Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã

Friedrich Engels

Junho de 1886

Link Avante

Escrito: Escrito nos começos de 1886.

Primeira Edição: Publicado na revista Die Neue Zeit, n.os 4 e 5, de 1886 e, em separado, em Stuttgart em 1888.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!" - Edição dirigida por um colectivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA, tomo III, pág: 378-421.
Tradução: José BARATA-MOURA. Publicado segundo o texto da edição de 1888. Traduzido do alemão.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.


I

capa

O escrito que temos diante de nós(1*) leva-nos de volta a um período que, no tempo, fica atrás de nós uma boa geração, mas que se tornou para a geração actual na Alemanha tão estranho como se tivesse já um século inteiro de idade. E, no entanto, foi o período da preparação da Alemanha para a revolução de 1848; e tudo o que desde então tem acontecido entre nós é apenas uma continuação de 1848, apenas execução testamentária da revolução.

Tal como em França no século XVIII, também na Alemanha no século XIX a revolução filosófica preludiou o desmoronamento político. Mas como ambas tiveram um aspecto diverso! Os franceses em luta aberta com toda a ciência oficial, com a Igreja, frequentemente também, com o Estado; os seus escritos impressos além-fronteiras, na Holanda ou em Inglaterra, e eles próprios demasiado frequentemente quase no ponto de irem parar à Bastilha. Os alemães, em contrapartida — professores, mestres da juventude colocados pelo Estado, os seus escritos [como] manuais reconhecidos, e o sistema que remata todo o desenvolvimento, o de Hegel, elevado mesmo, em certa medida, ao nível de régia filosofia de Estado prussiana! E podia a revolução esconder-se por detrás destes professores, por detrás das suas palavras pedanto-obscuras, nos seus períodos pesados, maçadores? Não eram, então, precisamente as pessoas que naquela altura passavam por representantes da revolução — os liberais — os adversários mais aguerridos dessa filosofia que desarranja as cabeças? O que, porém, nem os governos nem os liberais viram, viu-o já em 1833, pelo menos, um homem, mas é certo que se chamava Heinrich Heine[N194].

Tomemos um exemplo. Nenhuma proposição filosófica concitou tanto o agradecimento de governos limitados e a cólera de liberais igualmente limitados como a famosa proposição de Hegel:

«Tudo o que é real, é racional, e tudo o que é racional, é real.»(2*)

Isto era, pois, palpavelmente, a santificação de todo o existente, a consagração filosófica do despotismo, do Estado policial, da justiça de gabinete, da censura. E tal como Frederico Guilherme III assim o entendeu, assim [o entenderam] os seus súbditos. Mas, em Hegel, de modo nenhum tudo aquilo que existe é também sem mais real. Para ele, o atributo da realidade [Wirklichkeit] cabe apenas àquilo que, simultaneamente, é necessário [notwendig];

«a realidade mostra-se no seu desdobramento como [sendo] a necessidade»(3*)

uma medida governamental qualquer — Hegel dá mesmo o exemplo «de uma certa instituição fiscal»(4*) — para ele, de modo nenhum passa, portanto, também sem mais por real. O que, porém, é necessário, mostra-se em última instância também como racional, e, aplicada ao Estado prussiano daquela altura, a proposição de Hegel quer apenas dizer: este Estado é racional, corresponde à razão, na medida em que é necessário; e se ele, no entanto, nos parece mau, mas apesar da sua maldade continua a existir, a maldade do governo encontra a sua justificação e a sua explicação na correspondente maldade dos súbditos. Os prussianos daquela altura tinham o governo que mereciam.

Ora, segundo Hegel, a realidade não é de modo nenhum um atributo que caiba a um estado de coisas social ou político dado em todas as circunstâncias e em todos os tempos. Pelo contrário. A república romana era real, mas o império romano que a suplantou também. A monarquia francesa, em 1789, tinha-se tornado tão irreal, isto é, tão desprovida de toda a necessidade, tão irracional, que tinha de ser aniquilada pela grande revolução, de que Hegel sempre fala com o maior entusiasmo. Aqui, portanto, a monarquia era o irreal, a revolução o real. E, assim, no curso do desenvolvimento, todo o anteriormente real se torna irreal, perde a sua necessidade, o seu direito de existência, a sua racionalidade; para o lugar do real que está a morrer entra uma nova realidade, [uma realidade] viável — pacificamente, se o antigo é suficientemente inteligente para morrer sem resistência; pela força, se ele se barrica contra essa necessidade. E, assim, a proposição de Hegel inverte-se, pela própria dialéctica de Hegel, no seu contrário: tudo o que no domínio da história humana é real torna-se, com o tempo, irracional, é portanto já por destinação irracional, está de antemão contaminado de irracionalidade; e tudo o que na cabeça dos homens é racional está destinado a tornar-se real, por muito que isso também possa contradizer a realidade aparente existente. A proposição da racionalidade de todo o real resolve-se, segundo todas as regras do método de pensar de Hegel, nesta outra: tudo o que existe merece perecer.(5*)

Mas, a verdadeira significação e o carácter revolucionário da filosofia de Hegel (temos que nos limitar aqui a [considerá-la] como o fecho de todo o movimento desde Kant) residia, precisamente, em que ela, de uma vez por todas, deu o golpe de misericórdia no carácter definitivo de todos os resultados do pensar e do agir humanos. A verdade, que se tratava de conhecer na filosofia, não era mais para Hegel uma colecção de proposições dogmáticas prontas que, uma vez encontradas, apenas requeriam ser aprendidas de cor; a verdade residia agora no processo do próprio conhecer, no longo desenvolvimento histórico da ciência, que se eleva de estádios inferiores do conhecimento para [estádios] sempre superiores, sem, porém, chegar alguma vez, pelo achamento de uma pretensa verdade absoluta, ao ponto em que ela não pode avançar mais, em que não lhe resta mais do que ficar de braços cruzados e olhar de boca aberta para a verdade absoluta alcançada. E isto no domínio do conhecimento filosófico, assim como no de qualquer outro conhecimento e no do agir prático. Tão-pouco quanto o conhecimento, pode a história encontrar um fecho pleno num estado ideal perfeito da humanidade; uma sociedade perfeita, um «Estado» perfeito, são coisas que só podem existir na fantasia; pelo contrário, todos os estados históricos que se seguem uns aos outros são apenas estádios transitórios no curso de desenvolvimento sem fim da sociedade humana do inferior para o superior. Cada estádio é necessário, portanto, está justificado para o tempo e as condições a que deve a sua origem; mas torna-se caduco e injustificado face a novas, a superiores, condições que gradualmente se desenvolvem no seu próprio seio; tem de dar lugar a um estádio superior ao qual, por seu lado, voltará a chegar a vez do declínio e da decadência. Assim como a burguesia, através da grande indústria, da concorrência e do mercado mundial, dissolve na prática [praktisch] todas as instituições estáveis e veneráveis pela idade, também esta filosofia dialéctica dissolve todas as representações de verdade absoluta definitiva e os seus correspondentes estados absolutos da humanidade. Perante ela não subsiste nada de definitivo, de absoluto, de sagrado; ela mostra a transitoriedade de tudo e em tudo, e nada subsiste ante ela senão o ininterrupto processo do devir e do perecer, da ascensão sem fim do inferior ao superior, de que ela própria é mero reflexo [Widerspiegelung] no cérebro pensante. Ela também tem, é certo, um lado conservador: ela reconhece a justificação de determinados estádios do conhecimento e da sociedade para o seu tempo e circunstâncias; mas também só isso. O conservadorismo desta maneira de ver é relativo, o seu carácter revolucionário é absoluto — é o único absoluto que ela admite.

Não precisamos de entrar aqui na questão [de saber] se esta maneira de ver está de acordo com o estado actual da ciência da Natureza que prevê para a existência da própria Terra um possível fim — mas para a sua habitabilidade um fim bastante seguro —, que, portanto, atribui também à história humana não só um ramo ascendente como também um descendente. Encontramo-nos, em todo o caso, ainda bastante longe do ponto de viragem a partir do qual a história da sociedade vai para baixo e não podemos exigir da filosofia de Hegel que se ocupe de um objecto que, no tempo dele, a ciência da Natureza ainda não tinha posto na ordem do dia.

Mas, o que, de facto, há aqui a dizer, é isto: o desenvolvimento acima [referido] não se encontra com esta agudeza em Hegel É uma consequência necessária do seu método, que ele próprio porém, nunca tirou com esta expressividade. E isto, sem dúvida, pela simples razão de que ele estava obrigado a fazer um sistema, e um sistema de filosofia, segundo as exigências tradicionais, tem de se rematar por uma qualquer espécie de verdade absoluta.

Portanto também, por mais que Hegel afirme, nomeadamente, na Logik(6*) que esta verdade eterna não é senão o próprio processo lógico ou histórico, ele próprio vê-se compelido a dar um fim a esse processo, porque, precisamente, nalgum sítio ele tem de chegar ao fim com o seu sistema. Na Logik, ele pode voltar a fazer desse fim um começo, na medida em que aí o ponto final, a Ideia absoluta — que só é absoluta na medida em que ele não sabe dizer absolutamente nada acerca dela — se «exterioriza» [«entäussert»] na Natureza, isto é, se transforma [nela], e, mais tarde, regressa a si própria no Espírito [Geist], isto é, no pensar e na história. Mas, em conclusão da filosofia toda, um semelhante regresso ao começo só é possível por um caminho. Nomeadamente, colocando-se o fim da história no [facto] de a humanidade chegar ao conhecimento, precisamente, daquela Ideia absoluta e de se declarar que esse conhecimento da Ideia absoluta é alcançado na filosofia de Hegel. Com isto, declara-se, porém, todo o conteúdo dogmático do sistema de Hegel como verdade absoluta, em contradição com o seu método dialéctico dissolvente de todo o dogmático [alies Dogmatische] com isto, o lado revolucionário fica abafado sob o [lado] conservador que [o] asfixia. E o que vale para o conhecimento filosófico, vale também para a prática histórica. A humanidade que, na pessoa de Hegel, chegou à elaboração da Ideia absoluta tem também, na prática [praktisch], de ter chegado ao ponto de poder pôr em execução essa Ideia absoluta na realidade. As reivindicações políticas práticas da Ideia absoluta perante os contemporâneos não devem, portanto, ser demasiado ambiciosas. E, assim, encontramos em conclusão da Rechtsphilosophie que a Ideia absoluta se deve realizar naquela monarquia de estados [ständische Monarchie] que Frederico Guilherme III tão obstinadamente prometeu em vão aos seus súbditos, por conseguinte, numa dominação indirecta, limitada e moderada, das classes possidentes, adaptada às condições pequeno-burguesas alemãs da altura; pelo que nos é ainda demonstrada, por via especulativa, a necessidade da nobreza.

As necessidades internas do sistema só chegam, portanto, para explicar a produção de uma conclusão política muito dócil, por intermédio de um método de pensar de par em par revolucionário. A forma específica desta conclusão provém, sem dúvida, do facto de que Hegel era alemão e de que, tal como ao seu contemporâneo Goethe, lhe pendia uma ponta de peruca de filisteu. Goethe, tal como Hegel, eram, cada um no seu domínio, um Zeus olímpico, mas ambos nunca se viram totalmente livres do filisteu alemão.

Isto tudo não impediu, no entanto, o sistema de Hegel de abarcar um domínio incomparavelmente maior do que qualquer sistema anterior e de desenvolver nesse domínio uma riqueza de pensamento que ainda hoje causa espanto. Fenomenologia do Espírito (a que poderíamos chamar um paralelo da embriologia e da paleontologia do Espírito; um desenvolvimento da consciência individual através dos seus diversos estádios, apreendido como reprodução abreviada dos estádios por que a consciência dos homens historicamente passa), Lógica, Filosofia da Natureza, Filosofia do Espírito, e esta última, de novo, elaborada nas suas subdivisões históricas, separadas: Filosofia da História, do Direito, da Religião, História da Filosofia, Estética, etc. — em todos estes diversos domínios históricos Hegel trabalha para encontrar e mostrar o fio do desenvolvimento que os perpassa; e nisto, ele não era apenas um génio criador, mas também um homem de erudição enciclopédica; em todos eles fez época. E evidente que, em virtude das necessidades do «sistema», bastante frequentemente ele teve aí de recorrer àquelas construções forçadas, acerca das quais os seus inimigos anões até hoje ainda fazem uma gritaria tão horrorosa. Mas estas construções são apenas o quadro e o andaime da sua obra; se não se ficar por aí inutilmente, se se penetrar mais profundamente no poderoso edifício, encontrar-se-á inúmeros tesouros que ainda hoje conservam o seu pleno valor. Em todos os filósofos, o «sistema» é, precisamente, o perecível, e isto, precisamente, porque ele decorre de uma necessidade [Bedürfnis] imperecível do espírito humano: a necessidade de triunfo sobre todas as contradições. Mas, se todas as contradições são eliminadas de uma vez por todas, chegámos à pretensa verdade absoluta: a história mundial está no fim e, no entanto, deve continuar, embora não lhe reste mais nada para fazer — portanto, uma nova contradição, insolúvel. Assim que compreendermos — e, em definitivo, ninguém nos ajudou mais a essa compreensão do que o próprio Hegel — que a tarefa da filosofia, colocada dessa maneira, não significa senão a tarefa de que um filósofo singular deve realizar aquilo que só a humanidade inteira no seu desenvolvimento progressivo pode realizar — assim que compreendermos isto, estará também no fim toda a filosofia no sentido da palavra até aqui. Abandona-se a «verdade absoluta», inalcançável por esta via e por cada um individualmente, e, em troca, perseguimos as verdades relativas alcançáveis pela via das ciências positivas e do compêndio [Zusammenfassung] dos seus resultados por intermédio do pensar dialéctico. Com Hegel, rematà-se, em geral, a filosofia; por um lado, porque ele reuniu todo o desenvolvimento dela no seu sistema, da maneira mais grandiosa; por outro lado, porque, se bem que inconscientemente, ele nos mostra o caminho [que nos leva] deste labirinto dos sistemas ao conhecimento positivo real do mundo.

Compreende-se o efeito enorme que este sistema de Hegel teve de produzir na atmosfera da Alemanha tingida de filosofia. Foi uma procissão triunfal que durou decénios e que de modo nenhum parou com a morte de Hegel. Pelo contrário, precisamente de 1830 a 1840, a «hegelice» [«Hegelei»] dominou do modo mais exclusivo e tinha contagiado mesmo, mais ou menos, os seus adversários; precisamente nesse tempo, perspectivas de Hegel penetraram com a maior abundância, consciente ou inconscientemente, nas mais variadas ciências e levedaram igualmente a literatura popular e a imprensa diária, aonde a «consciência culta» habitual vai buscar a sua matéria de pensamento. Mas esta vitória em toda a linha era apenas o prelúdio de uma luta interna.

A doutrina de Hegel no seu conjunto deixava, como vimos, abundante espaço para o alojamento das mais diversas visões de partido práticas; e, na prática, na Alemanha teórica daquela altura, havia, antes do mais, duas coisas: a religião e a política. Quem pusesse o peso principal no sistema de Hegel podia ser bastante conservador em ambos os domínios; quem visse o principal no método dialéctico podia, tanto religiosa como politicamente, pertencer à oposição mais extrema. O próprio Hegel, apesar dos acessos de cólera revolucionários bastante frequentes nas suas obras, parecia, no conjunto, inclinar-se mais para o lado conservador; ou não lhe tivesse custado o seu sistema, de longe, mais «amargo trabalho de pensamento» do que o seu método. Para o fim dos anos trinta a cisão na escola desenhou-se cada vez mais. A ala esquerda, os chamados jovens hegelianos [Junghegelianer], na luta com ortodoxos pietistas e reaccionários feudais, abandonaram pedaço após pedaço daquela reserva filosófico-distinta face às questões quentes do dia que, até aí, tinha assegurado à sua doutrina tolerância estatal e mesmo protecção; e quando, em 1840, a pietice ortodoxa e a reacção feudal-absolutista subiram ao trono com Frederico Guilherme IV, uma aberta tomada de partido era inevitável. A luta seria travada ainda com armas filosóficas, mas não mais por objectivos abstracto-filosóficos; tratava-se directamente do aniquilamento da religião tradicional e do Estado existente. E se nos Deutsche Jahrbücher os fins últimos práticos ainda apareciam preponderantemente sob disfarce filosófico, a escola jovem-hegeliana revelou-se na Rheinische Zeitung de 1842 directamente como filosofia da burguesia radical com aspirações e já só utilizou a cobertura filosófica para enganar a censura.

A política era, nessa altura, um domínio muito espinhoso e, por isso, a luta principal virou-se contra a religião; esta era, nomeadamente desde 1840, indirectamente também uma luta política. A Leben Jesu(7*) de Strauss, em 1835, tinha dado o primeiro impulso. Mais tarde, Bruno Bauer opôs-se à teoria da formação evangélica de mitos aí desenvolvida, com a demonstração de que toda uma série de narrativas evangélicas haviam sido fabricadas pelos próprios autores. A polémica entre ambos foi conduzida sob o disfarce filosófico de uma luta da «autoconsciência» [Selbstbewusstsein] contra a «substância»; a questão de se as histórias de milagres evangélicas surgiram no seio da comunidade [Gemeinde] por formação não-consciente tradicional de mitos ou se foram fabricadas pelos próprios evangelistas foi empolada na questão de se na história mundial era a «substância» ou a «autoconsciência» o poder activo decisivo; e, finalmente, veio Stirner, o profeta do anarquismo hodierno — Bakúnine tomou dele muita coisa — e sobrecoroou a soberana «autoconsciência» com o seu soberano «Único»(8*).

Não insistiremos mais sobre este lado do processo de decomposição da escola de Hegel. Mais importante é para nós isto: a massa dos jovens-hegelianos mais decididos foi remetida, pelas necessidades práticas da sua luta contra a religião positiva, para o materialismo anglo-francês. E aí entrou em conflito com o seu sistema de escola. Enquanto o materialismo apreendia a Natureza como o unicamente real, esta representava, no sistema de Hegel, apenas a «exteriorização» [Entäusserung] da Ideia absoluta, por assim dizer, uma degradação da Ideia; em todas as circunstâncias, o pensar e o seu produto de pensamento — a Ideia — são aqui o originário, a Natureza [por sua vez é] o derivado que, em geral, só existe por condescendência da Ideia. E era à volta desta contradição que melhor ou pior, se andava.

Veio então a Wesen des Christenthums(9*) de Feuerbach. Com um golpe, pulverizou a contradição, ao pôr de novo no trono, sem rodeios, o materialismo. A Natureza existe independentemente de toda a filosofia; ela é a base sobre a qual nós, homens, nós mesmos produtos da Natureza, crescemos; fora da Natureza e dos homens não existe nada, e os seres superiores que a nossa fantasia religiosa criou são apenas o reflexo [Ruckspiegelung] fantástico do nosso próprio ser. O encantamento foi quebrado; o «sistema» foi feito explodir e atirado para o lado, a contradição, porque existente apenas na imaginação, foi resolvida. — Uma pessoa tem, ela própria, que ter vivido o efeito libertador deste livro, para fazer uma ideia disso. O entusiasmo foi geral: momentaneamente fomos todos feuerba-chianos. Quão entusiasticamente Marx saudou a nova concepção e quanto ele — apesar de todas as reservas críticas — foi por ela influenciado, pode ler-se na Heilige Familie.(10*)

Mesmo os erros do livro contribuíram para o seu efeito momentâneo. O estilo beletrístico, em certas passagens mesmo empolado, assegurou-lhe um público numeroso e, de qualquer modo, foi um refrescamento após longos anos de hegelice abstracta e abstrusa. O mesmo vale para o excessivo endeusamento do amor que, perante a soberania tornada insuportável do «pensar puro», encontrava uma desculpa, se é que não justificação. Mas, o que não devemos esquecer [é que]: precisamente, a estas duas fraquezas de Feuerbach se ligou o «socialismo verdadeiro»(11*) que, desde 1844, se espalhou pela Alemanha «culta» como uma praga, o qual no lugar do conhecimento científico pôs a frase beletrista, no lugar da emancipação do proletariado pela reorganização económica da produção pôs a libertação da humanidade por intermédio do «amor», em suma, se perdeu na beletrística e em transportes amorosos desagradáveis, cujo tipo era o senhor Karl Grün.

O que, além disto, há que não esquecer [é que]: a escola de Hegel estava dissolvida, mas a filosofia de Hegel não tinha sido criticamente vencida. Strauss e Bauer pegaram cada um dos seus lados e viraram-no polemicamente contra o outro. Feuerbach quebrou o sistema e atirou-o simplesmente para o lado. Mas não se vence uma filosofia, simplesmente com o declará-la falsa. E uma obra tão poderosa como a filosofia de Hegel, que teve uma influência tão grande sobre o desenvolvimento espiritual da nação, não se deixou pôr de lado pelo facto de se a ignorar sem mais. Ela tinha de ser «superada» no seu próprio sentido, isto é, no sentido em que a sua forma fosse criticamente aniquilada, mas o novo conteúdo através dela ganho fosse salvo. Como isto aconteceu, veremos adiante.

Entretanto, a revolução de 1848, contudo, pôs de lado a filosofia toda com a mesma sem-cerimónia com que Feuerbach o seu Hegel. E, com isto, também o próprio Feuerbach foi empurrado para o plano recuado.

II

A grande questão fundamental de toda a filosofia, especialmente da moderna, é a da relação de pensar e ser. Desde os tempos muito recuados em que os homens, ainda em total ignorância acerca da sua própria conformação corporal e incitados por aparições em sonho(12*), chegaram à representação de que o seu pensar e sentir não seriam uma actividade do seu corpo, mas de uma alma particular, habitando nesse corpo e abandonando-o com a morte — desde esses tempos, tinham de ter pensamentos acerca da relação dessa alma com o mundo exterior. Se, na morte, ela [alma] se separava do corpo [e] continuava a viver, não havia nenhum motivo para lhe emprestar ainda uma morte particular; surgiu, assim, a ideia da sua imortalidade que, naquele estádio de desenvolvimento de modo nenhum aparece como uma consolação, mas como um destino [Schicksal] contra o qual nada se pode, e, bastante frequentemente, como entre os Gregos, como uma positiva infelicidade. Não foi a necessidade religiosa de consolação, mas o embaraço proveniente da estreiteza igualmente geral [de vistas] acerca do que fazer com a alma — uma vez admitida [esta] — depois da morte do corpo, que levou, de um modo geral, à fastidiosa imaginação da imortalidade pessoal. Por uma via totalmente semelhante, surgiram, através da personificação dos poderes da Natureza, os primeiros deuses que, na ulterior elaboração das religiões, tomam cada vez mais uma figura extramundana, até, finalmente, por um processo, que ocorre naturalmente no curso do desenvolvimento espiritual, de abstracção — eu quase diria, de destilação — surgir na cabeça dos homens, a partir dos muitos deuses mais ou menos limitados e limitando-se reciprocamente, a representação de um único e exclusivo deus das religiões monoteístas.

A questão da relação do pensar com o ser, do espírito com a Natureza — a questão suprema da filosofia no seu conjunto —, tem, portanto, não menos do que todas as religiões, a sua raiz nas representações tacanhas e ignorantes do estado de selvajaria. Mas, ela só podia ser posta na sua plena agudeza, só podia alcançar toda a sua significação, quando a humanidade europeia acordasse da longa hibernação da Idade Média cristã. A questão da posição do pensar em relação ao ser — que, de resto, na escolástica da Idade Média também desempenhou o seu grande papel —, a questão: que é o originário, o espírito ou a Natureza? — esta questão agudizou-se, face à Igreja, nestes [termos]: criou deus o mundo ou existe o mundo desde a eternidade?

Conforme esta questão era respondida desta ou daquela maneira, os filósofos cindiam-se em dois grandes campos. Aqueles que afirmavam a originariedade do espírito face à Natureza, que admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse — e esta criação é frequentemente, entre os filósofos, por exemplo, em Hegel, ainda de longe mais complicada e mais impossível do que no cristianismo —, formavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a Natureza como o originário, pertencem às diversas escolas do materialismo.

Originariamente, ambas as expressões — idealismo e materialismo — não significavam senão isto, e não serão aqui utilizadas em outro rentido. Veremos adiante que confusão surge se se faz entrar algo de diferente nelas.

Mas a questão da relação de pensar e ser tem ainda um outro lado: como se comportam os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia para com esse mesmo mundo? Está o nosso pensar em condições de conhecer o mundo real, podemos nós produzir, nas nossas representações e conceitos do mundo real, uma imagem especular [Spiegelbild] correcta da realidade? Esta questão chama-se, na linguagem filosófica, a questão da identidade de pensar e ser, e é respondida afirmativamente, de longe, pelo maior número de filósofos. Em Hegel, por exemplo, a sua resposta afirmativa entende-se por si; pois, aquilo que nós conhecemos no mundo real é, precisamente, o seu conteúdo conforme ao pensamento, aquilo que faz do mundo uma realização por estádios da Ideia absoluta, a qual Ideia absoluta existiu algures desde a eternidade, independentemente do mundo e antes do mundo; mas salta aos olhos sem mais que o pensar pode conhecer um conteúdo que de antemão é já conteúdo de pensamento. Salta aos olhos, do mesmo modo, que, aqui, aquilo que há que demonstrar está já tacitamente contido no pressuposto. Isso de modo nenhum impede, porém, Hegel de tirar da sua prova da identidade de pensar e ser a ulterior conclusão de que a sua filosofia, porque é correcta para o pensar dele, é também, então, a única correcta e de que a identidade de pensar e ser tem de se comprovar pelo [facto] de a humanidade traduzir de pronto a filosofia dele da teoria para a prática e remodelar o mundo todo segundo princípios fundamentais de Hegel. Isto é uma ilusão que ele partilha, mais ou menos, com todos os filósofos.

Além destes, há, porém, ainda uma série de outros filósofos que contestam a possibilidade de um conhecimento do mundo ou, pelo menos, de um conhecimento exaustivo [erschöpfende]. Pertencem-lhe, entre os modernos, Hume e Kant, e ela [essa série] desempenhou um papel muito significativo no desenvolvimento filosófico. O decisivo para a refutação desta perspectiva foi já dito por Hegel, tanto quanto isso era possível do ponto de vista idealista; o que Feuerbach acrescenta de materialista é mais brilhante [de espírito, geistreich] do que profundo. A mais percuciente refutação desta, como de todas as outras tinetas filosóficas, é a prática, nomeadamente, a experimentação e a indústria. Quando nós podemos demonstrar a correcção da nossa concepção de um processo natural, fazendo-o nós a ele próprio, produzindo-o a partir das suas condições, fazendo-o, acima de tudo, tornar-se utilizável para objectivos nossos, põe-se fim à inapreensível «coisa em si» de Kant. As matérias químicas produzidas em corpos vegetais e animais permaneceram tais «coisas em si» até a química orgânica as ter começado a preparar uma após outra; com isso, a «coisa em si» tornou-se uma coisa para nós, como, por exemplo, a matéria corante da ruiva-dos-tintureiros, a alizarina, que já não fazemos crescer nos campos nas raízes de ruiva-dos-tintureiros, mas tiramos muito mais barato e mais simplesmente do alcatrão de hulha. O sistema solar copernicano foi durante trezentos anos uma hipótese, em que se podia apostar cem, mil, dez mil, contra um, mas, no entanto, sempre uma hipótese; mas, quando Leverrier, a partir dos dados fornecidos por este sistema, calculou, não só a necessidade da existência de um planeta desconhecido, como também o lugar em que esse planeta tinha de estar no céu, e quando Galle encontrou realmente, então, esse planeta[N196], nessa-altura, o sistema copernicano foi provado. Se, no entanto, o relançamento da concepção de Kant é tentado na Alemanha pelos neo-kantianos e o da de Hume em Inglaterra (onde ela nunca morreu) pelos agnósticos, isso é, face à refutação teórica e prática [delas] há muito efectuada, cientificamente, um retrocesso e, praticamente, apenas uma maneira envergonhada de aceitar sub-rep-ticiamente o materialismo e de o negar perante o mundo.

Os filósofos, porém, neste longo período de Descartes até Hegel e de Hobbes até Feuerbach, de modo nenhum foram impelidos para diante apenas, como acreditavam, pela força do puro pensamento. Pelo contrário. O que, na verdade, os impeliu para diante foi, nomeadamente, o progresso poderoso e sempre mais rapidamente impetuoso da ciência da Natureza e da indústria. Nos materialistas, isto mostrava-se logo à superfície, mas também os sistemas idealistas se encheram cada vez mais com um conteúdo materialista e procuraram conciliar a oposição de espírito e matéria panteisticamente; de tal modo que, finalmente, o sistema de Hegel representou apenas um materialismo, segundo método e conteúdo idealistamente posto de cabeça para baixo [auf den Kopf].

É, por conseguinte, compreensível que Starcke, na sua caracterização de Feuerbach, investigasse primeiro a posição dele para com esta questão fundamental acerca da relação de pensar e ser. Após uma curta introdução, em que é descrita em linguagem desnecessariamente filosófico-pesada a concepção dos filósofos anteriores, nomeadamente, desde Kant, e em que Hegel, por um ater-se demasiado formalista a passagens isoladas das suas obras, sai muito desfavorecido, segue-se uma exposição pormenorizada do curso do desenvolvimento da própria «metafísica» de Feuerbach, tal como resulta da sequência dos respectivos escritos deste filósofo. Esta exposição está elaborada de um modo aplicado e sinóptico, apenas sobrecarregado, como o livro todo, com um balastro, de modo nenhum inevitável, de maneiras filosóficas de se exprimir que actua de um modo tanto mais incómodo quanto menos o autor se atém à maneira de se exprimir de uma só e mesma escola ou então do próprio Feuerbach, e quanto mais ele mistura lá dentro expressões das mais diversas orientações, nomeadamente, das que agora grassam e a si próprias se chamam filosóficas.

O curso do desenvolvimento de Feuerbach é o de um hegeliano — a bem dizer, nunca totalmente orotodoxo — para o materialismo, um desenvolvimento que, num determinado estádio, condiciona uma rotura total com o sistema idealista do seu predecessor. Finalmente, é empurrado com uma força irresistível para a compreensão de que a existência pré-mundana da «Ideia absoluta» de Hegel, a «pré-existência das categorias lógicas», antes, portanto, de haver mundo, não é mais do que um resto fantástico da crença num criador extramundano; de que o mundo material, sensivelmente perceptível, a que nós próprios pertencemos, é o único real e de que a nossa consciência e pensar, por muito supra-sensíveis que pareçam, são o produto de um órgão material, corpóreo, do cérebro. A matéria não é um produto [Erzeugnis] do espírito, mas o espírito é ele próprio apenas o produto [Produkt] supremo da matéria. Naturalmente, isto é materialismo puro. Chegado aqui, Feuerbach estaca. Ele não pode vencer o pré-juízo filosófico, habitual, o pré-juízo não contra a coisa, mas contra o nome materialismo. Diz ele:

«O materialismo é para mim a base do edifício do ser [Weserc] e saber humanos; mas, para mim ele não é nada do que é para o fisiólogo, para o naturalista em sentido estrito, por exemplo, para Moleschott, e, por certo, [nada daquilo] que ele necessariamente é, do seu ponto de vista e da sua profissão: o próprio edifício. Para trás, concordo completamente com os materialistas, mas não para a frente.»(13*)

Feuerbach mete aqui no mesmo saco o materialismo, que é uma visão geral do mundo que repousa sobre uma determinada concepção da relação de matéria e espírito, juntamente com a forma particular por que esta visão do mundo se expressou num estádio histórico determinado, nomeadamente no século XVIII. Mais ainda, mete-o no mesmo saco juntamente com a figura vulgarizada, chã, em que o materialismo do século XVIII continua a existir hoje na cabeça de naturalistas e médicos e em que, nos anos cinquenta, foi pregado em digressão por Büchner, Vogt e Moleschott.(14*) Porém,tal como o idealismo passou por uma série de estádios de desenvolvimento, também o materialismo [passou]. Com cada descoberta fazendo época mesmo no domínio da ciência da Natureza, ele tem que mudar a sua forma; e, desde que também a história está submetida ao tratamento materialista, abre-se também aqui uma nova estrada do desenvolvimento.

O materialismo do século passado era predominantemente mecânico, porque, de todas as ciências da Natureza daquela altura, apenas a mecânica, e, a bem dizer, também só a dos corpos sólidos — celestes e terrestres —, em suma, a mecânica dos graves, tinha chegado a um certo acabamento. A química existia apenas na sua figura infantil, flogística[N31]. A biologia andava ainda de cueiros; o organismo vegetal e animal era investigado apenas grosseiramente e era explicado por causas puramente mecânicas; tal como para Descartes o animal, o homem era para os materialistas do século XVIII uma máquina. Esta aplicação exclusiva do padrão da mecânica a processos que são de natureza química e orgânica — e para os quais as leis mecânicas certamente que também valem, mas são empurradas para um plano recuado por outras leis, superiores — forma a primeira limitação específica, mas inevitável para o seu tempo, do materialismo francês clássico.

A segunda limitação específica deste materialismo consistiu na sua incapacidade de apreender o mundo como um processo, como uma matéria compreendida numa continuada formação [Fortbildung] histórica. Isto correspondia ao estado da ciência da Natureza da altura e à maneira metafísica, isto é, antidialéctica, do filosofar, com aquele conexa. A Natureza, sabia-se, estava compreendida num movimento eterno. Mas esse movimento, segundo a representação da altura, girava eternamente em círculo e, portanto, nunca se mexia do sítio; produzia sempre de novo os mesmos resultados. Esta representação era na altura inevitável. A teoria de Kant acerca do surgimento do sistema solar mal vinha de ser estabelecida e ainda passava só por mera curiosidade. A história do desenvolvimento da Terra, a geologia, era ainda totalmente desconhecida, e a representação de que os seres vivos naturais hodiernos são o resultado de uma longa série de desenvolvimento do simples para o complicado, não podia, naquela altura, ser, em geral, cientificamente estabelecida. A concepção não-histórica da Natureza era, portanto, inevitável. Podemos tão pouco censurar por isso os filósofos do século XVIII quanto também a encontramos em Hegel. Para este, a Natureza, como mera «exteriorização» da Ideia, não é capaz de nenhum desenvolvimento no tempo, mas apenas de um estirar da sua multiplicidade no espaço, de tal modo que estende todos os estádios de desenvolvimento nela compreendidos simultaneamente e um ao lado ç\o outro, e está condenada à eterna repetição sempre do mesmo processo. E este contra-senso de um desenvolvimento no espaço, mas fora do tempo — a condição fundamental de todo o desenvolvimento —, imputa-o Hegel à Natureza, precisamente, no mesmo tempo em que a geologia, a embriologia, a fisiologia vegetal e animal e a química orgânica se formavam e em que, por toda a parte, na base destas novas ciências, emergiam pressentimentos geniais da ulterior teoria do desenvolvimento [Entwicklungstheorie] (por exemplo, Goethe e Lamarck). Mas o sistema exigia-o assim, e o método tinha, por amor ao sistema, de ser, assim, infiel a si próprio.

Esta concepção não-histórica vigorava também no domínio da história. Aqui, a luta contra os restos da Idade Média perturbava a visão. A Idade Média era considerada como simpfes interrupção da história por uma barbárie universal de mil anos; os grande progressos da Idade Média — o alargamento do território cultivado europeu, as grandes nações viáveis, que aí se formaram umas ao lado das outras, finalmente os enormes progressos técnicos dos séculos XIV e XV — tudo isto, não era visto. Deste modo, tornou-se, porém, impossível uma penetração racional na grande conexão histórica e a história servia, no máximo, como uma colecção de exemplos e ilustrações para uso dos filósofos.

Os vendedores ambulantes vulgarizadores(15*) que, nos anos cinquenta, na Alemanha, andavam no materialismo de maneira nenhuma ultrapassaram esta limitação dos seus mestres. Todos os progressos da ciência da Natureza feitos desde então lhes serviam apenas como novos argumentos contra a existência do criador do mundo; e, de facto, estava totalmente fora do seu negócio desenvolver mais a teoria. Se o idealismo tinha esgotado o seu latim e tinha sido ferido de morte pela revolução de 1848, tinha a satisfação de ver que o materialismo, momentaneamente, ainda tinha caído mais baixo. Feuerbach tinha decididamente razão quando declinava a responsabilidade por esse materialismo; só que não devia confundir a doutrina dos pregadores ambulantes com o materialismo em geral.

No entanto, há aqui duas coisas a observar. Em primeiro lugar, em vida de Feuerbach, a ciência da Natureza estava ainda compreendida naquele intenso processo de fermentação e que só nos últimos quinze anos recebeu um relativo fecho, clarificador; foi fornecido novo material de conhecimento em medida até aqui inaudita, mas o estabelecimento da conexão, e, com ela, da ordem, neste caos de descobertas que se precipitam só muito recentemente se tornou possível. É certo que Feuerbach ainda assistiu às três descobertas decisivas todas — a da célula, a da transformação da energia e a denominada, com Darwin, teoria do desenvolvimento [Entwicklungstheorie]. Mas como teria podido o solitário filósofo, no campo, seguir suficientemente a ciência para avaliar plenamente descobertas que os próprios naturalistas daquela altura, em parte ainda contestavam, em parte não sabiam explorar suficientemente? A culpa cabe aqui unicamente às miserandas condições alemãs, graças às quais as cátedras de filosofia tinham sido açambarcadas por cavilosos e eclécticos esmagadores de pulgas, enquanto Feuerbach, que os dominava a todos como uma torre, tinha de se ruralizar e de se tornar azedo numa pequena aldeia. Não é, portanto, culpa de Feuerbach que a concepção histórica da Natureza, que afasta todas as unilateral idades do materialismo francês, agora tornada possível, permanecesse inacessível para ele.

Em segundo lugar, porém, Feuerbach tem toda a razão em que o materialismo meramente científico-natural é

«a base do edifício do saber humano, mas não o próprio edifício».

Pois, nós não vivemos apenas na Natureza, mas também na sociedade humana, e também esta tem a sua história de desenvolvimento e a sua ciência, não menos do que a Natureza. Tratava-se, portanto, de pôr a ciência da sociedade, isto é, o conjunto [Inbegriff] das chamadas ciências históricas e filosóficas, em consonância com a base materialista e de as reconstruir a partir dela. Isto, porém, não foi dado a Feuerbach. Aqui, ele permaneceu, apesar da «base», preso nos laços idealistas tradicionais, e ele reconheceu isso nestas palavras:

«Para trás, concordo com os materialistas, mas não para a frente.»

Mas quem aqui, no domínio social, não andou «para a frente», não ultrapassou o seu ponto de vista de 1840 ou de 1844, foi o próprio Feuerbach e, por certo, uma vez mais, principalmente na sequência do seu desterramento, que o compeliu a produzir pensamentos a partir da sua cabeça solitária — a ele que mais do que todos os outros filósofos estava talhado para o comércio sociável —, em vez de os [produzir] em encontro, amigável ou hostil, com oytros homens do seu calibre. Quanto, neste domínio, ele permaneceu idealista, vê-lo-emos mais tarde em pormenor.

Aqui há apenas que observar que Starcke procura o idealismo de Feuerbach no lugar incorrecto.

«Feuerbach é idealista, acredita no progresso da humanidade.» (P. 19) — «A base, a infra-estrutura [Unterbau] do todo permanece, não obstante, o idealismo. O realismo não é para nós senão uma protecção contra enganos [Irrwege], enquanto seguimos as nossas correntes ideais. Não são compaixão, amor e entusiasmo pela verdade e pela justiça [Recht], forças ideais?» (P. VIII.)

Em primeiro lugar, idealismo não quer dizer aqui senão perseguição de objectivos ideais. Estes, porém, no máximo têm a ver com o idealismo de Kant e o seu «imperativo categórico»; mas, mesmo Kant chamou à sua filosofia «idealismo transcendental», de modo nenhum porque aí se trata de ideais éticos, mas por razões totalmente diferentes, como Starcke se recordará. A superstição segundo a qual o idealismo filosófico giraria em torno da crença em ideais éticos, isto é, sociais, surgiu fora da filosofia, entre filisteus alemães que aprenderam de cor nos poemas de Schiller as poucas migalhas de cultura filosófica de que precisam. Ninguém criticou mais agudamente o impotente «imperativo categórico» de Kant — impotente, porque ele pede o impossível [e], portanto, nunca chega a algo de real —, ninguém troçou mais cruelmente do arrobo filisteu por ideais irrealizáveis, veiculado por Schiller, do que precisamente o perfeito idealista Hegel (veja-se, por exemplo, a Phänomenologie(16*).

Em segundo lugar, porém, nem uma só vez se pode evitar que tudo aquilo que move um homem tenha de passar pela sua cabeça — mesmo comer e beber, que começam em consequência de fome e sede sentidas por intermédio da cabeça e terminam em consequência da saciedade igualmente sentida por intermédio da cabeça. As acções [Einwirkungen] do mundo exterior sobre o homem expressam-se na sua cabeça, reflectem-se aí como sentimentos, pensamentos, impulsos, determinações de vontade, em suma, como «correntes ideais» e tornam-se, sob essa figura, «poderes ideais». Ora, se a circunstância de esse homem, em geral «seguir correntes ideais» e conceder uma influência sobre ele [próprio] a «poderes ideais» — se isto faz dele um idealista, então todo o homem, nalguma medida, normalmente desenvolvido é um idealista nato, e [, nesse caso,] como pode ainda, em geral, haver materialistas?

Em terceiro lugar, a convicção de que a humanidade, pelo menos de momento, se move grosso modo numa direcção progressiva não tem absolutamente nada a ver com a oposição de materialismo e idealismo. Os materialistas franceses tinham esta convicção em grau quase fanático, não menos do que os deístas[N81] Voltaire e Rousseau, e bastante frequentemente fizeram-lhe os maiores sacrifícios pessoais. Se alguma vez alguém consagrou a vida toda ao «entusiasmo pela verdade e pela justiça» — tomando a frase no seu bom sentido —, foi, por exemplo, Diderot. Se, por conseguinte, Starcke declara isto tudo idealismo, isso só demonstra que a palavra materialismo e toda a oposição de ambas as orientações perdeu aqui para ele todo o sentido.

O facto é que — ainda que talvez inconscientemente — Starcke faz aqui uma imperdoável concessão ao pré-juízo filisteu contra o nome materialismo, [um pré-juízo] herdado da [sua] difamação durante longos anos pelos padres. O filisteu entende por materialismo glutonaria, bebedeira, cobiça, prazer da carne e vida faustosa, cupidez, avareza, rapacidade, caça ao lucro e intrujice de Bolsa, em suma, todos os vícios sujos de que ele próprio em segredo é escravo; e por idealismo, a crença na virtude, na filantropia universal e, em geral, num «mundo melhor», de que faz alarde diante de outros, mas nos quais ele próprio [só] acredita, no máximo, enquanto cuida de atravessar a ressaca ou a bancarrota que necessariamente se seguem aos seus habituais excessos «materialistas» e [enquanto], além disso, canta a sua cantiga predilecta: que é o homem? — meio animal, meio anjo.

Quanto ao resto, Starcke esforça-se muito para defender Feuerbach dos ataques e teses dos assistentes [Dozenten] que hoje, na Alemanha, se dão ares sob o nome de filósofos. Para a gente que se interessa por essa secundina da filosofia alemã clássica, isso é certamente importante; para o próprio Starcke, isso pôde parecer necessário. Nós pouparemos isso aos leitores.

III

O efectivo idealismo de Feuerbach vem à luz do dia logo que chegamos à sua filosofia da religião e ética. Ele não quer de modo nenhum abolir a religião, quer aperfeiçoá-la [vollenden]. A própria filosofia deve dissolver-se em religião.

«Os períodos da humanidade diferenciam-se apenas pelas transformações religiosas. Um movimento histórico só vai até ao fundo quando vai até ao coração do homem. O coração não é uma forma da religião, de tal modo que ela também devesse estar no coração; é a essência da religião.» (Citado por Starcke, p. 168.)

A religião é, segundo Feuerbach, a relação de sentimento, a relação de coração, entre homem e homem, a qual, até aqui, procurava a sua verdade numa imagem especular fantástica da realidade — na mediação <ie um ou de muitos deuses, imagens especulares fantásticas de qualidade humanas —, mas agora a encontra directamente e sem mediação no amor entre Eu e Tu. E, assim, em Feuerbach, o amor sexual torna-se finalmente, uma das supremas, se não a forma suprema de exercício da sua nova religião.

Ora, têm existido relações de sentimento entre os homens [e] nomeadamente também entre os dois sexos, desde que há o homem. O amor sexual, especialmente, conheceu um desenvolvimento [Ausbildung] nos últimos oitocentos anos e conquistou uma posição que, durante este tempo, fizeram dele o eixo obrigatório de toda a poesia. As religiões positivas existentes limitaram-se a dar a mais alta consagração à regulação estatal do amor sexual, isto é, à legislação do casamento, e amanhã podem conjuntamente desaparecer sem que na prática do amor e da amizade se altere o mínimo que seja. De tal modo que a religião cristã tinha, de facto, desaparecido a tal ponto também em França, de 1793 a 1798, que o próprio Napoleão não a pôde introduzir de novo sem resistência e dificuldade; [e] sem que, contudo, durante esse intervalo, tenha surgido a necessidade de uma substituição no sentido de Feuerbach.

Em Feuerbach, o idealismo consiste aqui em que ele não faz simplesmente valer a relação dos homens entre si repousando sobre a inclinação recíproca, o amor sexual, a amizade, a compaixão, a abnegação, etc, tal como são em si mesmos, sem referência a uma religião particular pertencente, também para ele, ao passado, mas afirma que eles só alcançam a sua plena validade quando se lhes dá uma consagração superior sob o nome de religião. O principal, para ele, não é que estas ligações puramente humanas existam, mas que elas sejam apreendidas como a nova, verdadeira, religião. Elas só devem valer em pleno se forem religiosamente seladas. Religião vem de religare(17*) e quer originariamente dizer ligação. Por conseguinte, toda a ligação de dois homens é uma religião. Semelhantes artifícios etimológicos formam o último expediente da filosofia idealista. O que deve valer é, não o que a palavra significa segundo o desenvolvimento histórico do seu uso real, mas o que deve significar segundo a sua derivação. E, assim, o amor sexual e a ligação sexual são celestializados numa «religião», para que a palavra religião, cara à recordação idealista, não desapareça da linguagem.

Precisamente assim, falavam, nos anos quarenta, os reformistas de Paris da orientação de Louis Blanc, os quais, igualmente, só podiam representar [vorstellen] um homem sem religião como um monstro e nos diziam: Donc, l'athéisme c'est votre religion!.(18*) Se Feuerbach quer estabelecer a verdadeira religião na base de uma visão da Natureza essencialmente materialista, isso quer dizer apenas tanto como que ele [quer] apreender a química moderna conlo a verdadeira alquimia. Se a religião pode subsistir sem o seu deus, então também a alquimia o pode sem a sua pedra filosofal. Subsiste, de resto, um vínculo muito estreito entre alquimia e religião. A pedra filosofal tem muitas propriedade quase-divinas, e os alquimistas egipto-gre-gos dos primeiros dois séculos da nossa era meteram as mãozinhas no aperfeiçoamento da doutrina cristã, como os dados fornecidos por Kopp e Berthelot o demonstram.

Decididamente falsa é a afirmação de Feuerbach, segundo a qual os

«períodos da humanidade se diferenciam apenas por transformações religiosas».

Grandes pontos de viragem histórica foram acompanhados por transformações religiosas, na medida em que apenas entrem em consideração as três religiões mundiais que até agora existiram: budismo, cristianismo, islão. As velhas religiões de tribo e de nação, que surgiram naturalmente, não eram propagandistas e perderam todo o poder de resistência logo que a autonomia de tribos e. povos foi quebrada; entre os germanos, bastou mesmo o simples contacto com o império mundial romano em declínio e a religião mundial cristã, por ele recentemente adoptada, adequada à sua situação económica, política e ideal [ideell]. Só nestas religiões mundiais surgidas mais ou menos artificialmente, nomeadamente, no cristianismo e no islão, verificamos que movimentos históricos mais gerais tomam um carácter religioso e, mesmo no domínio do cristianismo, o carácter religioso limita-se, para revoluções de real significação universal, aos primeiros estádios da luta de emancipação da burguesia, do século XIII ao século XVII, e não se explica, como Feuerbach opina, a partir do coração do homem e da sua necessidade de religião, mas a partir de toda a prévia história medieval, que não conhecia outra forma de ideologia senão, precisamente, a religião e a teologia. Quando, porém, no século XVIII, a burguesia se fortaleceu o suficiente para ter a sua própria ideologia, adequada ao seu ponto de vista de classe, fez, então, a sua grande e definitiva revolução, a francesa, sob o apelo exclusivo a ideias jurídicas e políticas e só se preocupou com a religião na medida em que ela lhe barrava o caminho; mas guardou-se de pôr uma nova religião no lugar da antiga; é sabido como Robespierre fracassou nisso.

A possibilidade de uma sensação puramente humana no comércio com outros homens está-nos hoje em dia já bastante estragada pela sociedade fundada na oposição de classes e na dominação de classe em que temos que nos movimentar: não temos nenhuma razão para a estragarmos ainda nós próprios celestializando essas sensações numa religião. E, do mesmo modo, o entendimento das grandes lutas de classes históricas é-nos já suficientemente obscurecido pela historiografia corrente, nomeadamente na Alemanha, sem que nós também tenhamos precisão de no-lo tornar completamente impossível pela transformação desta história de luta num mero apêndice da história da Igreja. Logo aqui se mostra o quanto nós hoje nos afastámos de Feuerbach. As suas «mais belas passagens» de celebração desta nova religião do amor já não são mais legíveis hoje.

A única religião que Feuerbach seriamente investiga é o cristianismo, a religião mundial do ocidente, que está fundada no monoteísmo. Ele demonstra que o deus cristão é apenas o reflexo [Reflex] fantástico, a imagem especular [Spiegelbild] do homem. Ora, este deus é ele próprio, porém, o produto de um longo processo de abstracção, a quintessência concentrada dos muitos deuses de tribo e de nação anteriores. E, de um modo correspondente, o homem cuja imagem [Abbild] esse deus é, também não é um homem real, mas igualmente a quintessência dos muitos homens reais, o homem abstracto, portanto, ele próprio de novo uma imagem de pensamento [Gedankenbild]. O mesmo Feuerbach que a cada página prega a sensibilidade, o mergulho no concreto, na realidade, torna-se de uma ponta à outra abstracto assim que começa a falar de um comércio entre os homens mais amplo do que o mero comércio sexual.

Este comércio só lhe oferece um lado: a moral. E aqui choca-nos de novo a espantosa pobreza de Feuerbach comparado com Hegel. [Hegel] cuja ética ou doutrina da eticidade [Sittlichkeit] é a filosofia do direito e abrange: 1. o direito abastracto, 2. a moralidade [Moralität], 3. a eticidade [Sittlichkeit], sob a qual, por sua vez, estão reunidos: a família, a sociedade civil [bürgerliche Gesellschaft], o Estado. Tão idealista é aqui a forma, quanto realista é o conteúdo. Todo o domínio do direito, da( economia, da política, está aqui compreendido junto com a moral. Em Feuerbach, precisamente o inverso. Segundo a forma, é realista, ele parte do homem; mas do mundo, onde esse homem vive, não se fala absolutamente nada e, assim, esse homem permanece sempre o mesmo homem abstracto que na filosofia da religião tinha a palavra. Esse homem, precisamente, não nasceu do corpo da mãe, eclodiu do deus das religiões monoteístas, por conseguinte, também não vive num mundo real urgido historicamente e historicamente determinado; é certo que em comércio com outros homens, mas esses outros são tão abstrac-os quanto ele próprio. Na filosofia da religião ainda temos, contudo, homem e mulher, mas, na ética, também esta última diferença lesaparece. Sem dúvida que, em Feuerbach, com longos intervalos, obrevêm proposições como:

«Num palácio pensa-se de maneira diferente do que numa cabana.»(19*) — «Onde, perante a fome, perante a miséria, não tens matéria nenhuma no corpo, ambém aí não tens na cabeça, nos sentidos(20*) e [no] coração matéria nenhuma para a moral.» — «A política tem de se tornar a nossa religião»(21*), etc.

Mas Feuerbach não sabe absolutamente o que fazer com estas proposições, permanecem puras maneiras de dizer, e o próprio Starcke tem de admitir que a política era para Feuerbach uma fronteira intransponível e que a

«doutrina da sociedade, a sociologia, era para ele uma terra incógnita».(22*)

Face a Hegel, aparece igualmente chão no tratamento da oposição de bem e mal.

«Crê-se que se diz algo de grande» — lê-se em Hegel — «quando se diz: o lomem é por natureza bom; mas esquece-se que se diz algo de ainda maior com as palavras: o homem é por natureza mau.»(23*)

Em Hegel, o mal é a forma em que a força motriz do desenvolvimento histórico se apresenta. E aqui reside, sem dúvida, o duplo sentido de que, por um lado, cada novo progresso aparece necessariamente como um delito contra algo de sagrado, como rebelião contra situações velhas, moribundas, mas sacralizadas pelo hábito, e, por outro lado, o de que, desde o aparecimento das oposições de classes, são, precisamente, as piores paixões dos homens — cupidez e desejo de domínio [Herrschsucht] — que se tornaram alavancas do desenvolvimento histórico, das quais, por exemplo, a história do feudalismo e da burguesia são uma única e contínua prova. Mas, a Feuerbach não ocorre investigar o papel histórico do mal moral. A história é, para ele, em geral, um campo onde não se sente à vontade, incómodo. Mesmo a sua sentença:

«O homem que originariamente surgiu da Natureza era apenas também um puro ser da Natureza, [não era] homem nenhum. O homem é um produto do homem, da cultura, da história»(24*),

mesmo esta sentença permanece nele inteiramente infrutuosa.

O que Feuerbach nos faz saber acerca da moral não pode, por isso, ser senão extremamente magro. O impulso para a felicidade é inato ao homem e tem de formar, portanto, a base de toda a moral. Mas o impulso para a felicidade experimenta uma dupla correcção. Em primeiro lugar, pelas consequências naturais das nossas acções: à bebedeira segue-se a ressaca, aos excessos habituais a doença. Em segundo lugar, pelas suas consequências sociais: se não respeitamos o mesmo impulso dos outros para a felicidade, eles defendem-se e perturbam o nosso próprio impulso para a felicidade. Segue-se daqui que nós, para satisfazer o nosso impulso, temos de estar em condições de avaliar correctamente as consequências das nossas acções e temos, por outro lado, de fazer valer o igual direito [Gleichberechtigung] dos outros ao respectivo impulso. Autolimitação racional em relação a nós próprios e amor — sempre de novo o amor! — no comércio com os outros são, portanto, as regras fundamentais da moral de Feuerbach, das quais todas as outras derivam. E nem as mais espirituosas exposições de Feuerbach, nem os mais fortes elogios de Starcke, podem esconder a tenuidade e a cha-neza deste par de proposições.

O impulso para a felicidade satisfaz-se apenas muito excepcionalmente, e de modo nenhum para benefício próprio e de outras pessoas, pela ocupação de um homem consigo mesmo. Requer, porém, ocupação com o mundo exterior, meios de satisfação, portanto, alimentação, um indivíduo do outro sexo, livros, conversação, debates, actividade, objectos para uso e elaboração. A moral de Feuerbach ou pressupõe que estes meios e objectos de satisfação estão dados sem mais a todo o homem, ou então dá-lhe apenas boas doutrinas inaplicáveis; não vale, portanto, um caracol para as pessoas a quem esses meios faltam. E o próprio Feuerbach nos explica isto em palavras secas:

«Num palácio pensa-se de maneira diferente do que numa cabana.»(25*) «Onde, perante a fome, perante a miséria, não tens matéria nenhuma no corpo, também aí não tens na cabeça, nos sentidos e [no] coração matéria nenhuma para a moral.»(26*)

Ficarão as coisas algo melhor com o igual direito do impulso dos outros para a felicidade? Feuerbach estabelece esta reivindicação absolutamente, como válida para todos os tempos e circunstâncias. Mas desde quando é que ela vale? Na Antiguidade, entre escravos e senhores, na Idade Média, entre servos e barões, tratava-se de igual direito do impulso para a felicidade? O impulso para a felicidade da classe oprimida não era ele sacrificado, sem cerimónia e «de direito», ao da dominante? — Sim, isso também era imoral, [dir-se-á], mas agora o igual direito é reconhecido. — Reconhecido em palavras, desde que e visto que a burguesia, na sua luta contra a feudalidade e no desenvolvimento [Ausbildung] da produção capitalista, foi obrigada a abolir todos os privilégios de estado [ständisch], isto é, pessoais, e a introduzir o igual direito jurídico da pessoa, primeiro, o de direito privado, depois também, gradualmente, o de direito público. Mas, o impulso para a felicidade não vive senão, em parte mínima, de direitos ideais e, na maior parte, de meios materiais; e a produção capitalista cuida de que à grande maioria das pessoas com igual direito apenas caiba o necessário a uma vida apertada, [e], portanto, mal respeita — se [é que], em geral, [respeita] — o igual direito do impulso da maioria para a felicidade melhor do que a escravatura ou a servidão o fizeram. E está ela melhor no que concerne aos meios espirituais da felicidade, aos meios de cultura? Não é o próprio «mestre-escola de Sadowa»[N197] uma personagem mítica?

Mais ainda. Segundo a teoria moral de Feuerbach, a Bolsa de valores é o templo supremo da eticidade — pressupondo apenas que se especula sempre correctamente. Quando o meu impulso para a felicidade me leva à Bolsa e lá eu peso tão correctamente as consequências das minhas acções que elas só me trazem vantagem e nenhum prejuízo, isto é, que eu ganho sempre, o preceito de Feuerbach é cumprido. Por esse facto, eu também não interfiro com o igual impulso do outro para a liberdade, pois o outro foi à Bolsa de tão livre vontade quanto eu e, ao concluir o negócio de especulação comigo, seguiu tanto o seu impulso para a felicidade quanto eu segui o meu. E, se ele perdeu o dinheiro dele, a sua acção prova-se, precisamente por esse facto, como sendo não-ética [unsittlich], porque mal calculada, e, ao infligir-lhe eu o castigo merecido, posso mesmo inchar-me orgulhosamente como moderno Radamanto. O amor domina também na Bolsa, na medida em que ele não é mera frase sentimental, pois cada um encontra no outro a satisfação do seu impulso para a felicidade, e é isso mesmo o que o amor deve cumprir e como ele na prática actua. E, se eu jogar com correcta previsão das consequências das minhas operações, portanto, com sucesso, cumprirei todas as reivindicações mais rigorosas da moral de Feuerbach e tornar-me-ei, ainda por cima, um homem rico. Por outras palavras, a moral de Feuerbach está talhada pela sociedade capitalista hodierna, por muito pouco que ele próprio o queira ou possa suspeitar.

Mas o amor! — Sim, o amor é por toda a parte e sempre o deus mágico que, em Feuerbach, deve ajudar a ultrapassar todas as dificuldades da vida prática — e isto numa sociedade que está cindida em classes com interesses diametralmente contrapostos. Com isto, desapareceu, portanto, da [sua] filosofia o último resto do seu carácter revolucionário, e permanece apenas o velho refrão: amai-vos uns aos outros, caí nos braços uns dos outros, sem diferença de sexo e de estado [Stand] — o devaneio da reconciliação universal!

Em suma. Passa-se com a teoria moral de Feuerbach o mesmo do que com todas as suas predecessoras. Ela está talhada para todos os tempos, para todos os povos, para todas as situações, e, precisamente por isso, ela nunca, nem em parte alguma, é aplicável e permanece, face ao mundo real, tão impotente quanto o imperativo categórico de Kant. Na realidade, cada classe — e mesmo cada profissão — tem a sua própria moral e quebra-a onde o pode fazer impunemente e o amor, que tudo deve unir, vem à luz do dia em guerras, conflitos, processos, querelas domésticas, divórcios e a máxima exploração possível de uns pelos outros.

Mas, como foi possível que a poderosa impulsão dada por Feuerbach tenha acabado por ser tão infrutuosa para ele próprio? Simplesmente pelo facto de que Feuerbach não conseguiu encontrar o caminho do reino das abstracções, mortalmente odiadas por ele próprio, para a realidade viva. Ele agarrou-se com força à Natureza e ao homem; mas, Natureza e homem permanecem, nele, meras palavras. Nem acerca da Natureza real, nem acerca do homem real, ele nos sabe dizer algo de determinado. Só se passa, porém, do homem abstracto de Feuerbach para os homens vivos reais, se se os considerar a agir na história. E contra isso se levanta Feuerbach e, por conseguinte, o ano de 1848, que ele não compreendeu, significou para ele apenas o corte definitivo com o mundo real, o retiro para a solidão. A culpa disto incumbe, uma vez mais, principalmente, às condições alemãs, que o deixaram definhar miseravelmente.

Mas. o passo que Feuerbach não deu, tinha, todavia, de ser dado; o culto do homem abstracto, que formava o cerne da nova religião de Feuerbach, tinha de ser substituído pela ciência acerca dos homens reais e do seu desenvolvimento histórico. Este desenvolvimento ulterior do ponto de vista de Feuerbach para além de Feuerbach foi inaugurado, em 1845, por Marx na Heilige Familie.

IV

Strauss, Bauer, Stirner, Feuerbach, foram estes os prolongamentos da filosofia de Hegel, na medida em que não abandonaram o solo filosófico. Strauss, depois da Leben Jesu e da Dogmatik(27*)entregou-se apenas à beletrística filosófica e histórico-eclesial à la(28*) Renan; Bauer só realizou alguma coisa no domínio da génese do cristianismo, mas aí [realizou] algo de significativo; Stirner permaneceu uma curiosidade, mesmo depois de Bakúnine o ter amalgamado com Proudhon e ter baptizado essa amálgama de «anarquismo»; só Feuerbach foi significativo como filósofo. Mas, não só a filosofia — a pretensa ciência da ciência [Wissenschaftswissenschaft] pairando acima de todas as ciências particulares, abarcando-as [zusammenfassend] — permaneceu para ele um limite intransponível, uma coisa sagrada intocável, como também, como filósofo, ele permaneceu a meio caminho, foi, por baixo, materialista [e], por cima, idealista; não acabou com Hegel criticamente, atirou-o simplesmente para o lado como inutilizável, enquanto ele próprio, face à riqueza enciclopédica do sistema de Hegel, não chegou a nada de positivo, para além de uma empolada religião do amor e de uma magra, impotente, moral.

Da dissolução da escola de Hegel saiu, porém, ainda uma outra orientação, a única que realmente deu frutos e esta orientação li-ga-se essencialmente ao nome de Marx(29*).

A separação relativamente à filosofia de Hegel resultou aqui também de um regresso ao ponto de vista materialista. Significa isto que se decidiu apreender o mundo real — Natureza e história — tal como ele próprio se dá a quem quer que se aproxime dele sem tretas idealistas preconcebidas; decidiu-se sacrificar impiedosamente toda a treta idealista que não pudesse ser posta em consonância com os factos apreendidos na sua conexão própria (e não em qualquer [conexão] fantástica). E, em geral, não se chama materialismo a nada mais do que isto. Só que era aqui que, pela primeira vez, se lidava realmente a sério com a visão materialista do mundo, [era aqui] que ela era consequentemente posta em execução — pelo menos, nas suas linhas fundamentais — a propósito de todos os domínios do saber em questão.

Hegel não foi simplesmente posto de lado; partiu-se, pelo contrário, do seu lado revolucionário acima desenvolvido, do método dialéctico. Mas, este método, na sua forma hegeliana, era inutilizável. Em Hegel, a dialéctica é o autodesenvolvimento do conceito. O conceito absoluto não apenas está dado deste a eternidade — des-conhece-se onde —, como também é a alma viva própria de todo omundo existente. Ele desenvolve-se para si próprio, através de todos os estádios preliminares [Vorstufen], que são amplamente tratados na Logik, e que estão todos contidos nele; depois, «exterioriza-se», transformando-se em Natureza, onde ele, sem consciência de si próprio, disfarçado de necessidade natural, passa por um novo desenvolvimento e, por fim, volta de novo, no homem, à autoconsciência [Selbstbewusstsein]; esta autoconsciência elabora-se de novo na história, a partir do [estado] bruto, até finalmente o conceito absoluto voltar de novo completamente a si próprio na filosofia de Hegel. Em Hegel, o desenvolvimento dialéctico que vem à luz na Natureza e na história — isto é, a conexão causal do progredir do inferior para o superior que se impõe através de todos os movimentos em ziguezague e retrocessos momentâneos — é, portanto, apenas o decalque do automovimento do conceito que se processa desde a eternidade, não se sabe onde, mas, em qualquer caso, independentemente de qualquer cérebro humano pensante. Tratava-se de eliminar esta inversão [Verkehrung] ideológica. Voltámos a apreender materialistamente os conceitos da nossa cabeça como imagens [Abbilder] das coisas reais, em vez de [apreender] as coisas reais como imagens deste ou daquele estádio do conceito absoluto. Com isto, reduziu-se a dialéctica a ciência das leis universais do movimento, tanto do mundo exterior como do pensar humano — duas séries de leis que, em substância, são idênticas, mas que, na expressão, são diversas, na medida em que a cabeça humana as pode aplicar com consciência, enquanto elas, na Natureza e, até agora também, em grande parte, na história humana, abrem passagem de maneira inconsciente, na forma da necessidade exterior, no meio de uma série sem fim de aparentes casualidades. Mas, com isto, a própria dialéctica do conceito tornava-se apenas reflexo [Reflex] consciente do movimento dialéctico do mundo real, e, com isto, a dialéctica de Hegel ficava de cabeça para baixo [aufden Kopf], ou antes: de cabeça para baixo em que estava, foi posta de novo em pé [auf die Füsse]. E esta dialéctica materialista, que era, de há anos, o nosso melhor meio de trabalho e a nossa arma mais afiada, foi, coisa notável, descoberta de novo, não apenas por nós, mas, além disso ainda, independentemente de nós e mesmo de Hegel, por um operário alemão, Josef Dietzgen.(30*)

Deste modo, porém, o lado revolucionário da filosofia de Hegel foi retomado e, ao mesmo tempo, libertado dos seus enfeites idealistas que, em Hegel, tinham impedido o seu cumprimento consequente. O grande pensamento fundamental de que o mundo não é de apreender como um complexo de coisas prontas, mas como um complexo de processos, onde as coisas, aparentemente estáveis, não passam menos do que as imagens de pensamento delas na nossa cabeça — os conceitos — por uma ininterrupta mudança do devir e do perecer, na qual, em toda a aparente casualidade, e apesar de todo o retrocesso momentâneo, se impõe finalmente um desenvolvimento progressivo — este grande pensamento fundamental transitou tanto, nomeadamente, desde Hegel, para a consciência habitual que, nesta universalidade, já quase não encontra contradição. Mas, reconhecê-lo em palavras e pô-lo em execução na realidade, em pormenor, em todo o domínio que venha a ser investigado, são duas coisas diferentes. Mas, se, na investigação, se partir sempre deste ponto de vista, a exigência de soluções definitivas e de verdades eternas acaba, de uma vez por todas; está-se sempre consciente da necessária limitação de todo o conhecimento adquirido, do seu condicionamento pelas circunstâncias em que foi adquirido; mas também não se deixa mais que as invencíveis oposições da velha metafísica, ainda e sempre em voga, entre verdadeiro e falso, bom e mau, idêntico e diverso, necessário e casual, se nos imponham; sabe-se que estas oposições só têm validade relativa, que aquilo que agora é conhecido como verdadeiro tem igualmente o seu lado falso, oculto, que aparecerá mais tarde, assim como aquilo que agora é conhecido como falso [tem] o seu lado verdadeiro, em virtude do qual, anteriormente, pode ter valido como verdadeiro; [sabe-se] que aquilo que é afirmado como necessário é composto de claras casualidades e que o pretensamente casual é a forma atrás da qual a necessidade se esconde, etc.

O velho método de investigação e de pensamento que Hegel chamava «metafísico», que se ocupava preferentemente com a investigação das coisas como permanências [Bestände] fixas dadas e cujos restos ainda assombram fortemente a nossa cabeça, teve, no seu tempo, uma grande justificação histórica. As coisas tinham de ser investigadas primeiro, antes de que os processos pudessem ser investigados. Tinha que se saber primeiro o que uma qualquer coisa era, antes de se se poder aperceber das transformações que se processavam nela. E assim aconteceu na ciência da Natureza. A velha Metafísica, que tomava as coisas como prontas, surgiu a partir de unia ciência da Natureza que investigava as coisas mortas e vivas como prontas. Porém, quando essa investigação se estendeu tanto que tornou possível um progresso decisivo, a transição para a investigação sistemática das mudanças nestas coisas que se processam na própria Natureza, então, também no domínio filosófico soou o dobre de finados pela velha metafísica. E, de facto, se a ciência da Natureza até ao fim do século passado foi predominantemente uma ciência colectora [sammelnde], foi uma ciência de coisas prontas, no nosso século, ela é esssencialmente ciência ordenadora [ordnende], ciência dos processos, da origem e do desenvolvimento dessas coisas e da conexão que liga esses processos naturais num grande todo. A fisiologia, que investiga os processos no organismo vegetal e animal, a embriologia, que trata do desenvolvimento do organismo singular do germe até à maturidade, a geologia, que segue a formação gradual da superfície terrestre, todas elas são filhas do nosso século.

Porém, antes de tudo, há três grandes descobertas que fizeram avançar a passos de gigante o nosso conhecimento da conexão dos processos naturais: em primeiro lugar, a descoberta da célula, como a unidade a partir de cuja multiplicação e diferenciação se desenvolve todo o corpo vegetal e animal, de tal modo que, não apenas o desenvolvimento e o crescimento de todos os organismos superiores é reconhecido como processando-se segundo uma única lei universal, como também na capacidade de mudança da célula está mostrado o caminho pelo qual os organismos podem mudar a sua espécie e, assim, percorrer um desenvolvimento mais do que individual. — Em segundo lugar, a transformação da energia que nos mostrou todas as chamadas forças, que actuam antes do mais na Natureza anorgânica — a força mecânica e o seu complemento, a chamada energia potencial, calor, radiação (luz, ou calor radiante), electricidade, magnetismo, energia química — como diversas formas de manifestação [Erscheinungsformen] do movimento universal que, em determinadas relações de quantidade transitam de uma a outra, de tal modo que, para a quantidade de uma que desaparece volta a aparecer uma determinada quantidade de uma outra, e de tal modo que todo o movimento da Natureza se reduz a este incessante processo de transformação de uma forma noutra. — Finalmente, a prova, desenvolvida com conexão, pela primeira vez, por Darwin, de que o efectivo de produtos orgânicos da Natureza que hoje nos rodeia, incluindo os homens, é o resultado de um longo processo de desenvolvimento a partir de uns poucos germes unicelulares originários e que estes, por sua vez, provieram do protoplasma ou albumina, surgidos por via química.

Graças a estas três grandes descobertas e aos restantes poderosos progressos da ciência da Natureza chegámos agora ao ponto de grosso modo poder demonstrar a conexão entre os processos na Natureza, não apenas nos domínios isolados, mas também dos domínios isolados entre si e de, assim, poder dar uma imagem abarcante dá conexão da Natureza, numa forma aproximativamente sistemática, por meio dos factos fornecidos pela própria ciência empírica da Natureza. Fornecer esta imagem de conjunto era, anteriormente, a tarefa da chamada filosofia da Natureza. Só o podia fazer na medida em que substituía as conexões reais ainda desconhecidas por [conexões] ideais [ideelle], fantásticas, [na medida em que] completava os factos que faltavam por imagens de pensamento, [na medida em que] preenchia lacunas reais na mera imaginação. Neste procedimento, teve muitos pensamentos geniais, anteviu muitas descobertas ulteriores, mas também trouxe à luz do dia consideráveis contra-sensos, como não podia deixar de ser. Hoje, que só é preciso apreender dialecticamente — isto é, no sentido da sua conexão própria — os resultados da investigação da Natureza para chegar a um «sistema da Natureza» suficiente para o nosso tempo, [hoje] que o carácter dialéctico desta conexão se impõe às cabeças metafisicamente formadas dos naturalistas, mesmo contra a sua vontade, hoje, a filosofia da Natureza está definitivamente posta de parte. Qualquer tentativa para o seu ressuscitamento não seria apenas supérflua, seria um retrocesso.

Porém, aquilo que vale para a Natureza, que também aí é reconhecido como um processo histórico de desenvolvimento, vale também para a história da sociedade em todos os seus ramos e para o conjunto [Gesamtheit] de todas as ciências que se ocupam de coisas humanas (e divinas). Também aqui a filosofia da história, do direito, da religião, etc, consistiu em pôr no lugar da conexão real a ser demonstrada nos acontecimentos uma [conexão] feita na cabeça do filósofo, de tal modo que a história foi apreendida, no todo como nas suas partes singulares, como a realização gradual de Ideias, e, antes de mais, naturalmente, sempre só das ideias predilectas do próprio filósofo. De acordo com isto, a história trabalhava inconscientemente, mas com necessidade, Para um certo objectivo ideal [ideell], fixado de antemão, como, Por exemplo, em Hegel, para a realização da sua Ideia absoluta e a orientação indemovível para essa Ideia absoluta formava a conexão interna nos acontecimentos históricos. No lugar da conexão real, ainda desconhecida, punha-se, assim, uma nova providência misteriosa — inconsciente ou chegando gradualmente à consciên-Cla. Aqui, totalmente como no domínio da Natureza, havia, portanto, que eliminar as conexões feitas artificialmente, pelo achamento das reais; uma tarefa que finalmente vem a dar no descobrir das leis universais do movimento que se impõem na história da sociedade humana como dominantes.

Ora, a história do desenvolvimento da sociedade mostra-se, porém, num ponto essencialmente diversa da da Natureza. Na Natureza — na medida em que deixemos fora de consideração a retroacção do homem sobre a Natureza — há puramente factores cegos, desprovidos de consciência, que actuam uns sobre os outros e em cujo jogo recíproco a lei universal se faz valer. De tudo o que acontece — tanto das inúmeras casualidades aparentes, que são visíveis à superfície, como dos resultados finais, que demonstram a conformidade a leis no interior destas casualidades —, nada acontece como objectivo consciente querido. Em contrapartida, na história da sociedade, os agentes estão nitidamente dotados de consciência, são homens que agem com reflexão [Überlegung] ou paixão, que trabalham para determinados objectivos; nada acontece sem propósito [Absicht] consciente, sem objectivo querido. Mas esta diferença, por muito importante que seja para a investigação histórica — nomeadamente, de épocas e eventos singulares — não altera em nada o facto de que o curso da história é regido por leis internas universais. Pois, também aqui, apesar dos objectivos conscientemente queridos de todos os indivíduos, domina aparentemente à superfície, grosso modo, o acaso. Só raramente acontece o querido; na maioria dos casos, os múltiplos objectivos queridos entrecruzam-se e con-tradizem-se, ou esses mesmos objectivos são de antemão irrealizáveis, ou os meios são insuficientes. Assim, os choques das inúmeras vontades individuais e acções individuais conduzem a um estado que é totalmente análogo ao que domina na Natureza desprovida de consciência. Os objectivos das acções são queridos, mas os resultados que realmente decorrem das acções não são queridos, ou. na medida em que primeiro parecem contudo corresponder ao objectivo querido, têm finalmente consequências totalmente diferentes das queridas. Os acontecimentos históricos aparecem, assim, grosso modo, como que igualmente dominados pela casualidade. Mas, lá onde, à superfície, o acaso conduz o seu jogo, ele está sempre dominado por leis internas ocultas, e trata-se apenas de descobrir estas leis.

Os homens fazem a sua história, ocorra ela como ocorrer, perseguindo cada um os seus próprios objectivos queridos conscientes, e a resultante destas várias vontades que agem em diversas direcções e da sua influência múltipla sobre o mundo exterior é que e, precisamente, a história. Trata-se, portanto, também daquilo que muitos indivíduos querem. A vontade é determinada por paixão ou reflexão. Mas, as alavancas que, por sua vez, determinam a paixão oU a reflexão são de espécie muito diversa. Em parte podem ser objectos exteriores, em parte, móbiles [Beweggrunde] ideais [ideelle], ambição, «entusiasmo pela verdade e pela justiça», ódio pessoal, ou também puros caprichos individuais de toda a espécie. Mas, por um lado, vimos que as várias vontades individuais activas na história, na maioria dos casos, produzem resultados totalmente diferentes dos queridos — frequentes vezes, rotundamente os contrapostos — e que, portanto, para o resultado conjunto, os seus móbiles são de subordinada significação. Por outro lado, pergunta-se ainda: que forças impulsionadoras estão, por sua vez, por detrás destes móbiles, que causas históricas tomam, na cabeça dos agentes, a forma de tais móbiles?

O velho materialismo nunca se pôs esta questão. A sua concepção da história — na medida em que, em geral, ele tenha uma — é, portanto, também essencialmente pragmática, ajuíza tudo segundo os motivos da acção, divide os homens que agem historicamente em nobres [de alma] e não-nobres e verifica, então, em regra, que os nobres são os enganados e os não-nobres os vencedores; do que se segue, então, para o velho materialismo, que do estudo da história não resulta muito de edificante e, para nós, que, no domínio da história, o velho materialismo se tornou infiel a si próprio, porque toma as forças motrizes ideais aí actuantes como causas últimas, em vez de investigar aquilo que está por detrás delas, quais são as forças motrizes dessas forças motrizes. A inconsequência não reside em que sejam reconhecidas forças motrizes ideais, mas em que, a partir destas, não se regresse mais atrás às suas causas motoras. A filosofia da história, em contrapartida, tal como, nomeadamente, é representada por Hegel, reconhece que os móbiles ostensivos, e também os [móbiles] realmente activos, dos homens que agem historicamente de modo nenhum são as causas últimas dos acontecimentos históricos, que por detrás destes móbiles estão outros poderes motores, que há que investigar; mas ela procura esses poderes, não na própria história, importa-os antes de fora, da ideologia filosófica, para dentro da história. Em vez de explicar a história da Grécia antiga a partir da sua conexão própria, interna, Hegel afirma, por exemplo, simplesmente que ela não é nada mais do que a elaboração das «figuras da individualidade bela», a realização da «obra de arte» como tal. A este propósito, ele diz muito de belo e de profundo acerca da Grécia antiga, mas isso não impede que nós hoje já não nos contentemos com uma tal explicação, que é uma mera maneira de dizer.

Quando se trata, portanto, de investigar os poderes impulsionadores que — consciente ou inconscientemente e, por certo, commuita frequência, inconscientemente — estão por detrás dos móbiles dos homens que agem historicamente e que constituem propriamente as forças motrizes últimas da história, não se pode tratar tanto dos móbiles dos indivíduos, por mais eminentes que sejam, mas daqueles que põem em movimento grandes massas, povos inteiros — e, em cada povo, por sua vez, classes inteiras de povo; e isto também, não momentaneamente, para um jacto passageiro e um fogo de palha que rapidamente arde, mas para uma acção duradoura que desemboca numa grande transformação histórica. Fundamentar as causas motrizes que aqui se reflectem clara ou obscuramente, imediatamente ou em forma ideológica, mesmo em forma celestializada, na cabeça das massas que agem e dos seus dirigentes — os chamados grandes homens — como móbiles conscientes — é este o único caminho que nos pode pôr na pista das leis que dominam na história, tanto grosso modo como nos períodos e países singulares. Tudo o que põe os homens em movimento tem de passar pela cabeça deles; mas que figura toma nessa cabeça, depende muito das circunstâncias. Os operários de modo nenhum se reconciliaram com a empresa ma-quinizada capitalista pelo facto de não mais fazerem as máquinas em bocados, como ainda [aconteceu] em 1848 no Reno.

Mas, enquanto em todos os períodos anteriores a investigação destas causas impulsionadoras da história era quase impossível — por causa das [suas] complicadas e encobertas conexões com os seus efeitos —, o nosso período presente simplificou tanto estas conexões que se pôde resolver o enigma. Desde a efectivação da grande indústria — portanto, pelo menos, desde a paz europeia de 1815 —, não foi mais segredo para homem nenhum em Inglaterra que lá toda a luta política gira em torno das pretensões à dominação de duas classes: a aristocracia possuidora de terras (landed aristocracy )(32*) e a burguesia (middle class)(33*). Em França, com o regresso dos Bourbons, ganhou-se consciência do mesmo facto; os historiógrafos do tempo da Restauração[N198], de Thierry a Guizot, Mignet e Thiers, por toda a parte falam disso como a chave para o entendimento da história francesa desde a Idade Média. E, desde 1830, em ambos os países, a classe operária, o proletariado, foi reconhecido como o terceiro lutador por essa dominação. As relações simplificaram-se tanto que tinha que se fechar os olhos premeditadamente para nao ver na luta destas três grandes classes e no conflito dos seus interesses a força impulsionadora da história moderna — pelo menos, nos dois países que progrediram mais.

Como tinham, porém, surgido estas classes? Se, à primeira vista, ainda se podia atribuir à grande posse fundiária, outrora feudal, uma origem a partir — pelo menos, em primeiro lugar — de causas políticas, a partir de uma entrada na posse pela força, isso já não dava para a burguesia e para o proletariado. Aqui, a origem e o desenvolvimento de duas grandes classes estava à vista de modo claro e palpável a partir de causas puramente económicas. E era igualmente claro que, na luta entre posse de terras e burguesia, não menos do que na [luta] entre burguesia e proletariado, se tratava em primeira linha de interesses económicos, para cuja efectivação o poder político devia servir de mero meio. Burguesia e proletariado tinham surgido ambos na sequência de uma transformação das relações económicas, para falar mais exactamente: do modo de produção. A transição, primeiro, do artesanato [Handwerk] corporativo para a manufactura, depois, da manufactura para a grande indústria com o emprego de vapor e máquinas, tinha desenvolvido estas duas classes. Num certo estádio, as forças de produção [Produktionskräfte] postas em movimento pela burguesia — antes do mais, a divisão do trabalho e a reunião de vários operários parcelares [Teilarbeiter] numa manufactura conjunta — e as condições de troca e necessidades de troca por ela desenvolvidas tornaram-se incompatíveis com a ordem da produção existente, historicamente transmitida e consagrada por lei, isto é, com os privilégios corporativos e inúmeros outros [privilégios] pessoais e locais (que, para os estados [Stände] não-privilegiados, eram outros tantos grilhões) da organização feudal da sociedade. As forças de produção, representadas pela burguesia, rebelaram-se contra a ordem de produção, representada pelos possuidores de terras feudais e os mestres das corporações; o resultado é conhecido: os grilhões feudais foram quebrados, em Inglaterra gradualmente, em França de um só golpe, na Alemanha ainda não se acabou com eles. Mas, assim como a manufactura, num estádio determinado do desenvolvimento, entrou em conflito com a ordem feudal de produção, também agora a grande indústria entrou já em conflito com a ordem burguesa de produção posta no lugar daquela. Mantida por esta ordem, pelos limites estreitos do modo de produção capitalista, ela produz, por um lado, uma proletarização sempre crescente de toda a grande massa do povo e, por outro lado, uma massa cada vez maior de produtos invendáveis. Sobreprodução e miséria das massas, cada uma causa da outra, é esta a contradição absurda em que desemboca e que com necessidade requer um desagrilhoamento das forças produtivas [ProduktivkrÄfte] por mudança do modo de produção.

Na história moderna, pelo menos, está, portanto, demonstrado que todas as lutas políticas são lutas de classes e que todas as lutas de emancipação das classes, apesar da sua forma necessariamente política — pois, toda a luta de classes é uma luta.política —, giram finalmente em torno da emancipação económica. Pelo menos aqui, o Estado, a ordem política, é o subordinado; a sociedade civil [bürgerliche Gesellschaft], o reino das ligações económicas, é o elemento decisivo. A visão tradicional — que Hegel também partilha — via no Estado o elemento determinante, na sociedade civil o elemento por ele determinado. A aparência corresponde a isso. Assim como, no homem individual, todas as forças impulsionadoras das suas acções têm de passar pela cabeça dele, têm de se transformar em móbiles da sua vontade, para o levar a agir, também todas as necessidades da sociedade civil — qualquer que seja, precisamente, a classe que domina — têm de passar pela vontade do Estado para obter validade universal na forma de leis. Este é o lado formal das coisas, que se compreende por si; só que se pergunta qual é o conteúdo que esta vontade apenas formal — tanto do indivíduo como do Estado — tem, e de onde vem esse conteúdo, por que é precisamente este e não outro que é querido. E se perguntarmos por isso, verificamos que, na história moderna, a vontade do Estado está grosso modo determinada pelas necessidades mutáveis da sociedade civil, pela supremacia desta ou daquela classe, em última instância, pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de troca [Austauschverhältnisse].

Mas, se já nos nossos tempos modernos, com os seus meios de produção e de comunicação gigantescos, o Estado não é um domínio autónomo com desenvolvimento autónomo, mas a sua existência [Bestand] tal como o seu desenvolvimento são, em última instância, de explicar a partir das condições económicas de vida da sociedade, isto tem de valer ainda muito mais para todos os tempos anteriores, em que a produção da vida material dos homens ainda não era empreendida com estes abundantes recursos, em que, portanto, a necessidade [Notwendigkeit] dessa produção tinha de exercer ainda uma dominação maior sobre os homens. Se o Estado, ainda hoje, no tempo da grande indústria e dos caminhos-de-ferro, é grosso modo apenas o reflexo [Reflex], em forma concentrada, das necessidades [Bedurfnisse] económicas da classe que domina a produção, isto teria ainda muito mais de ser assim numa época em que uma geração de homens tinha de consagrar uma parte de longe maior do seu tempo total de vida à satisfação das suas necessidades materiais, estava, portanto, muito mais dependente delas do que nós hoje estamos. A investigação da história de épocas anteriores, desde que concluída seriamente por este lado, confirma isto numa riquíssima medida; porém, evidentemente, isso não pode aqui ser tratado.

Se o Estado e o direito público são determinados pelas relações económicas, também evidentemente o é o direito privado que, essencialmente, sanciona apenas as ligações económicas normais existentes, nas circunstâncias dadas, entre os indivíduos. A forma em que isto acontece pode, porém, ser muito diversa. Pode, como aconteceu em Inglaterra, em consonância com todo o desenvolvimento nacional, conservar-se em grande parte as formas do velho direito feudal e dar-se-lhes um conteúdo burguês, introduzindo por debaixo do nome feudal directamente um sentido burguês; mas também se pode, como na Europa Ocidental continental, tomar por base o primeiro direito mundial de uma sociedade produtora de mercadorias, o [direito] romano, com a sua inultrapassável incisiva elaboração de todas as ligações jurídicas essenciais de simples possuidores de mercadorias (comprador e vendedor, devedor e credor, contrato, obrigação, etc). Pelo que, para proveito de uma sociedade ainda pequeno-burguesa e semifeudal, ou se pode reduzi-lo simplesmente ao nível desta sociedade pela prática judicial (direito comum), ou então, com a ajuda de juristas pretensamente esclarecidos, moralistas, pode-se elaborá-lo num código à parte, correspondente a esse estado da sociedade, [código] esse que, nessas circunstâncias, será também mau juridicamente (Landrecht(34*) prussiano); pelo que, porém, se pode também, após uma grande revolução burguesa, elaborar, na base, precisamente, desse direito romano, um código da sociedade burguesa tão clássico como o Code civil(35*) francês. Se, portanto, as normas jurídicas burguesas apenas expressam as condições económicas de vida da sociedade em forma jurídica, isso pode, portanto, acontecer bem ou mal, segundo as circunstâncias.

No Estado, mostra-se-nos o primeiro poder ideológico sobre o homem. A sociedade cria para si um órgão para a salvaguarda dos seus interesses comuns face a ataques internos e externos. Este órgão é o poder do Estado. Mal após ter surgido, este órgão autono-niiza-se face à sociedade, e isso tanto mais quanto mais ele se torna órgão de uma classe determinada, que faz valer directamente a dominação dessa classe. A luta da classe oprimida contra a classe dominante torna-se necessariamente uma [luta] política, uma luta,antes do mais, contra a dominação política desta classe; a consciência da conexão desta luta política com os seus supostos económicos apaga-se e pode perder-se totalmente. Se, com efeito, não é completamente o caso com os participantes [nessa luta], isso acontece quase sempre com os historiógrafos. De entre as velhas fontes acerca das lutas no interior da república romana, só Apiano (36*) nos diz clara e distintamente do que finalmente se tratava: a saber, da propriedade fundiária.

O Estado, porém, uma vez tornado poder autónomo face à sociedade, produz logo uma ulterior ideologia. Nos políticos de profissão, nos teóricos do direito público e nos juristas do direito privado, nomeadamente, por maioria de razão, perde-se a conexão com os factos económicos. Porque em cada caso individual os factos económicos têm de tomar a forma de motivos jurídicos, para serem sancionados sob a forma de lei, e porque, ao fazê-lo, há também evidentemente que ter em consideração todo o sistema jurídico já em vigor, por [tudo] isto, a forma jurídica deve, então, ser tudo e o conteúdo económico nada. Direito público e direito privado são tratados como domínios autónomos, que têm o seu desenvolvimento histórico independente, que são capazes em si mesmos de uma exposição sistemática e a requerem através de consequente extirpação de todas as suas contradições internas.

Ideologias ainda superiores, isto é, que se afastam ainda mais da base económica, material, tomam a forma da filosofia e da religião. Aqui a conexão das representações com as suas condições materiais de existência torna-se sempre mais complicada, sempre mais obscurecida por elos intermédios. Mas ela existe. Assim como todo o tempo do Renascimento, desde os meados do século XV, foi essencialmente um produto das cidades, portanto, da burguesia, assim também o foi a filosofia desde então reacordada; o seu conteúdo era essencialmente apenas a expressão filosófica do pensamento correspondente ao desenvolvimento da pequena e média burguesia em grande burguesia. Isto aparece claramente nos ingleses e franceses do século passado que, em muitos casos, tanto eram filósofos como economistas políticos, e, para a escola de Hegel, já o demonstrámos acima.

Entremos, no entanto, ainda que apenas brevemente, na religião, porque esta está o mais afastada possível da vida material e parece ser-lhe o mais alheia possível. A religião surgiu num tempo muito primevo [Waldursprunglich], a partir de primevas, enganosas, representações dos homens acerca da sua própria [natureza] e da Natureza exterior circundante. Toda a ideologia, porém, uma vez dada, se desenvolve em ligação com o material de representação dado, elabôra-o mais; se não não seria nenhuma ideologia, isto é, ocupação com pensamentos como essencialidades autónomas, de-senvolvendo-se de modo independente, submetidas apenas às suas leis próprias. Que as condições materiais de vida dos homens, em cuja cabeça este processo de pensamento se dá, determinam finalmente o curso deste processo, permanece necessariamente inconsciente para estes homens, se não seria o fim de toda a ideologia. Estas representações religiosas originárias, portanto, que, na maior parte dos casos, são comuns a todos os grupos de povos aparentados, desenvolvem-se, após a separação do grupo, de uma maneira própria em cada povo, segundo as condições de vida que lhe cabem, e este processo, para uma série de grupos de povos — nomeadamente, para os árias (chamados indo-europeus) — está demonstrado em pormenor pela mitologia comparada. Os deuses assim elaborados por cada povo eram deuses nacionais, cujo reino não ia além do território nacional a proteger por eles, para além de cujas fronteiras outros deuses indiscutivelmente tinham a palavra. Só podiam sobreviver na representação enquanto a nação existisse; caíam com a sua decadência. O império mundial romano, cujas condições económicas de surgimento não temos aqui que investigar, trouxe esta decadência das velhas nacionalidades. Os velhos deuses nacionais entraram em declínio, mesmo os [deuses] romanos que, precisamente, também só estavam talhados para o estreito círculo da cidade de Roma; a necessidade de completar o império mundial com uma religião mundial apareceu claramente nas tentativas de reconhecimento de todos e quaisquer deuses estrangeiros respeitáveis, ao lado dos nativos de Roma, e de lhes erguer altares. Mas uma nova religião mundial não se cria, desta maneira, por decretos imperiais. A nova religião mundial, o cristianismo, já tinha surgido em silêncio, a partir de uma mistura de teologia oriental generalizada, nomeadamente, judaica, e de filosofia grega vulgarizada, nomeadamente, estóica. Que aspecto ela originariamente tinha, temos ainda primeiro de pesquisar laboriosamente, pois a sua figura oficial que nos foi transmitida é apenas aquela em que se tornou religião de Estado, fim para a qual foi adaptada pelo Concílio de Niceia[N199]. Basta já o facto de só 250 anos depois se ter tornado religião de Estado para demonstrar que era a religião correspondente às circunstâncias do tempo. Na Idade Média, na exacta medida em que o feudalismo se desenvolvia, transformou-se na religião que lhe correspondia, com hierarquia feudal correspondente. E quando a burguesia apareceu,desenvolveu-se, em oposição ao catolicismo feudal, a heresia protestante, primeiro, no Sul da França, entre os Albigenses[N200], ao tempo do maior florescimento das cidades dessa [região]. A Idade Média tinha anexado à teologia todas as restantes formas da ideologia: filosofia, política, jurisprudência, tinha-as tornado subdivisões da teologia. Obrigou, portanto, todo o movimento social e político a tomar uma forma teológica; para provocar uma grande tempestade, tinha que se apresentar ao espírito das massas, alimentado exclusivamente de religião, os interesses próprios delas sob disfarce religioso. E assim como, desde o começo, a burguesia criou um apêndice de plebeus, jornaleiros e criados de toda a espécie — urbanos, sem posses, não pertencentes a qualquer estado [Stand] reconhecido —, precursores do ulterior proletariado, também a heresia, já cedo, se dividiu numa [heresia] burguesa-moderada e numa [heresia] plebeia-revolucionária, abominada também pelos heréticos burgueses.

A inextirpabilidade da heresia protestante correspondia à invencibilidade da burguesia ascendente; quando a burguesia se fortaleceu o suficiente, a sua luta, até aí predominantemente local, com a nobreza feudal começou a tomar dimensões nacionais. A primeira grande acção teve lugar na Alemanha — [foi] a chamada Reforma. A burguesia não era suficientemente forte, nem estava suficientemente desenvolvida, para poder reunir sob a sua bandeira os restantes estados [Stände] rebeldes — os plebeus das cidades, a baixa nobreza e os camponeses, no campo. Primeiro, a nobreza foi batida; os camponeses levantaram-se numa insurreição que formou o ponto culminante de todo este movimento revolucionário; as cidades abandonaram-nos e, assim, a revolução sucumbiu aos exércitos dos príncipes da terra, que recolheram os ganhos todos. A partir de então, a Alemanha desaparece, por três séculos, da série dos países que autonomamente intervêm na história. Mas, ao lado do alemão Lutero tinha havido o francês Calvino; com autêntica finura [Schärfe] francesa, trouxe para primeiro plano o carácter burguês da Reforma, republicanizou e democratizou a Igreja. Enquanto a Reforma luterana, na Alemanha, estagnava e levava a Alemanha à ruína, a calvinista servia de bandeira aos republicanos em Genebra, na Holanda, na Escócia, libertava a Holanda da Espanha e do Império alemão[N201] e fornecia o fato ideológico ao segundo acto da revolução burguesa, que em Inglaterra se processava. Aqui o calvinismo com-provava-se como o autêntico disfarce religioso dos interesses da burguesia daquela altura e, por isso, não acedeu a um reconhecimento pleno, quando a revolução de 1689 se concluiu por um compromisso de uma parte da nobreza com os burgueses[N202]. A Igreja de Estado inglesa foi restabelecida, não na sua anterior figura, como catolicismo com o rei por papa, mas fortemente calvinizada. A velha Igreja de Estado tinha celebrado o alegre domingo católico e combatido o maçador [domingo] calvinista; a nova [Igreja de Estado] aburguesada introduziu este [último], e ele ainda agora embeleza a Inglaterra.

Em França, a minoria calvinista, em 1685, foi reprimida, catolizada ou expulsa [do país](37*); mas, para que serviu isso? Já nessa altura, o livre-pensador Pierre Bayle estava ao trabalho, e, em 1694, nasceu Voltaire. A medida violenta de Luís XIV apenas facilitou à burguesia francesa que pudesse fazer a sua revolução sob a forma irreligiosa, exclusivamente política, a única que estava apropriada à burguesia desenvolvida. Em vez de protestantes, foram livres-pensadores que se sentaram nas Assembleias nacionais. Por este facto, o cristianismo tinha entrado no seu último estádio. Tinha-se tornado incapaz, doravante, de servir a qualquer classe progressiva como disfarce ideológico das suas aspirações; tornou-se cada vez mais posse exclusiva das classes dominantes e estas aplicavam-no como mero meio de governo pelo qual as classes inferiores eram mantidas dentro dos limites. Pelo que, então, cada uma das diversas classes utiliza a religião própria que lhe corresponde: o nobre rural [Junker] possuidor de terras, a jesuitice [Jesuiterei] católica ou a ortodoxia protestante; o burguês liberal e radical, o racionalismo; e pelo que não faz qualquer diferença se os senhores acreditam eles próprios nas respectivas religiões, ou não.

Vemos, portanto, que a religião, uma vez formada, contém sempre uma matéria tradicional, assim como que, em todos os domínios ideológicos, a tradição é uma grande força conservadora. Mas, as transformações que se processam nessa matéria resultam das relações das classes, portanto, das relações económicas dos homens que efectuam essas transformações. E, para aqui, isto é suficiente. —

Só pode tratar-se, no que precede, de um esboço geral da concepção da história de Marx, no máximo, quando muito de algumas ilustrações. A prova é de fornecer na própria história e, quanto a isso, devo dizer que ela foi já suficientemente dada em outros escritos. Esta concepção põe, porém, fim à filosofia no domínio da história, assim como a concepção dialéctica da Natureza torna tão desnecessária quanto impossível toda a filosofia da Natureza. Por toda a parte, não se trata mais de congeminar conexões na cabeça, mas de as descobrir nos factos. Para a filosofia desalojada da Natureza e da história, fica ainda então apenas o reino do pensamento puro, na medida em que ainda resta: a doutrina das leis do próprio processo do pensar, a lógica e dialéctica.

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Com a revolução de 1848, a Alemanha «culta» despediu a teoria e transitou para o terreno da prática. O pequeno ofício e a manufactura, que repousavam sobre o trabalho manual, foram substituídos por uma efectiva grande indústria; a Alemanha voltou a aparecer no mercado mundial; o novo império pequeno-alemão(38*) eliminou, pelo menos, as anomalias mais gritantes que a pequena-estadaria [Kleinstaaterei](39*), os restos do feudalismo e a economia burocrática tinham deixado no caminho deste desenvolvimento. Mas, na mesma medida em que a especulação se mudava do gabinete de estudo filosófico para erigir o seu templo na Bolsa de valores, na mesma medida per-dia-se também para a Alemanha culta aquele grande sentido teórico que tinha sido a glória da Alemanha durante o tempo da sua mais profunda degradação política — o sentido para a pesquisa puramente científica, tanto fazendo que o resultado alcançado fosse aproveitável na prática como não, fosse contrário às disposições da polícia ou não. É certo que a ciência da Natureza oficial alemã, nomeadamente, no domínio da investigação de pormenor, se manteve à altura do tempo, mas a revista americana Science [Ciência] observa já com razão que os progressos decisivos no domínio das grandes conexões entre factos singulares, da sua generalização em leis, são agora feitos muito mais em Inglaterra, do que, como anteriormente, na Alemanha. E, no domínio das ciências históricas, incluindo a filosofia, com a filosofia clássica, desapareceu, mais ainda, por maioria de razão, o velho espírito teórico sem transigências; eclectismo desprovido de pensamento, preocupação angustiada por carreiras e rendimentos descendo até ao arrivismo mais ordinário, entraram para o lugar dele. Os representantes oficiais desta ciência tornaram-se ideólogos indisfarçados da burguesia e do Estado existente — mas num tempo em que ambos estão em oposição aberta com a classe operária.

E só na classe operária continua a subsistir intacto o sentido teórico alemão. Aí ele é inextirpável; aí não têm lugar quaisquer considerações de carreira, de tirar proventos, de benevolente protecção a partir de cima; pelo contrário, quanto mais sem transigências e sem prevenções a ciência procede, tanto mais se encontra em consonância com os interesses e as aspirações dos operários. A nova orientação, que reconheceu na história do desenvolvimento do trabalho a chave para o entendimento da história conjunta da sociedade, dirigiu-se de antemão preferencialmente à classe operária e encontrou aí a receptividade que não procurou nem esperava da ciência oficial. O movimento operário alemão é o herdeiro da filosofia clássica alemã.


Notas de rodapé:

(1*) Ludwig Feuerbach, de C. N. Starcke, D[outo]r [em] Fil[osofia] — Stuttgart, Ferd. Encke, 1885. (Nota de Engels.) (retornar ao texto)

(2*) Engels cita, ainda que modificadamente, uma passagem de Hegel extraída do prefácio das Grundlinien der Philosophie des Rechts [Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito]; o mesmo texto aparece também na Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften [Enciclopédia das Ciências Filosóficas], § 6. Os termos hegelianos da proposição são os seguintes: «O que é racional, é real; e o que é real, é racional.» (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(3*) Esta mesma ideia aparece expressa por Hegel em diversos contextos e em formulações aproximadas. «A verdadeira realidade é necessidade; o que é real, é em si necessário», pode ler-se nas Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 270. Por sua vez, na Enzyklopädie, § 147, também se afirma: «A realidade desenvolvida [...] é a necessidade.» (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(4*) Cf. Hegel, Enzyklopädie..., § 142, Zusatz [Aditamento]. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(5*) Cf. Goethe, Faust [Fausto], parte I, cena III (Studierzimmer [Sala de Estudo]). Hegel, igualmente, cita estas palavras: cf., por exemplo, Grundlinien Philosophie des Rechts, prefácio. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(6*) Cf. Hegel, Wissenschaft der Logik [Ciência da Lógica]. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(7*) Cf. David Friedrich Strauss, Das Leben Jesu [A Vida de Jesus], Bd. 1-2, Tübingen 1835-1836. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(8*) Cf. Max Stirner, Der Einzige und sein Eigenthum [O Único e a Sua Propriedade], Leipzig 1845. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(9*) Cf. Ludwig Feuerbach, Das Wesen des Christenthums [A Essência do Cristianismo]. Leipzig 1841. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(10*) Cf. K. Marx/F. Engels, Die heilige Familie, oder Kritik der kritischen Kritik. Gegen Bruno Bauer & Consorten [A Sagrada Família, ou Crítica da Critica Crítica. Contra Bruno Bauer & Consortes], Frankfurt a. M. 1845. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(11*) Sobre o «socialismo verdadeiro» ver, por exemplo, a presente edição, t. I, 1982, pp. 128-131. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(12*) Ainda hoje, entre selvagens e bárbaros inferiores, é geral a representação de que as figuras humanas que aparecem em sonhos são almas que abandonam temporariamente os corpos; o homem real é, portanto, tido também por responsável pelas acções que a sua aparição em sonho comete face àquele que sonha. Im Thurn, por exemplo, encontrou isto, em 1884, entre os índios na Guiana. (Nota de Engels.)
Engels refere-se aqui, muito provavelmente, ao livro de Everard Ferdinand mi Thurn: Among the Indians of Guiana: being sketches, chiefly anthropologic, from the interior of British Guiana [Entre os índios da Guiana: Esboços, principalmente Antropológicos, do Interior da Guiana Britânica], London, 1883. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(13*) Engels cita aqui os Nachgelassene Aphorismen [Aforismos Póstumos], publicados por Karl Grün em Ludwig Feuerbach in seinem Briefwechsel und Nachlass sowie in seiner philosophischen Charakterentwicklung [Ludwig Feuerbach na Sua Correspondência e Obra Póstuma, bem como no Seu Desenvolvimento Filosófico do Carácter], Leipzig e Heidelberg, Bd. 2, S. 308. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(14*) Por vezes, Engels designa também estes representantes do «materialismo vulgar» como Reiseprediger, pregadores ambulantes ou como Hausierer, vendedores ambulantes. Cf. no presente texto, p. 393, e no Antigo Prefácio ao «Anti-Dühring », p. 66 do presente tomo. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(15*) Ver nota 14 acima. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(16*) Cf. Hegel, Phänomenologie des Geistes [Fenomenologia do Espírito], Hrsg. von Johann Schulze, Bd. 2, Berlin, 1832. (retornar ao texto)

(17*) Em latim no texto: religar. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(18*) Em francês no texto: Portanto, o ateísmo é a vossa religião! (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(19*) Cf. Feuerbach, Wider den Dualismus von Leib und Seele, Fleisch und Geist [Contra o Dualismo de Corpo e Alma, Carne e Espirito]. In: Sämmtliche Werke, Bd. 2, Leipzig 1846. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(20*) Cf. Feuerbach, Noth meistert alle Gesetze und hebt sie auf [A Necessidade Domina Todas as Leis e Supera-as], edição citada de Karl Grün, Bd. 2. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(21*) Cf. Feuerbach, Grundsätze der Philosophie. Nothwendigkeit einer Veränderung [Princípios Fundamentais da Filosofia. Necessidade de Uma Transformação], edição citada de Karl Grün, Bd. 1. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(22*) Em latim no texto: terra desconhecida. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(23*) Referências e desenvolvimentos em torno desta mesma ideia podem encontrar-se, por exemplo, em: Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, §§ 18 e 139, e Vorlesungen uber die Philosophie der Religion [Lições sobre a Filosofia da Religião]. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(24*) Cf. Feuerbach, Fragmente zer Charateristik meines philosophischen Curriculum vitae [Fragmentos para a Caracterização do Meu Currículo]. In: Sämmtliche Werke, Bd. 2, Leipzig 1846. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(25*) Cf. Feuerbach, Wider den Dualismus von Leib und Seele, Fleisch und Geist [Contra o Dualismo de Corpo e Alma, Carne e Espirito]. In: Sämmtliche Werke, Bd. 2, Leipzig 1846. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(26*) Ver 25 acima. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(27*) Cf. David Friedrich Strauss, Die christliche Glaubensiehre in ihrer geschichtlichen Entwicklung und im Kampfe mit der modernen Wissenschaft [O Dogma Cristão no Seu Desenvolvimento Histórico e em Luta com a Ciência Moderna]. Tübingen e Stuttgart, 1840-1841, Bd. 1-2; a segunda parte da obra intitula-se, precisamente: Der materiale Inbegriff der christlichen Glaubensiehre oder die eigentliche Dogmatik [O Agregado Material do Dogma Cristão ou a Dogmática Propriamente Dita]. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(28*) Em francês no texto: à maneira de. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(29*) Seja-me permitido aqui um esclarecimento pessoal. Recentemente aludiu-se por várias vezes à minha quota-parte nessa teoria e, portanto, eu não posso deixar de dizer aqui as poucas palavras que arrumam este ponto. Eu próprio não posso negar que, antes e durante a minha colaboração de quarenta anos com Marx, tive uma certa quota-parte autónoma, tanto na fundação como, nomeadamente, na elaboração da teoria. Mas, a maior parte dos pensamentos directores fundamentais, Particularmente no domínio económico e histórico, e, especialmente, a aguda formulação definitiva dela, pertencem a Marx. Àquilo com que eu contribuí, também Marx podia — quando muito, exceptuando alguns ramos especiais — ter muito bem chegado sem mim. Ao que Marx realizou, eu não teria chegado. Marx estava mais acima, via mais longe, abarcava mais e mais rapidamente, do que todos nós, os outros. Marx era um génio, nós, os outros, no máximo, talentos. Sem ele, a teoria não seria hoje, de longe, aquilo que é. Ela tem, portanto, também com razão, o nome dele. (Nota de Engels.) (retornar ao texto)

(30*) Ver Das Wesen der Kopfarbeit, von einem Handarbeiter(31*), Hamburg, Meissner. (Nota de Engels.) (retornar ao texto)

(31*) O título completo da obra de Dietzgen, publicada em 1869, é: Das Wesen der menschlichen Kopfarbeit. Dargestellt von einem Handarbeiter. Eine abermalige Kritik der reinen und praktischen Vernunft [A Essência do Trabalho Cerebral Humano. Exposta por Um Operário Manual. Uma Reiterada Crítica da Razão Pura e Prática]. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(32*) Em inglês no texto: aristocracia fundiária, com terras. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(33*) Em inglês no texto: classe média. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(34*) Espécie de código civil. Tratava-se de legislação que mergulhava as suas raízes no carácter atrasado da Prússia, com abundantes traços feudais. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(35*) Em francês no texto: Código Civil[N88]. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(36*) Cf. Apiano de Alexandria, Romaica, XIII-XVII. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(37*) O Edicto de Nantes, publicado em 1598 por Henrique IV, concedia aos calvinistas franceses (huguenotes) liberdade de culto em determinadas regiões e garantias de tipo jurídico, político e militar.
A revogação do Edicto de Nantes em 1685 por Luís XIV suprimiu esses direitos e garantias, vindo a coroar toda uma perseguição política e religiosa dos huguenotes que se desenvolvia já desde os anos 20 do século XVII. Na sequência da revogação, centenas de milhares de huguenotes abandonaram a França. (Nota da edição Portuguesa.) (retornar ao texto)

(38*) Império alemão surgido em 1871, sob a hegemonia da Prússia, e que contrariamente ao sonho dos partidários da «grande Alemanha», não incluía a Áustria. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(39*) Referência pejorativa ao sistema de pequenos Estados em que a Alemanha se encontrava dividida. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N31] De acordo com as concepções reinantes na química do século XVIII, considerava-se que o processo de combustão era determinado pela existência de uma substância especial nos corpos, o flogisto, que se segregava deles durante a combustão. O eminente químico francês A. Lavoisier demonstrou a inconsistência desta teoria e deu a explicação correcta do processo de combustão como reacção de combinação de um corpo combustível com o oxigênio. (retornar ao texto)

[N81] Deísmo: doutrina filosófico-religiosa que reconhece Deus como causa primeira racional impessoal do mundo, mas nega a sua intervenção na vida da Natureza e da sociedade. (retornar ao texto)

[N84] A historiografia burguesa inglesa chama «revolução gloriosa » ao golpe de Estado de 1688, com o qual foi derrubada na Inglaterra a dinastia dos Stuarts e instaurada a monarquia constitucional (1689), encabeçada por Guilherme de Orange e baseada num compromisso entre a aristocracia latifundiária e a grande burguesia. (retornar ao texto)

[N88] Aqui e nas referências subsequentes Engels entende por Code civil (Código Civil) ou Code Napoléon (Código de Napoleão) todo o sistema do direito burguês, representado pelos cinco códigos (civil, civil-processual, comercial, penal, e processual-penal), adoptados sob Napoleão I nos anos de 1804 a 1810. Estes códigos foram implantados nas regiões da Alemanha Ocidental e Sul-Ocidental conquistadas pela França de Napoleão e continuaram em vigor na província do Reno mesmo depois da anexação desta pela Prússia em 1815. (retornar ao texto)

[N194] Em 1833-1834 Heine publicou as suas obras Die romantische Schule (A Escola Romântica) e Zur geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland (Para a História da Religião e da Filosofia na Alemanha), nas quais defendia a ideia de que a revolução filosófica na Alemanha, cuja etapa final era então a filosofia de Hegel, era o prólogo da iminente revolução democrática no país. (retornar ao texto)

[N196] Trata-se do planeta Neptuno, descoberto em 1846 pelo astrônomo alemão J. Galle. (retornar ao texto)

[N197] Expressão muito difundida na publicística burguesa alemã depois da vitoriados prussianos em Sadowa (ver nota 246), que encerrava a ideia de que a vitória da Prússia tora determinada pelas vantagens do sistema prussiano de instrução pública. (retornar ao texto)

[N198] Restauração: período do segundo reinado dos Bourbons em França, em 1814-1830. (retornar ao texto)

[N199] Concílio de Niceia: primeiro concilio ecumênico dos bispos da Igreja cristã do Império Romano, convocado no ano de 325 pelo imperador Constantino I para a cidade de Niçeia (Ásia Menor). O concilio elaborou o Símbolo ou Credo obrigatório para todos os cristãos. (retornar ao texto)

[N200] Albigenses (da cidade de Albi): membros de uma seita religiosa difundida nos séculos XII-XIII nas cidades do Sul de França e do Norte de Itália. Pronunciavam-se contra as sumptuosas cerimônias católicas e a hierarquia eclesiástica e exprimiam sob uma forma religiosa o protesto dos artesãos e comerciantes das cidades contra o feudalismo. (retornar ao texto)

[N201] No período de 1477 a 1555, a Holanda fez parte do Sacro Império Romano-Germânico (ver nota 186), tendo ficado, depois da divisão deste, sob o domínio de Espanha. No final da revolução burguesa do século XVI a Holanda libertou-se do domínio espanhol e constituiu-se em república burguesa independente. (retornar ao texto)

[N202] Trata-se da «revolução gloriosa» em Inglaterra (ver nota 84). (retornar ao texto)

[N246] Trata-se do combate decisivo da guerra austro-prussiana nas imediações da cidade de Königgrätz (actualmente Hradec-Králové, na Boémia), perto da aldeia de Sadowa, a 3 de Julho de 1866. A batalha de Sadowa terminou com uma grande derrota das tropas austríacas. (retornar ao texto)

Inclusão 27/06/2013