Lenine

Leão Trotski


Primeira Parte: Lenine e o Velho Iskra (continuação)


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Antes das conferências de Paris tinha ouvido Lenine uma só vez, creio, em Londres, em fins de Dezembro de 19O2. Coisa bizarra, não me resta qualquer lembrança do carácter dessa manifestação, nem do tema que foi tratado. Estaria quase disposto a duvidar da realidade desta recordação. No entanto, tenho a certeza que houve então uma reunião de russos, muito importante para Londres, à qual assistiu Lenine; se ele não tivesse lá ido para fazer uma conferência, provavelmente não o teríamos visto. Explico da seguinte maneira esta lacuna da minha memória: a conferência foi provavelmente consagrada, como habitualmente se fazia, a um tema tratado no último número do Iskra; eu tivera assim a possibilidade de ler o artigo de Lenine sobre o assunto e, consequentemente, a conferência não apresentava para mim nada de novo; além disso, não houve debates; os poucos adversários que se encontravam em Londres não tiveram a audácia de tomar a palavra contra Lenine; o auditório, composto em parte por "bundistas", em parte por anarquistas, constituía um meio bastante ingrato; como resultado de tudo isso, a conferência deixou poucos vestígios. Lembro-me apenas que no fim da reunião os B..., marido e mulher, do antigo grupo de Petersburgo "O Pensamento Operário" (Rabotchaia Misl), que viviam há bastante tempo em Londres, se aproximaram de mim e me convidaram:

- Venha a nossa casa na véspera do Ano-Novo. (É por isso que eu localizo a data da reunião no fim de Dezembro).

- Porquê? - perguntei espantado, como autêntico bárbaro.

- Passaremos o tempo entre camaradas. Ulianov estará lá  e Krupskaia também. i Lembro-me bem que eles disseram Ulianov e não Lenine; não compreendi logo à primeira de quem é que se tratava. Zassulitch e Martov foram igualmente convidados. No dia seguinte, no "covil", reunimo-nos em conselho para saber o que fazer; perguntámos a Lenine se ele corresponderia ao convite. Julgo que ninguém lá foi. E foi pena: teria sido uma ocasião excepcional única no género, para ver Lenine, com Zassulitch e Martov, numa festa de Ano-Novo.

Quando cheguei a Genebra ido de Paris, fui convidado para casa de Plekanov, com Martov e Zassulitch; penso que Vladimir Ilitch também lá foi. No entanto, dessa noite apenas me resta uma recordação extremamente confusa. Em todo o caso, essa reunião não teve qualquer carácter político; poderia dizer-se que foi "mundana" ou, ainda, das mais banais. Eu conservei-me na minha cadeira, lembro-me disso, bastante desanimado e aborrecido e, desde que o dono ou a dona da casa não me prestassem o mínimo sinal de atenção, não sabia que fazer de mim próprio. As filhas de Plekanov serviam chá e bolinhos. Havia em todas as palavras, em todos os gestos, qualquer coisa de tenso, uma espécie de constrangimento que provavelmente não era só eu a sentir. Talvez por causa da minha juventude eu sentisse essa ligeira frieza mais vivamente que os outros. Esta visita a Plekanov foi a primeira e a última. É claro que as impressões que me ficaram foram das mais fugidias e, muito possivelmente, fortuitas, tal como foram fugidios e fortuitos todos os meus encontros com Plekanov. Tentei noutro lado caracterizar resumidamente a brilhante figura do primeiro mestre em marxismo que jamais a Rússia teve., Limito-me aqui às impressões dos primeiros encontros, nos quais, ai de mim, não tive realmente grande sorte. Zassulitch, que ficava muito triste com tudo isto, dizia-me

- Sei que o Jorge é algumas vezes insuportável, mas, no fundo, é um animal do mais amável que há. (Era a maneira dela fazer um elogio).

Não pude evitar referir aqui que na família de Axelrod reinava uma atmosfera de simplicidade e de sincera camaradagem. Ainda hoje me lembro, com gratidão, das horas que passei à mesa hospitaleira dos Axelrod quando das minhas frequentes idas a Zurique. Vladimir Ilitch também lá foi mais do que uma vez e, tanto quanto eu sei pelas narrativas desta família, sentia-se ali confortado e à vontade. Aliás, não tive oportunidade de o encontrar em casa dos Axelrod.

Quanto a Zassulitch, a sua simplicidade e afabilidade em relação aos jovens camaradas eram verdadeiramente incomparáveis. Se não se pode falar da sua hospitalidade no sentido habitual do termo, é que ela tinha mais necessidade de lhe receber o benefício do que de a proporcionar aos outros. Vivia, vestia-se e alimentava-se como a mais modesta das estudantes. No domínio dos valores materiais, as suas maiores alegrias eram o tabaco e a mostarda. Consumia um e outra em grandes quantidades. Quando espalhava sobre uma fatia muito fina de presunto uma espessa camada de mostarda, nós dizíamos: "Vera Ivanovna está na farra ".

L. G. Deutch, quarto membro do grupo A Emancipação do Trabalho, também se distinguia pela sua bondade e atenção para com a juventude. Até agora não referi que, na qualidade de administrador do Iskra, ele assistia às sessões da redacção com voz consultiva. Deutch acompanhava geralmente Plekanov, tendo opiniões mais que moderadas sobre a táctica revolucionária. Um dia pôs-me estupefacto ao declarar:

- Nunca haverá um levantamento armado, meu jovem, e tal não é necessário. Na penitenciária havia "galos" entre nós que, ao primeiro pretexto, procuravam combater e faziam-se agredir. Eu seguia outra conduta: ser firme, fazer constar à administração que se poderia vir a dar uma grande batalha, mas sem nunca se chegar a vias de facto. Por este meio, obtinha um certo respeito por parte da administração e condições mais suaves no regime. É a táctica que devemos empregar face ao csarismo; de outro modo, demolir-nos-ão, aniquilar-nos-ão sem qualquer utilidade para a causa...

Fiquei de tal maneira fulminado com este sermão sobre a táctica que falei dele sucessivamente a Martov, a Zassulitch e a Lenine. Não me lembro qual foi a reacção de Martov. Vera Ivanovna disse-me:

- O Eugénio (era o velho pseudónimo de Deutch) foi sempre assim: pessoalmente é um homem duma coragem excepcional; mas, em política, é extremamente prudente e comedido.

Lenine, depois de me ter ouvido, pronunciou qualquer coisa ,do género de: "Hum...hum...si-im", e desatámos ambos a rir, sem mais comentários.

Os primeiros delegados do próximo II Congresso começavam a reunir-se em Genebra e nós conferenciávamos com eles ininterruptamente. Neste trabalho preparatório Lenine tinha indiscutivelmente preponderância, muito embora o seu papel não fosse sempre perceptível. Havia sessões da redacção do Iskra, sessões de organização do Iskra, reuniões separadas com grupos de delegados e assembleias plenárias. Uma parte dos delegados tinha chegado com dúvidas, objecções ou reclamações de grupos. Este trabalho preparatório absorvia muito tempo.

Apenas três operários vieram ao congresso. Lenine conversou em pormenor com cada um deles e conquistou-os a todos. Um deles era Schotmann, de Petersburgo. Era ainda muito jovem, mas prudente e ponderado. Lembro-me que, regressados de uma conversa com Lenine (Schotmann tinha ficado na mesma casa onde eu estava), repetia sem parar:

- Como brilham os seus olhinhos! Dir-se-ia que eles vêem através de nós!...

O delegado de Nicolaiev era Kalafati. Vladimir Ilitch interrogou-me longamente sobre a pessoa dele, porque eu o tinha conhecido lá, em Nicolaiev, e depois, com um ar malicioso, acrescentou:

- Ele diz que, quando o conheceu, você era qualquer coisa do género dum tolstoiniano.

- Pois bem! Aí está uma asneira! - exclamei, quase indignado.

- Bah! não há grande mal nisso! - replicou Lenine, fosse para me consolar, fosse para me atazanar. - Você tinha então, creio, dezoito anos, e bem sabe que as pessoas não nascem marxistas.

- Pode ser - respondi -, mas quanto ao tolstoiismo, nunca tive nada de comum com isso.

Nas reuniões preparatórias demos muita atenção à elaboração dos estatutos; um dos momentos mais importantes nos debates sobre o esquema de organização foi aquele em que se discutiram as relações mútuas entre o jornal central e o Comité Central. Eu tinha ido para o estrangeiro com a ideia de que o jornal central devia "subordinar-se" ao Comité Central. Tal era O estado de espírito da maioria dos "russos" do Iskra, sem que, contudo, esta opinião fosse muito clara e firme.

- Isso não funciona - replicou-me Vladimir Ilitch. A proporção das forças não se apresenta assim. Vejamos, como farão eles para nos comandar de lá dos confins da Rússia? Isso não funciona... Nós formamos um centro estável e somos nós que comandaremos daqui.

Estava dito num dos projectos que o órgão central seria obrigado a publicar os artigos dos membros do Comité Central.

- Mesmo contra o jornal central? - perguntou Lenine.

- Evidentemente.

- E para quê? Isso não tem razão de ser. Uma polémica entre dois membros do órgão central poderia ser útil em certas condições; mas uma polémica dos "russos" do Comité Central (quer dizer, dos membros que residiam na Rússia) contra o órgão central seria inaceitável.

- Então, é a ditadura completa do jornal central? - perguntei eu.

- E que mal vê nisso? - replicou Lenine. É assim que tem de ser na presente situação.

Houve nesse período muito reboliço à volta da questão do "direito de cooptação". Numa das reuniões, nós, os jovens, acabámos por decidir sobre o direito de cooptação positiva e negativa.

- Mas aquilo a que vocês chamam cooptação negativa é, pura e simplesmente, aquilo que em bom russo se chama "pôr no olho da rua" - disse-me no dia seguinte Vladimir Ilitch, que se pôs a rir. - Não é tão simples como parece. Experimente só - ha! ha! ha! - fazer uma cooptação negativa na redacção do Iskra!

Para Lenine, a mais grave das questões consistia em saber como se organizaria em seguida o órgão central que, em suma, devia desempenhar simultaneamente o papel do Comité Central. Lenine julgava impossível manter o antigo conselho dos seis. Quase infalivelmente, Zassulitch e Axelrod tomavam em todas as questões litigiosas o partido de Plekanov, .em consequência do que, no melhor dos casos, estávamos três contra três. Nem um nem outro destes dois grupos teria consentido eliminar um dos membros do Conselho. Portanto, nada mais restava senão seguir o caminho oposto e ampliar o Conselho. Lenine queria que eu fosse o sétimo, de modo que, sendo o Conselho dos sete considerado como uma redacção ampliada, formaríamos um grupo redactorial mais restrito, composto por Lenine, Plekanov e Martov. Vladimir Ilitch punha-me pouco a pouco ao corrente deste plano, sem dizer, aliás, uma só palavra sobre a proposta que fizera de me pôr a mim como sétimo membro da redacção, sem me dizer que esta proposta tinha sido aceite por todos, salvo Plekanov, em quem o plano encontrou um adversário firme. A introdução de um sétimo já significava por si mesma, aos olhos de Plekanov, um aumento do grupo da Emancipação do Trabalho: quatro "jovens" contra três "velhos"!

Penso que este plano foi a causa principal da atitude eminentemente antipática de Jorge Valentinovitch relativamente à minha pessoa. Além disso, para cúmulo do azar, manifestaram-se abertamente entre nós pequenos mal entendidos diante dos olhos dos delegados. Isto começou, parece-me, por causa dum projecto de um jornal popular. Certos delegados insistiam na necessidade de se criar, a par do Iskra, um órgão que aparecesse, se possível, na Rússia. Tal era particularmente a ideia do grupo "O Jovem Operário". Lenine era um adversário firme deste projecto. Os motivos que apresentava para isso eram de diversa ordem, mas o principal residia no medo de que se formasse um grupo particular que pudesse constituir-se na base de uma "popularização" simplificada das ideias da social-democracia antes que o núcleo do partido tivesse tempo de consolidar-se como devia. Plekanov declarava-se resolutamente pela criação de um órgão popular, opondo-se a Lenine e procurando evidentemente o apoio dos delegados regionais. Eu apoiava Lenine. Numa das reuniões desenvolvi a ideia - certa ou errada, já não importa agora - de que nós tínhamos necessidade não de um órgão popular, mas de uma série de brochuras e folhetos de propaganda, que ajudariam os operários mais evoluídos a elevar-se ao nível do Iskra, e que um jornal popular reduziria o lugar ocupado pelo Iskra e faria desaparecer a fisionomia política do Partido, fazendo-o descer ao "economismo" e ao socialismo-revolucionário. Plekanov replicou-me:

- Por que razão faria o jornal desaparecer a fisionomia do Partido? É claro que, num órgão popular, nós não poderemos dizer tudo quanto temos para dizer. Apresentaremos nele reivindicações, palavras de ordem, sem nos ocuparmos com questões de táctica. Diremos ao operário que é preciso lutar contra o capitalismo, mas, como é evidente, não faremos teoria sobre a maneira como se deve lutar contra o capitalismo.

Servi-me desta argumentação:

- Mas - disse eu -, os "economistas" e os socialistas-revolucionários dizem todos que é preciso lutar contra o capitalismo. A divergência começa justamente no ponto onde é preciso determinar a maneira de lutar. Se num órgão popular nós não respondermos a esta questão, faremos desaparecer, por isso mesmo, a diferença entre nós e os socialistas-revolucionários...

A minha réplica pareceu vitoriosa. Plekanov não encontrou nada para lhe opor. É evidente que este episódio não contribuiu para melhorar as nossas relações.

Depressa se produziu um novo conflito numa sessão da redacção, que decidiu, enquanto esperava que o Congresso regulasse a questão do efectivo redactorial, admitir-me nas sessões com voz consultiva. Plekanov opôs-se categoricamente. Mas Vera Ivanovna disse-lhe:

- Pois bem, quem o leva sou eu. E, com efeito, levou-me à sessão. Só muito mais tarde tive conhecimento deste segredo de bastidores; apresentei-me na redacção sem saber de nada, sem nada ter adivinhado. Jorge Valentinovitch saudou-me com a polidez refinada em que se tinha tornado mestre.

Por infelicidade, a redacção iria nessa mesma sessão examinar um conflito que tinha eclodido entre Deutch e Blumenfeld, de que já atrás falei. Deutch era administrador do Iskra. Blumenfeld dirigia a tipografia. Neste campo surgiu uma contestação acerca das competências. Blumenfeld queixava-se da intromissão de Deutch nos assuntos internos da tipografia. Plekanov, por razões de velha amizade, apoiou Deutch e propôs que se limitassem os direitos de Blumenfeld à técnica tipográfica.

Eu repliquei que era impossível dirigir-se uma tipografia restringindo-se a pessoa simplesmente ao domínio da execução técnica; que também existiam problemas de organização e de administração, e que Blumenfeld devia ter autonomia em todas estas questões.

Lembro-me da réplica azeda de Plekanov:

- Sem dúvida que o camarada Trotski tem razão ao dizer que à técnica se sobrepõem a diversos elementos administrativos e outros, como nos ensina a teoria do materialismo histórico; no entanto..., etc..

Lenine e Martov apoiaram-me com circunspecção e fizeram adoptar uma decisão no sentido por mim apontado. Foi a gota que fez transbordar o copo.

Nestas duas circunstâncias Vladimir Ilitch colocou-se, como vimos, do meu lado. Mas, ao mesmo tempo, observava com apreensão o modo como as minhas relações com Plekanov se iam deteriorando, o que ameaçava comprometer definitivamente o plano de reorganização da redacção que ele tinha delineado. Numa das reuniões seguintes, onde se encontravam delegados chegados de novo, Lenine, puxando-me para o lado, disse-me:

- Na questão do jornal popular, deixe que seja antes Martov a responder a Plekanov. Martov deixará escorregar o assunto, enquanto você quererá mesmo cortar. É melhor deixar escorregar.

Estas expressões "cortar" e "deixar escorregar" ficaram nitidamente gravadas na minha memória.

Depois de uma das sessões da redacção no café "Landolt", talvez depois da sessão de que acabei de falar, Zassulitch, com o tom particular que empregava em tais circunstâncias, numa voz timidamente insistente, queixou-se de nos ver atacar "demasiado" os liberais. Era nela o ponto fraco.

- Vejam - dizia -, como eles se esforçam. - O seu olhar evitava Lenine, mas era sobretudo a ele que se dirigia. - No último número da Emancipação, Struve dá o exemplo de Jaurés; exige que os liberais russos não rompam com o socialismo, sem o que ficariam sob a ameaça de sofrer a miserável sorte do liberalismo alemão; quer que eles se inspirem no exemplo dos radicais-socialistas franceses.

Lenine estava em pé, próximo da mesa, com um falso "panamá" na cabeça, que tinha puxado para a testa (a sessão terminara e ele ,preparava-se para sair).

- É preciso bater neles ainda com mais força - disse, sorrindo alegremente e como que para arreliar Vera Ivanovna. - Pois! pois! - exclamou ela verdadeiramente desolada - dão um passo para nós, e nós devemos bater-lhes!

- Precisamente. Struve disse aos seus liberais: em vez de usarem contra o nosso socialismo os grosseiros processos alemães, devem empregar os meios mais subtis dos franceses; é preciso atrair, amimar, enganar, desviar à maneira dos radicais de esquerda, franceses que andam de namoro com o jauressismo.

Está visto que eu não relato literalmente esta memorável conversa. Mas o seu sentido e espírito gravaram-se-me na memória com a maior nitidez. Não tenho à mão, neste momento, material que me permita verificar aquilo que relato, mas não é difícil fazer esta verificação: basta folhear os números de A Emancipação da Primavera de 19O3 e encontrar-se-á um artigo de Struve consagrado à questão da atitude dos liberais face ao socialismo democrático em geral, bem como ao jauressismo em particular. lembro-me desse artigo de acordo com o que me disse Vera Ivanovna na cena que acabo de relatar. Se se somar à data inscrita no número de A Emancipação a que me refiro o lapso de tempo para que essa publicação chegasse a Genebra, se encontrasse nas mãos de Vera Ivanovna e fosse lida, quer dizer, três a quatro dias, poder-se-á estabelecer de uma forma bastante ,exacta a data da discussão que acabo de narrar, no café "Landolt". Foi, lembro-me, num dia primaveril (talvez no princípio do Verão), o sol brilhava alegremente e o risinho vindo da garganta de Lenine era jovial. Recordo-me do seu ar tranquilamente trocista, seguro de si mesmo e "sólido" - precisamente sólido, embora Vladimir Ilitch fosse então bastante magro e não como era no último período da sua vida. Vera Ivanovna, como sempre, exultava, voltando-se ora para um ora para outro. Mas ninguém, parece-me, se meteu na discussão, a qual, aliás, não durou muito tempo, apenas o tempo de se pegar nos chapéus.

Eu e Zassulitch regressámos juntos. Ela mostrava-se abatida, sentindo que o jogo de Struve estava de facto estragado. Eu não lhe podia dar nenhum consolo. Entretanto, nenhum de nós pressentia então em que medida, quão admiravelmente, tinham sido anulados os trunfos do liberalismo russo neste pequeno diálogo que teve lugar perto da porta do café "Landolt".

 

* * *

 

Reconheço todas as insuficiências daquilo que acabo de contar: a minha narrativa é mais pobre do que eu a imaginava quando lancei mãos a este trabalho. No entanto, diligentemente recolhi tudo o que a minha memória reteve, mesmo o menos significativo, pois actualmente já não resta ninguém que possa falar em pormenor deste período. Plekanov está morto. Zassulitch morreu. Martov morreu. E Lenine também. É duvidoso que algum deles tenha deixado as suas memórias. Talvez Vera Ivanovna? Mas não ouvimos falar disso. Da redacção do Iskra dessa época apenas restam Axelrod e Potressov. Tanto um como outro, excluídos motivos de outra ordem, não tomaram parte de modo significativo no trabalho da redacção e assistiram poucas vezes às nossas reuniões. L. G. Deutch poderia contar alguma coisa, mas também ele partiu para o estrangeiro próximo do fim da época atrás descrita, pouco tempo antes de mim próprio, e, além disso, não participou directamente nos trabalhos da redacção. Informações inestimáveis poderão ser dadas e sê-lo-ão, esperemos, por Nadejda Konstantinovna. Ela estava então no fulcro de todo o trabalho de organização; era ela que recebia os camaradas vindos de longe, era ela que fazia as recomendações e que conduzia ao caminho de ferro os que partiam; era ela que estabelecia as ligações, que fixava os encontros, que escrevia as cartas, que cifrava, que decifrava. No seu quarto sentia-se quase sempre o cheiro de papel aquecido à chama. E frequentemente lamentava-se, com a sua doce insistência, por não receber muitas cartas, ou por haver engano na cifra ou por terem sido escritas com tinta química de tal modo que uma linha se sobre- punha a outra, etc.. Claro que mais importante ainda é o facto de, neste trabalho de organização ao lado de Lenine, Nadejda Konstantinovna poder dia a dia observar tudo o que se passava com ele e ao seu redor. No entanto, estas linhas, assim o espero, não serão supérfluas, em parte porque Nadejda Konstantinovna assistia poucas vezes és reuniões da redacção, pelo menos àquelas onde estive presente. E, finalmente, sobretudo porque o observador do exterior regista mais facilmente aquilo que não se vê quando a presença é constante. Seja como for, contei o que fui capaz. Porém, agora, gostaria de formular algumas reflexões gerais, gostaria de dizer por que razão, em minha opinião, na época do antigo Iskra se produziu uma crise decisiva no sentimento político que Lenine devia ter em relação a si próprio, na maneira como, por assim dizer, a si mesmo se apreciava; por que razão esta crise foi inevitável e se tornou indispensável. Lenine chegou ao estrangeiro na maturidade, com a idade de trinta anos. Na Rússia, nos círculos estudantis, nos primeiros grupos da social-democracia, nas colónias de deportados, tinha ocupado o primeiro lugar. Ele não podia deixar de sentir a sua própria forma, até pela simples razão de que todos aqueles, com quem contactava e trabalhava a reconheciam. Partiu para o estrangeiro de posse de uma bagagem teórica muito importante, com uma séria provisão de experiência política e todo animado dessa tensão para o objectivo que constituía a sua verdadeira natureza espiritual. No estrangeiro iria primeiramente colaborar com o grupo de A Emancipação do Trabalho e, antes do mais, com Plekanov, o profundo e brilhante comentador de Marx, o mestre de várias gerações, teórico, pensador político, publicista, orador que criara uma nome europeu e ligações em toda a Europa. Ao lado de: Plekanov encontravam-se duas grandes autoridades: Zassulitch e Axelrod. Não só o passado heróico de Vera Ivanovna a colocava na vanguarda, como também ela era dotada de um espirito dos mais penetrantes, de uma vasta cultura, principalmente histórica, e de uma rara intuição psicológica. Por intermédio de Zassulitch tinha-se estabelecido no seu tempo a ligação do "Grupo" com o velho Engels. Ao contrário de Plekanov e de Zassulitch, que estavam mais estreitamente ligados ao socialismo latino, Axelrod representava no "Grupo" as ideias e a experiência da social-democracia alemã. Esta diferença das "esferas de influência" exprimia-se mesmo através dos locais de residência. Plekanov e Zassulitch habitavam sobretudo em Genebra, Axelrod em Zurique. Axelrod tinha-se dedicado és questões de táctica. Como é sabido, não deixou nenhum estudo de teoria ou história. Geralmente escrevia pouco. Mas aquilo que escrevia tratava quase sempre das questões de táctica do socialismo. Neste domínio Axelrod mostrava originalidade e penetração. Pelas múltiplas conversas que tive com ele (durante algum tempo eu e ele estivemos muito ligados, bem como com Zassulitch), imagino perfeitamente que muitas das coisas escritas por Plekanov sobre as questões de táctica foram o resultado de um trabalho colectivo e que neste trabalho a parte de Axelrod é muito mais importante do que possa parecer através dos documentos impressos. O próprio Axelrod dissera mais de uma vez a Plekanov, chefe indiscutível e querido do "Grupo" (até à ruptura em 19O3):

- Tu, Jorge, tu tens a tromba comprida, consegues ir buscar tudo quanto precisas.

Axelrod escreveu, como se sabe, o prefácio dum manuscrito enviado da Rússia por Lenine: "As Tarefas dos Social-Democratas na Rússia".

Em consequência disso, o "Grupo" adoptou de algum modo o jovem e dotado trabalhador russo, mas, ao mesmo tempo, isto provava que ele era considerado como um discípulo. Foi precisamente na qualidade de discípulo que Lenine chegou ao estrangeiro, com dois outros alunos.

Não assisti aos primeiros encontros dos alunos com os mestres, as conversas em que foi elaborada a linha principal do Iskra. Não é, porém, difícil de compreender, à luz das observações sobre o semestre que acabei de descrever e particularmente à luz do II Congresso do partido, que a gravidade do conflito, para além das questões de principio que só então começavam a levantar-se, tinha como causa a inexactidão do julgamento feito pelos antigos sobre a importância crescente e o significado do leninismo.

Durante o II Congresso e logo após, a indignação de Axelrod e dos outros membros da redacção contra Lenine fazia-se acompanhar de uma certa espantação:

- Como ousou ele ir tão longe? A surpresa aumentou ainda mais quando depois da ruptura de Plekanov a Lenine, que se deu logo a seguir ao congresso, Lenine continuou apesar de tudo, a conduzir a batalha.

O estado de espirito de Axelrod e dos outros poderia talvez exprimir-se nestes termos: "Que mosca lhe mordeu?"

"Ainda não há muito tempo que chegou ao estrangeiro, diziam os antigos; veio na qualidade de discípulo e foi assim que ele se apresentou (naquilo que contou sobre os primeiros meses do Iskra, Axelrod insistia especialmente neste ponto. Donde lhe vem agora, de repente, esta bela segurança? Que audácia é esta?" etc..

Em seguida, procuravam adivinhar-lhe os esquemas: ele tinha preparado o seu terreno na Rússia, não era de espantar que todos os meios de ligação estivessem nas mãos de Nadejda Konstantinovna; era 1á que muito discretamente se trabalhava a opinião dos camaradas russos contra o Grupo da Emancipação do Trabalho. Zassulitch não estava menos indignada que os outros, mas talvez ela compreendesse um pouco melhor. Não fora em vão que dissera a Lenine que quando ele mordia "não largava mais", e nisso se distinguia de Plekanov. E sabe-se lá que impressão não teriam produzido estas palavras no seu tempo? Não tinha Lenine repetido: "Sim, é verdade: quem conhecerá melhor Plekanov do que Zassulitch? Ele mordisca, puxa e abandona a Presa; ora não se trata aqui de mordiscar para depois largar... é preciso morder e segurar firme".

Em que medida e em que sentido podia ser verdade ter Lenine antecipadamente "trabalhado" a opinião dos camaradas na Rússia, é Nadejda Konstantinovna que no-lo contará melhor que ninguém. Mas num sentido mais amplo e sem invocar factos concretos, pode dizer-se que essa preparação dos espíritos teve lugar. Lenine pensava sempre no amanhã quando estabelecia e reforçava as bases de hoje. O seu pensamento criador nunca arrefecia e a sua vigilância não se deixava adormecer. E quando ele se convenceu de que o Grupo da Emancipação do Trabalho não era capaz de tomar nas próprias mãos a direcção imediata da vanguarda proletária para organizar a luta face à revolução que se aproximava, tirou dai todas as conclusões que se lhe impunham. Foi neste ponto que os antigos se enganaram, e não só os antigos: aquele que tinham diante de si já não era simplesmente o jovem trabalhador de espirito notável a quem Axelrod concedera a distinção dum prefácio amigavelmente protector; era um chefe, todo ele virado para o seu objectivo, e que, ao que me parece, se sentia em definitivo chefe quando no seu trabalho estava lado a lado com os antigos, com os mestres. Tinha verificado que era mais forte e mais indispensável do que eles. É verdade que também na Rússia, segundo Martov, Lenine era o primeiro entre os seus pares. No entanto, tratava-se então unicamente dos primeiros círculos social-democratas, de jovens organizações. Na Rússia, as reputações tinham ainda um caracter provinciano: quantos Lassalle russos havia então, quantos Bebel! O Grupo da Emancipação do Trabalho era outra coisa: Plekanov, Axelrod e Zassulitch encontravam-se ao mesmo nível de Kautski, Lafargue, Guesde e Bebel, o verdadeiro Bebel alemão. A medir forças com eles no trabalho é que Lenine ganha a sua dimensão europeia. Foi precisamente nos diferendos com Plekanov, quando a redacção se agrupava segundo dois eixos, foi então que Lenine reforçou a segurança em si próprio, endurecimento sem o qual mais tarde não teria sido Lenine.

Ora os diferendos com os antigos eram inevitáveis. Não porque se estivesse, à primeira vista, em presença de duas concepções diferentes do movimento revolucionário. Não, nesse período ainda não era assim. Mas o próprio lado pelo qual se abordavam os acontecimentos políticos, as tarefas de organização e, em geral, todos os trabalhos práticos, e pelo qual, consequentemente, se abordava a próxima revolução, esse era profundamente distinto para cada um dos campos. Nessa época os antigos já estavam na emigração há uma vintena de anos. Para eles o Iskra e o Zaria eram, acima de tudo, empresas jornalísticas. Porém, para Lenine eram um instrumento directo da acção revolucionária. Em Plekanov, como se viu alguns anos mais tarde, em 19O5-19O6, e ainda mais tragicamente na época da guerra imperialista, em Plekanov havia lá no fundo um céptico da revolução; ele olhava de alto esta tensão para o objective que caracterizava Lenine e, quanto a este assunto, tinha guardadas no saco várias piadas condescendentes e venenosas. Axelrod, como já se disse, andava mais próximo dos problemas da táctica, mas o seu pensamento obstinava-se a não sair do circulo das questões da preparação para a preparação. Muitas vezes Axelrod analisava com uma grande arte as tendências e as nuances no interior dos diversos grupos socialistas de intelectuais revolucionários. Era um homeopata da política pré-revolucionária. Os seus métodos e procedimentos tinham um caracter de laboratório, de farmácia. As quantidades sobre as quais trabalha são sempre infinitamente pequenas: os grupos que estuda, vê-se obrigado a pô-los numa balança de precisão devido aos seus pesos mais que minúsculos. Não era em vão que L. G. Deutch assemelhava Axelrod ao tipo de Spinoza; e não era em vão que Spinoza era lapidador de diamantes: este trabalho, como é sabido, faz-se á lupa. Ora Lenine considerava os acontecimentos e as relações sociais "em grosso", habituava o pensamento a dominar as massas sociais, e deste modo reflectia a imagem da revolução em marcha, o que, por imprevisto, surpreendia quer Plekanov, quer Axelrod.

O aproximar da revolução era sentido, ao que parece, mais directamente por Vera Ivanovna Zassulitch do que pelos outros antigos. O seu conhecimento vivo da história, livre de todo e qualquer pedantismo, saturado de intuição, ajudou-a muito neste caso. Porém, ela sentia a revolução como uma velha radical. Até ao fundo da sua alma, estava convencida de que nós possuíamos todos os elementos da revolução à excepção de um "verdadeiro" liberalismo, seguro de si mesmo, que deveria tomar a direcção do movimento; pensava que nós outros, marxistas, pela nossa critica prematura e pela nossa maneira de "encurralar" os liberais, apenas os podíamos assustar, e que, por isso mesmo, desempenhávamos, de facto, um papel contra-revolucionário. Na imprensa, diga-se a verdade, Vera Ivanovna não dizia nada. E nas converses pessoais nem sempre exprimia o seu pensamento até ao fim. Mas, apesar de tudo, era aquela a sua convicção mais intima. E dai resultava o antagonismo com Paul (Axelrod), que ela considerava um doutrinário. Efectivamente, dentro dos limites da homeopatia táctica, Axelrod defendia, sem falhar, a hegemonia revolucionária da social-democracia. Apenas se recusava a alterar este ponto de vista, a abandonar a linguagem dos grupos e dos pequenos círculos para tomar a das classes, num momento em que as classes se puseram em movimento. Era aí que se abria o abismo entre ele a Lenine.

Lenine não chegou ao estrangeiro como um marxista "em geral", para desempenhar uma tarefa de literatura revolucionária "em geral", não simplesmente para continuar o trabalho de vinte anos do Grupo da Emancipação do Trabalho. Não, ele chegou como um chefe virtual; não como chefe "em geral", mas como o chefe desta revolução que ia crescendo, que ele sentia, palpava. Chegou para preparar, no mais curto espaço de tempo possível, as ideias e o aparelho da organização desta revolução. E quando falo da sua tensão para o objectivo, a um tempo frenética e disciplinada, não o entendo no sentido de que ele, Lenine, se esforçasse por concorrer para o triunfo "final"; não, seria uma frase demasiado genérica e vazia - mas entendo-o neste sentido concreto, director imediato, de que ele se fixou um objectivo prático: acelerar a chegada da revolução e garantir-lhe a vitória. Quando Lenine, no seu trabalho no estrangeiro, se encontrou lado a lado com Plekanov, quando entre eles desapareceu aquilo a que os alemães chamam gravemente a "distância", não podia deixar de ser luminoso para o "discípulo" que, na questão para ele essencial do seu tempo, quase nada tinha a aprender do mestre e que, até, tal mestre contemporizador, por cepticismo, era capaz, com a sua autoridade, de entravar o trabalho salutar e de lhe roubar a ele, Lenine, colaboradores mais jovens. Dai o cuidado vigilante com que Lenine se ocupou da composição da redacção, dai a combinação dos "sete" e dos "três", dai o seu esforço para desligar Plekanov do Grupo da Emancipação do Trabalho, para criar uma direcção ternária, na qual Lenine "aguentaria" sempre Plekanov nas questões de teoria revolucionária e Martov nas questões política. As combinações pessoais podiam mudar; mas "a antecipação" restava imutável no essencial e, finalmente, tomou forma em carne, em osso e em sangue.

No II Congresso Lenine conquistou Plekanov, mas sem esperança de o conservar por muito tempo; simultaneamente perdeu Martov, o este para sempre. Plekanov tinha evidentemente sentido qualquer coisa no II Congresso; pelo menos, disse na altura a Axelrod, em resposta às queixas amargas deste e ao espanto que lhe causava a aliança de Plekanov com Lenine: "É desta massa que se fazem os Robespierres!" Não sei se esta frase notável foi alguma vez citada na imprensa e até se ela é conhecida do partido; porém, garanto-lhe a autenticidade., "É desta massa que se fazem os Robespierres!" E mesmo algo mais, Jorge Valentinovitch! - respondeu a história. Mas, evidentemente, esta revelação da história cedo empalideceu na consciência do próprio Plekanov. Rompeu com Lenine, voltou ao cepticismo e às piadas venenosas que, com o tempo, perderam aliás o veneno.

Mas na antecipação "divisionista" não se tratava apenas de Plekanov, nem apenas dos antigos. Com o segundo Congresso terminava de algum modo a frase primária do período preparatório. A circunstância de a organização do Iskra se ter cindido de uma maneira de facto inesperada no Congresso, de se ter dividido em duas partes quase iguais, esta circunstância prova por si mesma que, na fase primária, tinha ainda havido bastantes reticências. O partido de classe estava ainda justamente a furar a casca do radicalismo intelectual. A corrente que conduzia os intelectuais ao marxismo ainda não fora interrompida

O movimento estudantil, através da sua ala esquerda, estava em contacto com o Iskra. Nos meios da juventude intelectual, sobretudo no estrangeiro, os grupos que prestavam colaboração ao Iskra eram muito numerosos. Tudo isto estava ainda muito verde, pouco maduro e, na maioria dos casos, instável. As estudantes ligadas ao Iskra puseram então a um conferencista a seguinte questão: "Uma camarada do Iskra tem o direito de casar com um oficial de marinha?" No II Congresso apenas estiveram presentes três operários; e não foi fácil fazê-los lá ir. Por um lado, o Iskra reunia e educava um quadro de revolucionários profissionais e atraia, sob a sua bandeira, jovens operários animados de espirito heróico; por outro lado, grupos consideráveis de intelectuais mais não faziam que passar pelo Iskra, para logo se mudarem e transformarem em "emancipadores". O Iskra tinha êxito não só como órgão marxista do partido proletário em construção, mas também, simplesmente, como publicação de combate político, de extrema-esquerda, que não se atrapalhava nada para arranjar palavras violentas. Os elementos mais radicais da inteligência aceitavam, no seu primeiro ardor, lutar pela liberdade sob a bandeira do Iskra. E, entretanto, o espirito progressista-pedagógico dos intelectuais, que os mantinha desconfiados relativamente às forças do proletariado, espirito que no passado encontrara a sua expressão no "economismo", tinha acabado agora, e isto duma maneira bastante sincera, de tomar a cor do Iskra, sem alterar nada da sua própria essência. Ao fim e ao cabo, a brilhante vitória do Iskra era bem maior do que eram as suas conquistas reais. Não me permito neste momento julgar em que medida Lenine se apercebia disso clara e completamente antes do II Congresso, mas, em todo o caso, ele via mais claro e completamente do que ninguém. Nestas tendências bastante variadas que se agrupavam sob a bandeira do Iskra, encontrando o seu reflexo na própria redacção, Lenine era o único que representava o amanhãs, com todas as suas rudes tarefas, seus cruéis conflitos e inúmeras vitimas. Dai a sua vigilância e as suas dúvidas de combatente. Dai a sua maneira de pôr claramente as questões de organização, que encontrou a sua expressão simbólica na questão das adesões de membros ao partido. (Parágrafo 1º dos Estatutos).

É pois natural que no II Congresso, que se preparava para recolher os frutos das vitórias espirituais do Iskra, tivesse sido Lenine quem começou o trabalho de uma nova distribuição, de uma nova selecção, mais exigente, mais severa. Para se decidir por uma tal diligência, tendo contra si metade do congresso, sendo Plekanov apenas um meio-aliado e pouco seguro, sendo todos os outros membros da redacção adversários declarados ,e resolutos, para se decidir em tais condições por uma nova selecção era necessário ter já uma fé bem excepcional, não só na sua causa, mas também nas suas forças.

Esta fé devia-a Lenine ao juízo que fazia de si próprio, verificado pela experiência, que resultou da sua colaboração com os "mestres", e dos primeiros relâmpagos que anunciaram as próximas tempestades do conflito e o fracasso da cisão.

Foi precisa toda esta poderosa tensão de Lenine para o objectivo para empreender uma tal obra e levá-la até ao fim. Lenine, infatigavelmente, puxava a corda do arco até ao limite, até ao impossível, e, ao mesmo tempo, tacteava prudentemente com o dedo: não haveria cedência, ameaça de ruptura? - Impossível puxar até este ponto, o arco vai quebrar-se! - gritavam de vários lados. - Não quebrará, respondia o mestre arqueiro. O nosso arco é feito desta matéria proletária que não rompe; quanto à corda do partido, é preciso puxá-la mais e mais, pois temos de atirar para muito longe a pesada flecha.

5 de Março de 1924


Inclusão 06/02/2003
Última atualização 07/03/2016