A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


DISCÍPULOS E ÊMULOS
O HERÓI BRASILEIRO LUÍS CARLOS PRESTES: “CAVALEIRO DA ESPERANÇA”


capa

A América está também ilustrada por toda uma legião de revolucionários, que souberam combater e defender-se, ombro a ombro, com os melhores discípulos europeus e asiáticos de Dmitrov.

Conto poder, em futuro próximo, glorificar Tom Mooney, Herndon e seus êmulos da América do Norte.

Quanto à América Latina, sua história é hoje dominada por uma das mais nobres figuras que jamais se souberam impor à admiração, ao amor dos povos: é a de Luis Carlos Prestes, cujo nome, já legendário, há muito ultrapassou as fronteiras do imenso Brasil, sua pátria, atravessou os oceanos e conquistou universal popularidade!

Quem não ouviu ainda falar do “cavaleiro da esperança”, do jovem herói de epopeia, que consagrou sua vida à independência do seu povo, oprimido pela ditadura semifeudal de Vargas e pelo fascismo importado da Alemanha?

Quem ainda não ouviu contar a história extraordinária, mas verdadeira, canção de giesta dos mil e quinhentos da Coluna Prestes,(1) de sua expedição através do país — mais de 20.000 quilômetros em 3 anos (1924-1927)?

Em novembro de 1935, o tirano Vargas multiplicara as provocações, prodigalizara as concessões ao imperialismo e ao fascismo estrangeiro, dispensara mais de 10.000 soldados e graduados, agravara ao extremo a miséria e o descontentamento das massas.

A insurreição estala no nordeste. Carlos Prestes que, desde 1934, é O chefe do movimento popular conhecido sob o nome de Aliança Nacional Libertadora, assume a direção da sublevação.

Esmagada esta, começa a caça ao homem, à moda hitlerista.. Prisões em massa.. A elite do Exército, da cultura, da democracia engorgita as prisões.

Um deputado comunista alemão, Arthur Ewert, que nada tem a ver com a insurreição, está encarcerado desde o fim do mês de dezembro de 1935, emparedado vivo num buraco sem ventilação, sem cama nem roupa, torturado, subalimentado: emagreceu 30 quilos!

Ghioldi, secretário-geral do Partido Comunista Argentino, estranho, também ele, aos acontecimentos de novembro, é preso em fevereiro de 1936. Maltratado, debilitado, vítima de uma doença de deficiência, perde todos os dentes.

O próprio Prestes é preso em março. Encarcerada na prisão da Polícia Especial, é separado de todos, isolado do mundo, na mais estrita incomunicabilidade. Só um ano depois é que, pela primeira vez, por intermédio do seu advogado ex-oficio,Dr. Sobral Pinto, sua mãe virá a ter notícias dele.

Sua esposa, Olga Benário, de origem alemã, é, depois de vários meses de prisão, extraditada para a Alemanha. Em setembro de 1936, embarcam-na à força, grávida e perto de ter criança, num navio hitlerista. É encarcerada numa prisão de Berlim, com sua filhinha, e, depois, num campo de concentração.

A polícia de Vargas desfechou assim um duplo golpe. Prestou... ou pediu à sua cúmplice e suserana, a Gestapo, um desses serviços que as ditaduras fascistas não se negam mutuamente. E, ainda por cima, julgou encontrar, assim, pela mais refinada tortura moral, um meio de pressão capaz de vergar a resistência indomável de Prestes.

Vã esperança. Prestes não é desses que vergam. Prestes enfrentou seus carrascos, do mesmo modo que seus juízes.

As forças de paz, de democracia, de independência, que se quiseram aglutinar nele, em face do seu exemplo, contra-atacaram.

A campanha em favor de Prestes tornou-se pujantemente internacional. Foi ela que abriu, peia primeira vez, brecha nos muros da masmorra em que o herói isolado está votado a uma morte lenta.(2)

Foi a admirável solidariedade dos povos que, até o presente, salvou a vida de Prestes, de Ewert, de Ghioldi e de seus companheiros de algemas.

Foi ela quem entregou à velha mãe de Prestes a filhinha de seu filho, o bebê de Olga, Anita Leocádia, muito recentemente trazida de Berlim para a França, por uma advogada francesa, a Sra. Drugeon.

Foi ela quem conquistou (em julho de 1937), a transferência de Prestes para uma prisão ordinária e a de Ewert, desenterrado de sua fossa, para a cela que Prestes havia ocupado, depois para uma casa de detenção comum.

Mas não pode, nem obter ainda sua libertação, nem poupá-lo a condenações tão duras que, se as devesse cumprir por inteiro, ou mesmo parcialmente, nas condições em que se encontram os prisioneiros desse país, sua saúde não resistiria muito tempo.

Abriu-se o*seu processo, em primeira instância, a 7 de maio de 1937, depois de um sumário de 17 meses. Perante um tribunal de exceção, intitulado de Segurança Nacional, em virtude de uma lei de exceção (enfeitada com o mesmo título), votada em setembro de 1936, isto é, muito tempo depois dos fatos que pune, muito tempo depois da prisão dos acusados e aplicável retroativamente, tudo de acordo com a escola hitlerista, superando mesmo os monstros de “direito” saídos dos cérebros arianos do Dr. Frank e do Dr. Kerr!

Nada de defesa oral. Limitação a cinco, do número de testemunhas de defesa, as quais se devem apresentar espontaneamente, sem citação. Direito para o Tribunal de repelir as perguntas da defesa, quando estas lhe parecem suscetíveis não apenas de exceder os quadros do processo, mas de lhe prolongar o curso. Faculdade de condenação sem provas, por “livre convicção’'.

A assistência do advogado designadoex-oficio é obrigatória. O que o foro do Rio de Janeiro designou, o Dr. Sobral Pinto, católico liberal, que, aliás, toma sua missão a sério, corajosamente, choca-se com a recusa categórica de Prestes.

Em tais condições de sufocamento, despojado de todo o direito de ler e escrever, privado de todo meio material (mesmo de papel, de caneta e de lápis) indispensável à preparação de sua defesa política, Prestes nega a competência desse tribunal inconstitucional e recusa comparecer. Em sua maioria, os coacusados fazem o mesmo. Levam-nos à força. Emprega-se até gás contra dois dentre eles.

O tribunal reúne-se na prisão. Depois de uma jornada de “debates”, encerra-se essa sinistra farsa de justiça, condenando Prestes a 16 anos e 8 meses de prisão, Ewert a 14 anos, Ghioldi a 4 anos.

Antes da sentença, o Dr. Sobral Pinto achou que era seu dever pronunciar uma alegação em que, sem dúvida de boa fé, deformou o pensamento cuja missão era defender.

Fiel aos conselhos de Lênin, relativos aos advogados, Prestes não hesita em contestá-lo.

Escreve-lhe uma carta, na qual explica as razões do seu desacordo e traça as linhas diretrizes de sua ação. No próprio momento em que lha apresenta, a Polícia Especial arranca-lhe das mãos e rasga-a.

Ele a reconstituí e esse texto é que leria alguns meses depois, a 8 de setembro, perante a jurisdição de apelação, o Supremo Tribunal Militar.

Esta será toda a sua defesa, porquanto, também, cada um dos acusados apenas dispõe de 15 minutos. Se “usa desse direito”, seu advogado não tem direito à palavra (e eis porque essa instância recusou a palavra ao Dr. Sobral Pinto).

Imagine-se em que condições, ainda desta vez, Prestes, Ewert e Ghioldi compareceram. A audiência não é mais a portas fechadas. Admite-se um público restrito. Mas a polícia está mobilizada. As ruas vizinhas, os próprios telhados do Palácio da Justiça estão guarnecidos de metralhadoras.

Medidas de violência. Mas, sobretudo, medida do medo que ao regime de Vargas as massas inspiram. Do amor que o povo sente por seu herói, por seus heróis.

Ao descer do carro celular, Prestes é provocado, agredido pelos policiais que o escoltam. Batido até fazer sangue.(3)

Em audiência, protesta. Durante o quarto de hora que lhe é “concedido” (nem um minuto a mais), dispõe do tempo exato para ler o documento em que está confinada sua defesa e que ocupa o lugar de alegação.

Temos esse documento à mão. Deixando de lado a lição legitima que Prestes deu ao seu advogadoex-oficio, limitar-nos-emos a citar os trechos que mostram como um discípulo de Dmítrov deve tirar proveito do menor tempo de palavra ao seu dispor, para adotar uma linha ofensiva, para desmascarar o inimigo, para fazer penetrar nas massas as palavras de ordem políticas do seu Partido.

“Ninguém, mais do que eu, deseja explicar publicamente e bem alto os seus gestos, sua atitude perante o povo brasileiro e toda a opinião pública mundial...

“...Minha liberdade, pelo uso que faço dela, é algo de muito grande para os “juízes” da reação, que podem até pensar que ela dependa de sua consciência e esteja em suas mãos. Faço-lhe justiça. Perante ela, devem considerar-se ridículos e insignificantes, como os invertebrados da claque getulista, que tremem de medo perante a possibilidade de que minha palavra e, por meu intermédio, a palavra do meu Partido, possam chegar aos ouvidos do nosso povo...

“Para mim, na situação completamente particular em que me encontro, o essencial é que se saiba que continuo a lutar contra os que exploram e oprimem nosso povo. Por que não se me deixa falar? Será que não posso orientar, pela palavra do meu Partido, os milhões de concidadãos que me desejam ouvir?

“Então, por minha atitude, procurarei fazer sentir ao nosso povo quanto é necessário atualmente lutar pelos seus direitos constitucionais, contra a legislação terrorista da ditadora, pela libertação dos prisioneiros políticos e contra os policiais da reação”.(4)

Dirigindo-se ao seu advogado ex-oficio, católico, afirma que tão somente o regime nacional libertador que os comunistas e, com eles, seus aliados não comunistas da Frente Popular querem (“alguns dos quais são católicos como vós”), assegurará a liberdade de consciência e de opinião.

“Os senhores da hora, exclama, têm medo da liberdade. Em nome de uma ‘guerra santa’ contra o comunismo, de fato perseguem, prendem, torturam, assassinam, não apenas os comunistas, mas todos os que não estão de acordo com os dirigentes atuais.

“Mas, mesmo contra o comunismo, por que? Então o povo brasileiro não tem o direito de reunir-se, de estudar, de progredir, de propagar seu ponto de vista, sua ideologia de classe? Por que haveremos nós de viver eternamente na ilegalidade, enquanto que, nos países mais civilizados do mundo, o Partido Comunista é legal?... Por que nós, brasileiros, não nos poderíamos lançar livremente nas grandes batalhas eu; que os homens se podem empenhar lealmente, altivamente, fazendo uso do seu pensamento e da sua palavra?”

Citando o exemplo de Dmitrov, recusa-se a adotar perante os tribunais uma atitude negativa de boicote:

“Nossos adversários querem julgar-nos? Dão-nos uma tribuna para que nos defendamos? Nós a aceitamos com prazer e sem ilusões. Conscientes dos fatores essenciais que determinam a decisão dos juízes, fazemos o que podemos para utilizar tal tribuna, considerando-a como um posto de honra ao qual subimos pela luta de classes...”

Numa passagem, notável por seu realismo e por seu impulso, dirige-se ao exército brasileiro, que lança em oposição à polícia de Vargas, e cujo papel progressista, “tradições de dignidade, de altivez, de coragem cívica” (a partir de Benjamin Constant) e ligação histórica com o povo, exalta.

“Sendo comunistas, soldados da revolução proletária, portanto, nunca esquecemos onde estamos e quais são as relações sociais atuais em nosso país. E, na luta presente, pela independência econômica e pelo progresso do Brasil, são precisamente os oficiais do nosso exército e da nossa marinha que, dentre os elementos da pequena burguesia e da burguesia nacional, podem melhor observar e sentir quanto são necessárias a revolução nacional libertadora, a instauração de um Governo realmente independente dos bancos e das grandes empresas estrangeras, assim como dos proprietários feudais que exploram nosso povo...”

Útil e altiva linguagem, cuja ressonância o povo e até parle do exército não esquecerão tão cedo.

A censura do regime ainda não nos deixou conhecer a defesa de Arthur Ewert. Sabemos, todavia, que, também ele, professou sua fé política. Sabemos que «protestou contra os odiosos tratamentos por que o fizeram passar e comprometeram gravemente sua saúde, sem lhe esmagar a resistência. Sanemos que sua inabalável firmeza provocou a admiração de todos e até dos seus carrascos.

Quanto a Rodolfo Ghioldi, possuímos sua notável alegação, que é um modelo de senso, de ironia e de altivez.

Refuta, ataca de frente a acusação caluniadora que pretende atribuir o movimento nacional libertador da Aliança a instruções secretas da Internacional Comunista que seus agentes estrangeiros e brasileiros teriam recebido por intermédio do embaixador soviético de Montevidéu!

Mas não deixa de começar por uma calma afirmação, perfeitamente dmitroviana, de sua fé política, de sua solidariedade de militante.

— “Como membro do Partido Argentino e da Internacional Comunista, declaro com altivez a este Tribunal que sou solidário com seus atos e resoluções dos quais assumo a inteira responsabilidade”.

Depois, profliga a confusão que se esforçam baixamente por fazer entre a Internacional Comunista e o Governo Soviético.

Certamente, “o dever elementar de todo comunista é a defesa da URSS, primeiro Estado proletário do mundo onde se edifica vitoriosamente a nova sociedade sem classes, a sociedade socialista, o mais pujante reduto da paz universal e do antifascismo.

“Assim fazendo, defendemos os interesses diretos e indiretos da classe operária, os interesses de todos os povos que sofrem o jugo nacional ou social..

Mas é absurdo e falso identificar um Estado que mantém relações diplomáticas e comerciais com os outros Estados com uma organização política internacional.

Depois, denuncia pujantemente a falsidade, a falsidade monstruosa e provocadora, de que se tenta tirar “prova” de que a Aliança Nacional Libertadora tem sua origem e seus fins na “mão de Moscou”: o discurso de Van Min, no VII Congresso, foi grosseiramente falsificado, para comprometer, ao mesmo tempo, a Aliança, os comunistas brasileiros e os refugiados políticos, tais como Ewert e ele.

E é o refugiado, o refugiado do mesmo continente, que conclui como disse em seu preludio, com uma afirmação, a afirmação nobilíssima de sua esperança, de sua confiança de comunista argentino na libertação de uma América Latina finalmente unida contra o fascismo bárbaro e os perigos de guerra:

— “Na prisão, familiarizei-me muito estreitamente com as aspirações e o estado de espírito do povo brasileiro, com o qual me sinto definitivamente ligado por um sentimento de viva simpatia e de solidariedade. Vi quanto é profunda nele a vontade de libertação nacional. Como comunista argentino, título que uso com orgulho, sinto-me também cidadão da América Latina, que tende a libertar-se do perigo fascista, da dominação fascista, do atraso econômico e cultural. Como vítima da restrição do direito de asilo, luto pelo estabelecimento das liberdades sociais. E se me é lícito, nesta hora sombria, formular uma esperança, no momento em que as nações se atacam umas às outras, como salteadores, quando certos grandes Estados aspiram criar uma Mandchúria americana e quando as forças internas do país conspiram contra a dignidade e a integridade do nosso povo, direi que acredito em que os homens conscientes dos nossos países sejam capazes de unir suas forças contra a barbárie fascista, a fim de assegurar a causa da paz e afastar o perigo de agressão que nos ameaça..."

Tais são os homens cuja vida e integridade física, já terrivelmente comprometida, a solidariedade internacional deve salvar a qualquer preço, obtendo sua libertação próxima, imediata.

Sente-se tão forte perante eles, o tirano que, após esses métodos de guerra civil, ainda agravou sua ditadura, instaurou uma ditadura mais aberta, mais autoritária, e para impedir as eleições presidenciais de janeiro de 1938, ameaçadoras para ele, desfechou o golpe de Estado, de tipo hitleriano, sob a pressão hitleriana, promulgou uma nova “Constituição”, (se se ousa enfeitar com esse nome um tal documento) pela qual foram eliminadas todas as sobrevivências, todos os vestígios de democracia.

Não terá ele mostrado seu medo ao povo e ao exército?

Não terá ele, por sua política de opressão, de repressão e de manejo externo, assinado sua própria falência, provado a fraqueza, a fragilidade de seu regime?

Contra ele, um homem; uma multidão:

O jovem herói da libertação, da independência, o novo Bolívar da América Latina, Luis Carlos Prestes, merece e possui o amor das massas brasileiras.

Encarna seus interesses e suas aspirações profundas, sua vontade de libertação social e nacional.

É inútil esforçar-se por afogar-lhe a voz, porque ela ainda ressoará mais alto e mais longe.

Estendeu-se, não apenas e apesar do segredo, apesar da censura, a todas as regiões, por todo o povo desse imenso país semifeudal e semi*colonial (do tamanho da Europa e com a população da França), cujo futuro é ilimitado, mas ainda a todo o novo Continente, aos dois continentes, a todas as partes do mundo.

Inspiremo-nos em seu exemplo. Ele surge da história, não escrita, da que se faz aos nossos olhos. Todo militante eleve conhecê-lo, propagá-lo, estar pronto a segui-lo.

O herói brasileiro Prestes, o herói argentino Ghioldi, o herói alemão Ewert pertencem a todos, ao lado de Matias Rakosi, de Anna Pauker, de Antikainen, de André Marty, de Thaelmann, à legião dmitroviana, cujos sobreviventes, tanto quanto os mortos (os Edgar André, os Itsikava) são a honra da humanidade, os pioneiros do futuro, os pais e irmãos dolorosos, assinalados pelo sofrimento, mas indomáveis, homens novos.

São nossos Cavaleiros da Esperança!


Notas de rodapé:

(1) Romain Rolland, apelo publicado na Correspondance Internationale, n. 8, de 1937, p. 241. (retornar ao texto)

(2) Este livro foi publicado em 1939 e Prestes libertado (anistia) em meados de 1945. (Nota dos Editores.) (retornar ao texto)

(3) Prestes foi brutalmente agredido pelo soldado da Polícia Especial, Durval Bellini Ferreira Lima, esbirro de Filinto Müller. (Nota dos Editores.) (retornar ao texto)

(4) Traduzido do francês, por não dispormos no momento do texto original em português. (Nota dos Editores.) (retornar ao texto)

Inclusão: 05/06/2020