Jorge Amado e os Porões da Decência

Hermínio Sacchetta

1954


Fonte: Jornal Tribuna da Imprensa. Artigo escrito em 1954, por ocasião do lançamento do livro "Os subterrâneos da liberdade".
Transcrição: Paula Sacchetta
HTML: Fernando Araújo


capa

Em lugar do famoso terceto camoniano, na página de rosto de Os subterrâneos da liberdade deveriam estar inscritas as instruções dadas pela MVD a Jorge Amado, fixando-lhe as normas políticas do livro, dentro dos cânones da estética zdanovista. Porque o romance à Ponson du Terrail do escriba itinerante é, como indisfarçavelmente pretende seu próprio autor, realidade envolta em ficção. Implica, por isso mesmo, num objetivo: apresentar a historia ad usum da Têmis moscovita que, ao revés da “boulaia” de Píndaro, é uma megera escrofulosa em conúbio com os Yogodas, Berias, Vishinskys... para maior glória dos burocratas stalinistas.

Contrariamente a Graciliano Ramos que, como declara, desprezou em Memórias do cárcere a ficção para não incorrer em fraude histórica, o Sr. J. A. apega-se à ficção intentando melhor burlar a verdade sobre acontecimentos de um passado ainda recente em que o autor destas linhas, por injunções circunstanciais, desempenhou papel não totalmente secundário.

O semi-analfabeto ilustre, hoje traduzido em várias línguas da órbita russa e, por força do aparelho kominformista, mesmo no ocidente, se me apresenta sob pseudônimo – Saquila – preocupa-se em fazer com que o leitor me identifique, referindo-se, de passagem, a meu nome partidário da época.

Como todas essas desprezíveis vivandeiras intelectuais do stalinismo, o autor de O mundo da paz nutre de subliteratura fraudulenta as pobres vítimas do aparelho partidário, procurando imunizá-las, por meio de calúnias e imposturas, contra as idéias sobre o socialismo científico e a verdade no tocante ao degradante capitalismo de Estado que asfixia o povo russo. Este novo Barão de Münchausen, como o das fantásticas aventuras, também a serviço dos senhores da Rússia, não tem limites em suas pérfidas mentiras a respeito de minha posição política na dissidência irrompida nas fileiras do stalinismo brasileiro, pouco após a malograda aventura prestista de novembro de 1935. Típico homo staliniensis, frio, calculista e cínico, despido de toda a decência, o Sr. J. A. habitué dos bureaux da MVD de que é, por certo, comensal, imputa-me, por um passe de magia, entre outras imbecilidades do mesmo jaez, a elaboração teórica das teses sobre a “burguesia progressista aliada do proletariado”, em decorrência do que me transforma em paladino de um bloco com os armandistas para derrubar o governo discricionário de Getúlio Vargas.

Se o Sr. J. A. fosse dotado de elementar honestidade, ele que, àqueles tempos, nenhum contato mantinha com o PC, empregando suas atividades intelectuais no Meio Dia, jornal da embaixada nazista no Rio de Janeiro, poderia ter examinado a extensa literatura existente sobre os episódios em questão. Em arquivos do PC brasileiro e no Departamento Latino-Americano do antigo Komintern encontram-se, sem dúvida, os numerosos artigos e folhetos escritos por seus companheiros de tendência e pelo autor destas linhas que, além de redator principal de A Classe Operária, era um dos dirigentes do movimento. Mas o Sr. J. A., para fazer jus ao polpudo prêmio Stalin e às não menos pingues rendas que lhe proporcionam os royalties das editoras estatizadas de trás da Cortina de Ferro, prefere, ao exame dos documentos, a metodologia da impostura prescrita pela historiografia stalinista que, como se sabe, refaz, periodicamente, os tratados e as enciclopédias soviéticas ao sabor de suas tenebrosas conveniências. Atribuir aos seus adversários os próprios erros é a forma clássica de os stalinistas combaterem os contentores do campo proletário, quando os fatos confirmam as teses destes. Como os burocratas, seus senhores, não o puderam fazer, desamparados pela documentação, o Sr. J. A., aceitou o desasseado papel de passar contrabando ficcionista em que falsifica a historia preservando a infalibilidade política dos fanfarrões primários que dirigem o stalinismo, aqui e além.

Não cabe ora recapitular as teses que, àquele tempo, constituíram linhas de cristalização das duas alas dos comunistas do Brasil em divergência. Limitamo-nos a lembrar que nós e nossos amigos políticos preconizávamos, então, eqüidistância pelo PC dos dois candidatos que disputavam o Catete (Armando de Salles Oliveira e José Américo de Almeida) e frente única das forças democráticas para evitar o golpe de Estado que Getúlio preparava e, ao cabo, desfechou. A ala que seria apoiada por Moscou encarniçava-se para que simplesmente fosse dado apoio a José Américo, rojando-se-lhe, em pânico, aos pés. Confirme o Sr. J. A. – refutando, à luz de provas documentais, o que acabamos de dizer – a despudorada série de invencionices que contrabandeia em seu Rocambole zdanovista de mais de mil páginas.

O Sr. J. A. nunca foi, não é e jamais será marxista. Por isso mesmo, ignora que a verdade é concreta e sua medida é a ação. Ao cabo, as calúnias remuneradas ricochetearão acentuando-lhe as graves falhas de caráter que o stalinismo só fez aprofundar. Não é o caso, nem remotamente move o autor deste artigo a pretensão de insinuar-se entre os grandes caluniados da historia do movimento operário. Mesmo Lenin e Trotsky o foram da mais vilipendiosa forma concebível, tanto por adversários do âmbito proletário como por porta–vozes do pensamento manifestamente reacionário. Mas, diz bem o criador do Exército Vermelho:

“A historia não se deixa enganar, nem dela se pode zombar. Ao final, ela põe cada um em seu lugar”.

Se a historiografia stalinista produziu esse monturo de torpezas sobre a ala esquerda na cisão dos comunistas brasileiros em 1937, de igual modo a estética zdanovista engendra, por meio do Sr. J. A., o romance teratológico sob o ângulo artístico, que são Os subterrâneos da liberdade. Folhetinesco, enfadonho e convencional, esse produto do realismo socialista, no que tange à classe operária, se reduz a uma exposição didática da mitologia stalinista, em que militantes proletários se movimentam em atmosfera de hipocrisia clerical e farisaica. Os burocratas, que são só o que o Sr. J. A. conhece do movimento operário, ressaltam do background fantasmagórico para pontificar, de indicador em riste, ante intelectuais simpatizantes temerosos de incorrer em desvios e sempre prontos ao elogio servil do dirigente ignorante e auto-suficiente, destituído de toda autenticidade humana. Toca o ridículo o esforço que faz J. A., para, em manifesta obediência à linha Malenkov, apresentar como boazinhas e bem comportadas as suas personagens proletárias.

Os idílios sentimentais entre camaradas se sucedem, desembocando sempre no Cartório em busca da sanção do “seu dotô juiz”... O notório e incorrigível Rasputim, feito grotesco casamenteiro, é de estarrecer o mais cético dos mortais. A quanto obriga a coexistência pacífica!

O romancista de Terras do sem fim lograva fazer esquecer o escritor jejuno das regras gramaticais e seus solecismos eram relevados. Agora, que pôs sua arte a serviço da MVD, desnutrindo-a do estonteante poder telúrico que a marcava, sua proverbial e primária ignorância de questões gramaticais agride mesmo os mais benevolentes. O Sr. J. A., que mal conhecia seu idioma, retorna de prolongada permanência no estrangeiro onde, por força de suas poucas letras, deve ter se utilizado, no convívio social, apenas do espanhol mais acessível aos latino-americanos. Destarte, a algaravia de Os subterrâneos da liberdade é bilíngüe. O semi-analfabeto ilustre mescla castelhano com português em todo o seu cartapacio, dando-nos, por vezes, a impressão de um escriba das priscas eras D’El Rey Dom Diniz. Antes, o primarismo da linguagem do Sr. J. A. era absorvido por uma prodigiosa receptividade de romancista que, como certos cantadores analfabetos do Nordeste, podia infundir beleza ao drama de sua gente, a despeito de parco acervo cultural. No fuilleton que acaba de aparecer, a fria e burocrática impostura somada à caricatura sistemática do inimigo de classe (até quando?), segundo as regras zdanovistas, leva à convicção de completo malogro daquilo que pretendeu ser um monumental afresco da sociedade brasileira de 1937–40.

Certo, é supérfluo recomendar ao Sr. J. A. que despreze a mal-cheirosa estética zdanovista, revigorando sua sensibilidade nos princípios de arte literária formulados por Marx, Engels, Plekanov e discípulos destes tais como Lenin e Trotsky. Legaram-nos estes clássicos do marxismo páginas para a postulação dos fundamentos do realismo socialista, algumas delas encontradiças em português, inclusive. Penaliza ver o estupendo romancista de Jubiabá e Capitães de areia anemiado pelo servilismo a instilar calúnias, de vez que, se não apodreceu irremediavelmente, com seu talento irrecusável poderia oferecer à causa dos oprimidos contribuição não desdenhável.


Inclusão 10/11/2011
Última alteração 23/02/2016