilização das massas que vivem e trabalham no próprio país em que se cogita de arrancar os acusados ao carrasco, que é decisiva. E eis porque Dmitrov insiste sobre o estado de espírito das massas alemãs.

Em sua brochura intitulada De pé para salvar Thaelmann, Dmitrov escreve:

“Depois que a maioria esmagadora do povo alemão, inclusive milhares e milhares de nacional-socialistas, se convenceu de nossa inocência e repudiou com cólera e indignação a acusação provocadora, depois que a emoção da opinião pública mundial, no que concerne à provocação grosseira, se insinuou por inumeráveis canais no seio do povo alemão, depois que Hitler foi obrigado a constatar que estava irremediavelmente isolado no mundo inteiro, no que concerne a essa questão, não mais havia vantagem política para o governo em suprimir-nos. Foi obrigado a reconhecer que nossa supressão teria, ao contrário, ameaçado seriamente sua influência demagógica sobre as massas, inclusive em suas próprias formações de combate. E, visto como o nacional-socialista é forçado a tomar em consideração precisamente esse estado de espírito, Hitler teve que ceder e renunciar aos seus primeiros objetivos”.(3)

Eis uma lição a seguir na campanha empreendida pela libertação de Thaelmann. E Dmitrov não deixou de pedir minha atenção para este ponto:

— “Quando se conseguir, disse-me, convencer os milhões de trabalhadores e intelectuais, na própria Alemanha, da completa inocência de Thaelmann, convencê-los de que Thaelmann lutou por suas ideias, pelo seu Partido, quando forem ganhas essas massas para sua defesa, então o estado de espírito formado no país exercerá sobre o governo alemão uma pressão muito mais forte do que qualquer outra campanha. A campanha do estrangeiro deve ser conduzida de maneira a que constitua um apoio, um reforçamento da campanha levada a cabo na Alemanha. Quando os nazis virem que um processo contra Thaelmann poderia prejudicar a influência política do seu Partido, manifestar-se-á um descontentamento para com seu Partido em suas fileiras. A salvação de Thaelmann depende, na minha opinião, da questão de saber se o movimento de opinião, na Alemanha, se tornará bastante forte para que o governo nazi renuncie, em seu próprio interesse político, à supressão de Thaelmann e seja até forçado a pô-lo em liberdade”.


Notas de rodapé:

(1) Idem, p. 165. (retornar ao texto)

(2) Há três anos, quando Dmitrov me falava assim, Torgler, que ainda não tinha consumado sua traição, ainda estava preso. (retornar ao texto)

(3) Idem, p. 178. (retornar ao texto)

Inclusão: 05/06/2020