História do Socialismo e das Lutas Sociais
Primeira Parte: As Lutas Sociais na Antiguidade

Max Beer


Capítulo IV - Teorias Comunistas em Atenas


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1. — As Reformas de Sólon

Quando em Esparta se implantou um Estado comunista, em Atenas o poder estava nas mãos da nobreza. Por meio de empréstimos e da usura, os nobres pouco a pouco despojaram os camponeses de seus bens. Os sacerdotes e os juízes eram recrutados entre os nobres. Esta situação determinou um profundo descontentamento nas camadas inferiores da sociedade. Depois de afogar em sangue grande número de conspirações e revoltas, os nobres resolveram encarregar o jurista Dracon da elaboração de um Código de leis, que se tornou célebre pela sua crueldade. É a partir desta época que uma lei draconiana passou a significar uma lei severa, brutal, iníqua, destinada à opressão do povo.

Naturalmente, por esses meios, não foi possível senão aumentar o mal estar geral. O povo exigia, cada vez com mais energia, o perdão das dívidas e a divisão das terras. Diante da ameaça de uma sublevação no ano 594 A. C., a nobreza encarregou Sólon, considerado amigo do povo, de “estabelecer a paz entre a nobreza e o povo, adotando para esse fim todas as medidas legais necessárias”.

Sólon realizou uma reforma econômica e política completa. Suprimiu todas as hipotecas que oneravam os agricultores e libertou os homens, que, por não terem podido pagar suas dívidas, haviam sido transformados em escravos. Sua Constituição política era uma timocracia ou Constituição censitária. Os cidadãos foram divididos em quatro categorias, de acordo com o rendimento das suas terras: 1.° os grandes proprietários; 2º os cavaleiros; 3.° os pequenos agricultores, e 4.° os jornaleiros. Só os cidadãos da primeira classe podiam participar das mais altas funções do Estado. Os da segunda e da terceira só eram admitidos em funções subalternas. Os membros da quarta classe obtiveram apenas o direito de assistir às Assembleias populares e de desempenhar as funções de jurados. Em compensação, ficavam isentos de impostos.

A reforma de Sólon não satisfez nem à nobreza nem ao povo. A primeira considerou-a excessivamente revolucionária. E o povo julgou-a demasiadamente moderada.

Após inúmeras perturbações políticas interiores e conflitos exteriores, Clístenes, no final do século VI, ou, mais precisamente, no ano 509, instaurou a igualdade política — a democracia. Mas esta “igualdade” estava também baseada na escravidão. Na realidade, Clístenes não estabeleceu uma verdadeira democracia, porque os cidadãos não eram todos iguais em face da lei.

Tempos depois, Atenas entra no período das guerras pérsicas (de 500 a 431), através das quais se transforma numa grande potência marítima e realiza enormes progressos econômicos. Os atenienses em aliança com os exércitos espartanos, vencem os persas e, de um pequeno Estado, transformam-se numa Federação de Estados, nos quais a industria, o comércio, a navegação, as ciências e as artes floresceram. Este período origina uma nova era: a era capitalista ou imperialista, caracterizada por sangrentas lutas, nas quais se decide a quem caberá a hegemonia no mundo helênico. É nele também que se processa rapidamente a decomposição do mundo antigo.

2. — Capitalismo e Decomposição

O novo Estado ático, com sua potência marítima, seu comércio exterior e suas grandes empresas industriais, em muito diferia do pequeno Estado ático para o qual Sólon havia legislado. A agricultura, que, no começo do século VI, se destinava apenas à satisfação das necessidades do povo, desenvolveu-se em bases comerciais. Como o azeite era um dos principais produtos de exportação, grandes superfícies de terra foram consagradas ao cultivo de oliveiras. O povo alimentava-se do trigo importado do exterior, que os navios traziam dos territórios do norte do mar Negro para os portos da Ática em particular para o Pireu. A Ática importava também desses territórios gado, produtos de pesca, madeira, cânhamo, aveia e sal. Os artesãos foram incorporados pelo capital comercial e caíram-lhe sob a dependência. À medida que as mercadorias deixavam de ser produtos locais e o comércio passava para as mãos dos grandes armadores, os pequenos lojistas e os pequenos comerciantes perderam pouco a pouco a primitiva independência. O capital, como sempre, apoderava-se da maior porção dos lucros e das melhores posições comerciais.

“Por este motivo, os próprios nobres se entregaram ao comércio, com entusiasmo cada vez maior, tornando-se armadores. Os grandes proprietários transformaram-se em capitalistas e, dai por diante, passaram a viver de rendas, entregando as empresas agrícolas aos cuidados de administradores que trabalhavam empregando mão de obra escrava”. (E. Mayer, História da Antiguidade).

Neste momento, os operários livres tiveram de lutar ao mesmo tempo contra a exploração do capital e contra a concorrência do trabalho dos servos. As classes médias ficaram cada vez mais sob a dependência do capital. Eis porque o povo se empenha em luta enérgica contra os ricos. A vida interna da Atica entrou em franca desagregação. Os homens de Estado contemplavam, alarmados e impotentes, a decadência do país. Esta crise social e moral agrava-se mais ainda com a guerra do Peloponeso, que estalou em 431, determinada, de um lado, pela concorrência marítima entre Corinto e Atenas e, de outro, pela luta entre Atenas e Esparta pela hegemonia na península. Esta guerra terminou em com a derrota fragorosa dos atenienses.

3. — Platão

Eis a situação que tinha Platão ante as vistas quando iniciou o trabalho da elaboração das bases de um “Estado justo”. Platão nasceu três anos depois do começo da guerra do Peloponeso, e pertencia a uma das mais importantes famílias de Atenas. Descendia de Sólon, pelo lado materno. Depois de estudar filosofia com Sócrates, foi ao Egito e à Itália, onde ampliou a sua cultura.

Desde jovem, Platão alimentava a esperança de consagrar-se por completo à política. Era, talvez, o seu temperamento que o impelia nesse sentido. Mas a época não era nada favorável à atividade de um estadista com as suas ideias e tendências... Por isso, resolveu dedicar-se à filosofia. Tornou-se, assim, um dos mais célebres mestres do mundo helênico e um dos maiores pensadores de todos os tempos.

Platão não era partidário da democracia. Aristocrata intelectual dos pés à cabeça, encarava com igual desprezo a multidão arrastada pelos demagogos, a plutocracia e todas as formas de tirania. Suas principais obras sociológicas foram O Estado ou A Republica e As Leis, A primeira destas obras contém mais projetos ideais do que a segunda, mas é menos concentrada e de composição menos perfeita do que As Leis. Ambas eram redigidas sob a forma de diálogos.

I — O Estado não encerra uma só utopia. Nele, Platão não descreve o Estado do futuro, nem sequer estabelece bases econômicas da sociedade socialista. Estuda apenas a justiça, os defeitos das Constituições existentes, e apresenta os principais meios de corrigi-los. Mas a justiça de Platão nada tem de comum com a dos profetas judeus. O grego é sempre um estadista com uma clara noção da justa medida e da moderação. Mostra-se sempre um patriota esclarecido. O seu objetivo não é fazer justiça aos pobres e aos deserdados, nem elevar os humildes e rebaixar os ricos. Nesta obra de Platão, não se encontra a menor parcela de indignação nem do espírito internacionalista dos profetas. O móvel que o anima é curar a pátria enferma, e transformá-la num Estado em que reinem paz e concórdia, num Estado onde cada cidadão cuide unicamente dos próprios interesses, sem se preocupar com as atividades alheias.

Platão admite que, inicialmente, existiu um Estado ideal. Cita, nesse sentido, Hesíodo e, de feição certamente um tanto mística, mostra como, através dos tempos, os homens se foram tornando piores. Em consequência do desenvolvimento do espirito de lucro, surgiram as discórdias. Deste modo, nasceu a guerra de todos contra todos, até que, por fim, os homens entram em acordo e resolvem dividir as terras e as casas, para implantar a propriedade privada e dividir a sociedade em amos e escravos.

Às vezes, Platão utiliza se também do método psicológico. É o que acontece, por exemplo, quando explica o aparecimento do Estado como uma consequência das próprias necessidades humanas. O homem, isolado, sente-se fraco. Como necessita de auxílio, junta-se a seu semelhante e funda um Estado. Os cidadãos dedicam-se às mais variadas atividades: uns são agricultores, outros artesãos, outros ainda permutam produtos. E assim nascem o comércio e o dinheiro. Mas os homens, logo depois, não mais se contentam com a satisfação das próprias necessidades materiais. Tomam-se de ambição e desejam viver luxuosamente. É então que surge a riqueza, a prodigalidade, engendrando a cobiça e as guerras de conquista. Tal situação explica o aparecimento de um exército permanente. O Estado se complica. O contraste entre a riqueza e a pobreza acentua-se, e a paz interior aos poucos se extingue. A República, a partir deste momento, divide-se em dois campos irredutivelmente hostis. Em todos os Estados, mesmo nos menores, é isto que acontece.

No Estado, diferenciam-se duas parles distintas, em luta perene. Uma, é o Estado dos pobres; a outra, o Estado dos ricos.

A República enfraquece quando a miséria surge ao lado da riqueza, porque nesta ocasião os ricos não cuidam mais das suas empresas e os pobres trabalham mal. A riqueza começa a ser rodeada de considerações. Os cidadãos repudiam as virtudes e atiram-se como loucos em busca da riqueza. O rico pratica toda a sorte de excessos e desregramentos. O pobre torna-se mais servil e mais disposto à rebeldia. Tanto um como outro esquecem-se dos interesses do Estado, que daí por diante marcha para a ruína a passos de gigante. Chegam as coisas a tal ponto, que uma parte da população deseja com todas as forças o aniquilamento e o sofrimento dos demais. Estes males existem, tanto na timocracia (Constituição censitária), como na oligarquia (domínio de um reduzido número de indivíduos sobre o povo), e tanto na democracia como na tirania. Isto acontece porque todos esses regimes estão baseados na propriedade privada. Entretanto, em todos eles, ainda há vestígios do Estado ideal, vestígios representados pelos bons governos e pelo hábito de comer em comum.

Quando a ambição cresce, desmesuradamente, quando a riqueza se torna a única medida dos direitos dos cidadãos, é substituída pela timocracia. Numa República oligárquica, o amor e os bons sentimentos são desprezados. O espírito de lucro, a ambição das riquezas, relegam a virtude para um plano inferior. A insaciabilidade dos ricos determina a pobreza das massas. Afinal, a luta entre os partidos termina com a vitoria dos pobres e a implantação da democracia, forma constitucional na qual ambas as categorias de cidadãos, pobres e ricos, se mostram absolutamente desinteressadas pela sorte e pelos interesses do Estado. A democracia, por sua vez, cede lugar à tirania, isto é, ao domínio de indivíduos que enganam as massas para melhor oprimi-las.

Como renovar o Estado? Sobre que base deve apoiar-se uma política verdadeiramente inspirada na justiça?

Platão responde a essa pergunta da forma seguinte:

“Enquanto os homens sensatos não estiverem à frente do governo, ou enquanto os reis e os príncipes não resolverem governar com inteligencia e brandura, os governos não poderão suprimir os males que atualmente afligem todos os Estados e todo o gênero humano”.

Os reis devem ser filósofos para governarem os povos. Devem ser verdadeiros guardiães do Estado, procurando o auxílio dos funcionários e dos guerreiros para poderem realizar a sua missão. E as camadas dirigentes, em virtude de seu nível intelectual e moral superior, devem ficar situadas acima do povo.

A implantação do comunismo integral é também desejável.

“No Estado ideal — declara Platão — as mulheres e os homens devem ser nivelados em todos os domínios, incluso no da educação e no de toda a atividade em geral, tanto em época de guerra como em período de paz”.

Este regime terminará para sempre com a existência de classes antagônicas.

“Os homens viverão unidos pelos mesmos sentimentos de alegria ou de dor. Atualmente, vivem desunidos porque esses sentimentos foram individualizados”.

Mas a educação é o principal. Através da educação obrigatória surgirá a seleção. Os futuros chefes de Estado, os funcionários, os guerreiros, etc., receberão educação esmerada. Todos aqueles, que se mostrarem aptos para desempenhar as funções de dirigentes, devem continuar os estudos até a idade de cinquenta anos. Poderão, assim, aperfeiçoar-se em todos os campos da ciência. Mas seus conhecimentos devem ser particularmente profundos no domínio da política. Só depois dos cinquenta anos os homens têm um horizonte intelectual suficientemente amplo para apreender a Ideia do Bem.

Para Platão, a Ideia não é apenas uma simples noção lógica, mas uma entidade real suprema, que só pode ser alcançada pela inteligência, que a tomará como modelo. Todos os reis filósofos devem esforçar-se para organizar o Estado de acordo com esta Ideia do Bem.

“Não será perfeito — diz ele — enquanto não for dirigido por um homem que conheça a fundo a ciência do Bem”.

Os indivíduos das classes inferiores não estão em condições de conhecer essa ciência. A multidão vê o Bem apenas nos prazeres e não nas ocupações do espírito.

A maior parte dos homens está sujeita a trabalhos estafantes e grosseiros, nos quais não só se aniquila fisicamente, como se lhe rebaixa o nível moral. Por isso, na opinião de Platão, só no seio das famílias importantes, onde os indivíduos possuem uma vasta cultura política ao lado de grandes conhecimentos científicos e estéticos, existem as condições que permitem a formação de homens destinados aos postos de comando do Estado.

II — Na sua obra As Leis, Platão não se move apenas no domínio do ideal, como em O Estado. Foi aquela escrita antes, e ali Platão critica com tanta violência como em o Estado as relações de propriedades vigentes. Mas as proposições comunistas positivas são ali menos absolutas. Pode-se dizer que a primeira obra é revolucionária enquanto a segunda é apenas reformista. Platão em As Leis afirma que

“o melhor Estado, a melhor Constituição e as melhores leis aparecerão quando a sociedade tiver por lema: “Tudo é comum entre amigos!”

Não é, portanto, necessário procurar em parte alguma um modelo de Constituição ideal. Basta que os homens sejam fiéis a esse lema ou que, pelo menos, se esforcem para o atingirem.

E será isto possível? De que modo? Em primeiro lugar, repartindo todas as terras e todas as casas. Inicialmente, não será possível realizar o cultivo do solo em comum. A geração atual ainda não está suficientemente educada para isso. Mas a divisão deve ser feita de tal forma que cada um considere a porção que lhe coube como parte integrante da propriedade coletiva.

"Na divisão do solo por-se-á a maior equidade possível. É preciso impedir que o número de porções primitivas diminua, afim de evitar o aparecimento de uma classe de grandes proprietários ao lado de uma outra classe de cidadãos sem o menor quinhão de terras”.

Ninguém poderá ter ouro, prata ou dinheiro, em quantidade excedente às necessidades quotidianas.

A legislação de Platão e os seus projetos de reformas foram elaborados para toda a Grécia.

Mas, no que diz respeito aos chefes, Platão só cuida das famílias nobres da Grécia. Do seu ponto de vista, é licito, realmente, falar numa nação helênica. Esta nação será tão unida e solidaria quanto possível, no domínio das relações de propriedade. Mas, no que concerne às capacidades intelectuais e morais, deve, pelo contrario, basear-se num sistema hierárquico. A nobreza intelectual dirigirá o Estado. Os agricultores e os artesãos cuidarão exclusivamente das suas atividades profissionais, com o fim de desenvolverem ao máximo todas as aptidões, nos limites da respectiva esfera profissional.

Os trabalhos manuais penosos ou degradantes não serão realizados pelos gregos, mas pelos estrangeiros ou pelos escravos. Os gregos devem dedicar-se unicamente às suas obrigações de cidadãos ou desempenhar as profissões mais nobres.

Platão em As Leis pensa em suprimir os principais antagonismos econômicos. O Estado trata apenas da questão da educação e do gênero de vida dos reis filósofos, dos funcionários e dos guerreiros. Grande número de pessoas, após uma leitura superficial deste livro, acreditaram que o seu autor preconizava o comunismo apenas para as camadas superiores da sociedade, sem modificar a situação das demais. Isto não é verdade. O que já vimos demonstra que Platão tencionava implantar o comunismo em beneficio de todos os gregos. De outro modo, a crítica que faz da parte política e moral da situação da sua pátria seria completamente destituída de qualquer sentido.

Platão é um Licurgo mais intelectualizado. O comunismo de Licurgo é de ordem puramente local. O comunismo de Platão abrange um domínio muito mais amplo, porque se estende a uma nação inteira. Para Licurgo, todos os Estados da Grécia, com exceção de Esparta, deviam ser considerados da mesma forma que qualquer país da Ásia ou da África, isto é, como países estrangeiros. Platão, pelo contrário, considera todos os Estados da Hélade como partes integrantes da nação grega. Tanto assim que julga a guerra do Peloponeso uma guerra civil. Mas tanto Licurgo, como Platão, não acreditavam que os povos pudessem viver eternamente sem guerras. Para Platão, todos os povos não helênicos eram bárbaros, povos inferiores, que se deviam orgulhar pelo fato de estarem sob o domínio da Grécia.

Na Grécia, os estóicos foram os primeiros que pregaram a igualdade e a fraternidade dos povos.

4. — Aristóteles

Ao contrario de Platão, Aristóteles é adversário declarado do comunismo. Na sua Política, vê-se que, além de pensador notável, de grande inteligencia, é ainda um conhecedor profundo dos problemas políticos da época. Mas, na Política, Aristóteles aparece também como um homem hostil a toda transformação violenta, a toda revolução e até à luta entre partidos.

Para Aristóteles, a função principal do “estadista” é equilibrar as forças em choque, no seio do Estado. Na sociedade não se devem contar cidadãos demasiadamente ricos e poderosos, nem cidadãos excessivamente pobres e fracos, porque a menor desproporção entre a riqueza e a miséria ou entre o poder e a debilidade cria sérios riscos para o Estado. Quando esta desproporção se acentua, os que se vêm colocados em situação inferior começam a exigir reformas constitucionais. Os demagogos aproveitam-se, então, do descontentamento, e procuram conduzir as massas para o caminho da insurreição. Os oligarcas querem aumentar as desigualdades sociais, e só se apossam do poder para modificar a Constituição social no sentido da ditadura. Os legisladores precisam, portanto, estar alertas para impedir que as riquezas e o poder se acumulem num reduzido número de mãos.

Para Aristóteles, a propriedade privada, a escravatura e a opressão do Estado, são fatos naturais, que nunca poderão desaparecer. Combate com a maior energia aqueles que afirmam que a escravidão e a opressão, assim como a propriedade privada em que se baseiam, são atentados contra as leis da natureza. Eis porque Aristóteles é tão citado, atualmente, por todos os que procuram defender o regime capitalista. Os defensores da sociedade burguesa têm Aristóteles na conta de uma autoridade incontestável, e argumentam contra o comunismo, baseados nas suas ideias tão adequadas à defesa da escravidão e da opressão capitalista atuais.

É fácil, também, compreender por que motivo Aristóteles combate Platão. Na sua Política, Aristóteles critica as ideias comunistas do mestre e procura refutá-las. com bastante habilidade, embora utilizando-se de um método que poderíamos chamar escolástico, porque combate os fatos com frases ocas, sofismas e jogos de palavras.

Mas é interessante notar que Aristóteles, naquela época, já formulava contra o comunismo as mesmas objeções que, séculos depois, nas mais diversas épocas, iriam sair da boca de todos os adversários do comunismo.

Aristóteles declara que o comunismo é contrário à natureza humana. O comunismo tornaria impossível a criação de riquezas, porque

“os homens nunca serão capazes de trabalhar senão para defender seus próprios interesses. Toda atividade criadora nasce do desejo que o homem tem de conquistar para si uma situação melhor, adquirindo propriedades. Sem este estímulo, que o comunismo destrói, a atividade humana desaparecerá. Não é, também, provável que o comunismo determine um aumento da população. O trabalho coletivo não faz surgir a harmonia entre os homens, mas a discórdia. A propriedade privada não é a verdadeira causa de todos os males que nos afligem. Essa causa é a própria natureza humana, essencialmente ruim”.

“Vemos, com efeito, que as disputas surgem justamente quando os homens possuem tudo em comum. Entre os demais, elas são menos frequentes. E os primeiros são muito menos numerosos que os segundos...”

Aristóteles acrescenta:

“As instituições atuais (ou seja, o regime social baseado na propriedade privada) podem ser modificadas, melhoradas, de modo a englobarem as vantagens de ambos os sistemas. A propriedade, em certo sentido, deveria ser comum. Mas, de um modo geral, deve ser privada, porque, se todos os indivíduos se ocupassem exclusivamente de suas questões privadas, os homens não se poderiam queixar uns dos outros e realizariam grandes progressos. Não obstante, para os bons, maxime no que se refere ao consumo, “tudo deve ser comum entre amigos”.

“Ainda hoje existem remanescentes desse princípio, que demonstram como pode ser perfeitamente aplicado. Num Estado bem organizado, esta comunidade de consumo existe e pode ser ampliada, porque, embora cada indivíduo possua propriedade privada, há certas coisas que sempre põe à disposição dos amigos. Os lacedemônios, por exemplo, serviam-se dos escravos, dos cavalos e dos cães de seus vizinhos como se fossem de sua propriedade, e, quando se encontravam nos campos de outras pessoas, colhiam das terras lavradas os alimentos que necessitavam. Convém que a propriedade seja privada. Mas o consumo deve ser coletivo. Cabe aos legisladores a tarefa de desenvolver, em cada cidadão, disposições de espírito favoráveis a um tal estado de coisas."

Mas esta concessão que Aristóteles faz ao comunismo não tem nenhum significado profundo. Não renuncia aos seus princípios; procura com isto apenas remediar os excessos do individualismo. Não se pode, também, invocar nesse sentido o exemplo de Esparta, a que Aristóteles se refere, porque, em Esparta, Licurgo até certo ponto havia habituado os cidadãos a condições de vida comunistas. E já vimos que Aristóteles era adversário dessas condições de vida.

Depois de atacar Platão, Aristóteles critica as proposições de Faleas de Calcida.

“Alguns indivíduos acham que, de todas as questões, a mais importante é a regulamentação da propriedade, porque esta questão aparece como causa de todas as revoluções. É o que acontece com Calcida, que incorre nesse erro, quando afirma que todos os cidadãos de um Estado devem ter iguais direitos, em face da propriedade”.

Contra isto, Aristóteles declara:

“Não se deve igualar os possuidores. O que é necessário é igualar os desejos dos homens. E isso será impossível, enquanto os homens não receberem uma educação apropriada, por conta do Estado. Faleas provavelmente dirá que ele também deseja que os homens recebam uma educação deste gênero e que, portanto, os homens devem ter os mesmos direitos, não só no que se refere à propriedade, como no que diz respeito à educação... Faleas afirma que a igualdade de bens teria como resultado o desaparecimento de todos os crimes, porque protegeria os homens da fome e do frio, eliminando, assim, as causas da sua transformação em bandidos. Mas nem todos os crimes são determinados pela miséria. Os homens querem, sem esforço, satisfazer às suas paixões. Nesse caso, como será possível remediar esses males?

“O remédio contra a miséria está na posse de modestas propriedades. A educação dos cidadãos, tornando-os mais moderados, fará desaparecer as paixões.

“A sede de prazeres e os desregramentos deixarão de existir, quando todos os homens se habituarem às meditações filosóficas. É evidente que, na imensa maioria dos casos, os crimes são produzidos pelos excesso, e não pela miséria.

“Não é a miséria que torna os homens tirânicos cruéis. O homem que tira a vida a um tirano não é tratado da mesma maneira que o assassino de um ladrão. Em vez de pensar numa divisão igualitária das riquezas, os reformadores deveriam primeiro cuidar da educação dos homens, para ensinar-lhes a dominar suas paixões: Os ricos devem renunciar à posse de novas riquezas e os pobres não formular mais exigências descabidas. É necessário conservar os homens na situação em que se encontram atualmente, para que seus sofrimentos não aumentem ainda mais. Faleas propõe igualdade incompleta, porque só pretende igualar homens em face da propriedade da terra. Deste modo, eles não serão igualmente ricos em escravos, gado, dinheiro, numa palavra, em tudo que se denomina bens moveis. Precisamos, portanto, escolher: ou a igualdade deve ser extensiva a todos os bens, ou deve ser limitada à propriedade em geral, ou ser, por último, completamente livre.

“Segundo parece, Faleas elaborou sua reforma para ser aplicada apenas a um Estado pequeno. Tanto assim que ele deseja transformar os artesãos em escravos públicos, situados à margem da sociedade”.

Pelo que vimos acima, conclui-se que a reforma proposta por Faleas consistia no seguinte: 1.° na igualdade de todos os indivíduos em face da propriedade da terra; 2.° numa educação coletiva, por conta do Estado; 3.° na nacionalização do trabalho dos artesãos.

Aristóteles diz que Faleas é o primeiro pensador que reclama uma divisão igual de todos os bens, pois. segundo ele, Faleas viveu numa época anterior a Platão.

5. — Comédias de Tendências Sociais

Os jônios tornaram-se célebres pela ironia, o costume de gracejar, a sátira. É o que se observa em Aristófanes. Nele, essas qualidades tão admiradas pelos jônios, estão altamente desenvolvidas.

Poeta de grande capacidade criadora, Aristófanes viveu durante toda a guerra do Peloponeso até seu trágico desfecho. Assistiu, assim, ao desenvolvimento das ideias comunistas, tanto durante a guerra como no período seguinte, depois da derrota.

A derrota catastrófica de Atenas debilitou profundamente a autoridade sobre a qual se apoiava todo o Estado. O povo desejava coisas novas. Aspirava ardentemente uma transformação comunista da sociedade. As sobrevivências da Idade de Ouro e as lutas sociais que desde o século VIII agitavam a sociedade foram as causas deste estado de espírito. Nenhum homem do povo descreveu a situação das camadas mais pobres da população de Atenas. A História não conhece testemunhos diretos da situação da época, de origem verdadeiramente popular. Há, entretanto, muitos documentos indiretos, principalmente sob a forma de comédias sociais, como as escritas por Ferecrates, Tecleides, Eupolis e, principalmente, por Aristófanes.

A obra dos três primeiros escritores chegou até aos nossos dias muito fragmentada. Só algumas das suas partes nos são conhecidas. Em compensação, as melhores comédias de Aristófanes, que sem dúvida alguma são incomparavelmente superiores às demais obras de seus contemporâneos, foram conservadas por inteiro, até aos dias presentes. Não são apenas comédias. Nelas, Aristófanes deseja principalmente ridicularizar as ideias comunistas, então em franco progresso. Por isso mesmo as deturpa. Não nos fornece, pois, a imagem das doutrinas em curso no seu tempo, mas apenas nas caricaturas dessas doutrinas. Ao mesmo tempo, essas comédias criticam os excessos dos plutocratas. São, por isso, documentos de inegável valor histórico.

Todos os poetas e comediógrafos desse período ridicularizaram as tendências revolucionárias. É preciso frisar que o comunismo dessa época considerava o trabalho uma maldição. Não visava, portanto, a instauração de um Estado baseado no trabalho, porque naquela época trabalho significava escravidão.

As forças mecânicas não eram ainda aplicadas à produção. As formas de trabalho e instrumentos, então existentes, pertenciam aos tipos mais primitivos e grosseiros. Os trabalhos pesados estavam a cargo dos escravos, sendo, por isso, considerados atividades indignas de homens livres.

Todos julgavam a política e a guerra como as únicas ocupações compatíveis com a situação social de cidadãos livres. Isto mostra claramente que não existia, na época, uma democracia, e que os cidadãos formavam uma classe especial, de certo modo privilegiada. Foi o que vimos também quando estudamos o Estado concebido por Platão. Os cidadãos desejavam uma organização social capaz de libertá-los dos trabalhos físicos, trabalhos que ficariam a cargo unicamente dos escravos.

Considerava-se o comunismo como um regime no qual os homens tudo teriam em abundancia, sem o menor esforço. A existência da escravatura e da servidão, isto é, a existência do trabalho ainda não liberto, determinando o desprezo absoluto de todas as formas de trabalho produtivo e a consequente paralisação do progresso, no domínio da técnica e da produção, é a causa evidente da decadência moral e política do mundo antigo.

As comédias sociais, que iremos estudar, ridicularizam os sonhos utópicos dos que desejavam viver com todo o conforto, sem trabalhar, sonhos que se alastravam por toda a população, aumentando a inércia geral que surgira na sociedade grega, depois da derrota de Atenas, no ano 404, A. C.

Comecemos por Ferecrates, Tecleides e Eupolis. Estes poetas apareceram antes de Aristófanes. São, sob muitos pontos de vista, inferiores a ele, como aliás já dissemos. A finalidade principal das suas obras era ridicularizar não só coisas novas, como todas as descrições exageradas da Idade de Ouro.

Dentre as comédias de Ferecrates, a mais característica é a intitulada Os Persas. Na opinião dos gregos, a Pérsia era um país maravilhoso, com montanhas de ouro que permitiam aos homens uma vida ideal, paradisíaca, livre dos trabalhos terrenos. Apareceram em cena duas personagens: a Riqueza e a Pobreza. A Pobreza diz que os homens serão felizes quando se dedicarem ao trabalho e se esforçarem para dominar as paixões. A Riqueza responde-lhe:

“Para que precisaremos aprender a maneira de atrelar os animais aos carros? Para que precisaremos saber lavrar os campos e semear?... Não ouviste dizer, por ventura, que nas ruas correm rios de caldo quente com toucinho e pedaços de carne? Basta que cada um encha o seu prato... E das árvores, em lugar de frutos, pendem cachos de salsichas e aves gordas, recheadas, prontas para serem comidas...”

Eupolis, na Idade de Ouro, descreve a sociedade depois do restabelecimento dos antigos costumes. O tema é semelhante ao da comédia de Ferecrates. A pobreza é apresentada por uma das personagens como um estímulo e um meio indispensáveis à conquista da felicidade. Uma outra descreve as vantagens da vida confortável e ociosa:

“Ouve-me. A água do mar virá por si só até a banheira, por meio de canalizações. Quando a banheira estiver cheia, direi apenas: “Chega!”. Em seguida, a esponja, as sandálias, a toalha, etc., farão por si mesmas tudo o que eu quiser”.

Na sua comédia intitulada Os Anfitriões, Tecleides ridiculariza também os sonhos utópicos dos cidadãos pobres e dos escravos. Anfitrião, rei lendário de Atenas, volta à terra e torna todos os cidadãos felizes:

“A paz será eterna, como o ar e a água. Da Terra desaparecerão para sempre os temores e as penas. Os homens serão felizes porque terão tudo em abundância. Das fontes jorrarão caudais de vinhos. Em torno da cabeça dos homens, os pãezinhos e os pasteis lutarão entre si para serem comidos em primeiro lugar Os Peixes sairão das águas e acompanharão os homens, indo sozinhos para as frigideiras e saltando por si sós para os pratos. Através das cidades, correrão rios de sopa, arrastando pernas de porco assadas. Os regatos de saborosos caldos inundarão as ruas... As tortas de toicinho precipitar-se-ão em catadupas, atropelando-se, injuriando-se, batendo umas nas outras, para chegar primeiro... As crianças terão, como brinquedos, almôndegas de carne e frangos assados. E os homens tornar-se-ão fortes como gigantes saídos do ventre da terra”.

6 — Aristófanes.

Aristófanes escreve com muito mais talento que seus contemporâneos. Traça um quadro pormenorizado de Atenas, com as lutas políticas, os esforços científicos e a sede de prazer dos plutocratas. Numa palavra: descreve minuciosamente a vida agitada da sociedade da sua época.

O gênio jônico em toda a sua grandeza, assim como toda a debilidade da civilização antiga, aparecem aos nossos olhos, com imenso realismo, nas obras desse aristocrata da inteligência, que não simpatizava nem com a atividade econômico-política da plutocracia, nem com as ideias igualitárias das camadas mais pobres da população. Aristófanes parece possuir as mesmas tendências que Aristóteles. Como ele, opõe-se às ideias em curso na sua época. Assim, torna-se um mestre da sátira, do ridículo e da ironia fina, que lhe imprimem às obras um cunho característico.

De todas as comédias em que Aristófanes ridiculariza os políticos da plutocracia, os sofistas, os que vivem preocupados com a prática de boas ações, os sonhadores místicos, os delatores, os comunistas, etc., as que mais nos interessam são A Assembleia de Mulheres e Plutão(2).

A primeira desenvolve o seguinte tema: a política dos homens levou Atenas à falência, à capitulação completa. Por fim, esta política determina a destruição da República ateniense. As mulheres, depois de suportarem longos sofrimentos durante a guerra e, principalmente, em virtude das funestas consequências da catástrofe, resolvem substituir os homens e apoderam-se do governo.

Certa noite, saem furtivamente de casa, sem serem vistas pelos maridos. Vestem-se de homens e convocam uma Assembleia, onde as oradoras propõem uma reforma radical do Estado.

“As mulheres — dizem elas — são mais econômicas que os homens. Podem, portanto, melhor que eles, conduzir o Estado pelo bom caminho”.

Esta revolução feminina é encabeçada por Praxágora, mulher de Blepino. Aristófanes reproduz o seguinte diálogo deste casal:

Praxágora: Peço que me oiças com atenção. Não me interrompas até que eu termine. Vê o meu plano. Oriento-me pelo seguinte principio: todos devem ser iguais e usufruir da mesma forma os bens da terra. É preciso que não aconteça o que vemos hoje. É preciso evitar que uns sejam ricos e outros pobres; que uns tenham grandes extensões de terras e que outros não possuam sequer um canto para cavar as próprias sepulturas; que uns possuam cem servos e outros não tenham um só. Tudo isto deve ser modificado. Nós queremos igualar as condições de vida dos homens.

Blepino: Como esperas realizar este plano?

Praxágora: Em primeiro lugar, transformaremos o dinheiro, a terra e as riquezas cm geral em propriedade coletiva de toda a sociedade, isto é, num fundo público pertencente a todos os homens. Depois da formação deste fundo público, como somos boas donas de casa, poderemos administrar os bens sociais de maneira a vestir, alimentar, etc., a todos os homens.

Blepino: Sim. Acho justo o que dizes sobre a terra. Isso é evidentemente necessário. Ninguém pode negá-lo. Mas, como farás para socializar o ouro e a prata?

Praxágora: Os bens de todos os cidadãos serão recolhidos ao Tesouro.

Blepino: Mas, se os ricos os esconderem? Não poderemos obrigá-los a entregar os bens, mesmo que jurem, pois sabemos com que facilidade eles fazem falsos juramentos e enganam o Estado. Não foi justamente graças à fraude e ao engano que conseguiram tão grandes fortunas?

Praxágora: “Tens razão. Mas suas fortunas perderão todo o valor, porque a miséria desaparecerá. Os cidadãos poderão ter tudo que necessitarem, mesmo sem dinheiro: nozes, castanhas, pão, roupa, vinho, flores, peixes, etc. Cada qual poderá retirar tudo o que quiser dos armazéns públicos. Portanto, ninguém terá necessidade de acumular haveres. Por que motivo os ricos pensarão em guardar as riquezas que adquiriram por meios desonestos, se essas riquezas não terão mais valor?

Blepino: “Não acredito que os indivíduos mais ricos, que são justamente os mais desonestos, sejam capazes de renunciar facilmente ao roubo e à patifaria.

Praxágora: Sem dúvida. Se o antigo regime continuasse a existir, era isto que inevitavelmente iria acontecer. Mas, com o novo regime, por que motivo os homens pensarão em acumular riquezas, se todas as coisas serão postas à disposição de todos?

Blepino: Suponhamos que um homem queira conquistar uma mulher ou ter relações com uma prostituta. Deverá oferecer-lhes algum presente?

Praxágora: “De modo nenhum! Porque todos os homens e todas as mulheres serão de todos e poderão livremente fazer o que quiserem. Não haverá casamentos nem restrições de qualquer natureza.

Blepino: E se vários homens desejarem a mesma mulher?

"Praxágora: Uma mulher bonita poderá ter vários pretendentes. Mas, antes de conquistarem uma mulher bonita, os homens terão de deitar-se com uma feia».

Blepino: Bem! Pelo que vejo, com este sistema, as mulheres não correrão mais o risco de ficar virgens a vida inteira. Mas, que farão os homens? Tudo leva à crer que as mulheres só darão atenções aos homens fisicamente favorecidos. E os feios, como poderão conseguir mulheres?

Praxágora: A vida amorosa das mulheres será regulamentada pelo Estado. As jovens e formosas serão obrigadas a deitar-se com os homens pequenos e feios. Só depois de favorecerem os homens que a natureza fez infelizes poderão ter relações com seus namorados. A prostituição deixará de existir. As prostitutas serão destinadas aos escravos, afim de que as melhores forças viris dos homens possam ser aproveitadas pelos cidadãos...

Blepino: E como um homem poderá saber se é pai de uma criança?

Praxágora: Não haverá necessidade disso, porque todas as crianças ficarão sob os cuidados da coletividade.

Blepino: E quem fará os trabalhos indispensáveis à vida da sociedade?

Praxágora: Estes trabalhos caberão aos escravos”.

O diálogo prolonga-se ainda por mais tempo, sempre neste mesmo tom. Praxágora descreve o Estado futuro. Os cidadãos terão direito a tudo. Todos serão livres e independentes. Uma única empresa coletiva substituirá as diferentes empresas particulares. As desigualdades de classes serão suprimidas para sempre. Nos locais onde atualmente funcionam os tribunais, ou são realizadas as eleições, o Estado criará restaurantes. Neles, cada cidadão encontrará alimentação abundante. As refeições em comum serão verdadeiras festas. Depois de comer, os homens deixarão a mesa bem humorados, com coroas de flores. E, nas ruas, as mulheres e as jovens chamá-los-ão às suas casas para oferecer-lhes os seus encantos.

Numa linguagem viva, colorida, engenhosa, através desses diálogos, Aristófanes traça o quadro de um verdadeiro paraíso terrestre. Mas, evidentemente, procura cobrir de ridículo a nova organização. Apresenta, logo depois, conflitos tragicômicos, que surgem no domínio da regulamentação estatal da vida amorosa dos cidadãos. Com esses argumentos é que procura demonstrar a impossibilidade da existência do Estado do futuro. Os jovens esgotam-se com o tributo sexual que são obrigados a pagar às mulheres idosas, ou às solteironas decadentes, e não conseguem ter relações sexuais com as mulheres que amam. Os cidadãos chegam às festas públicas atraídos pelas encantadoras descrições que delas se fazem. Aborrecem-se, contudo, e, quando voltam para as suas casas, procuram levar consigo tudo o que encontram, como compensação do tempo perdido e dos aborrecimentos que tiveram.

Na Assembleia das Mulheres, Aristófanes ridiculariza os sonhadores comunistas. Na sua melhor comédia, Plutão, procura sobretudo fustigar a ambição desenfreada dos ricos e sua perseguição imoral das riquezas. O problema que o autor faz entrar nas discussões é o problema de sempre: “Por que motivo os ricos são ruins e os pobres virtuosos”?

Os diálogos encerram um conteúdo riquíssimo e desenvolvem o tema seguinte:

Plutão, o deus da riqueza, está cego. Não sabe mais o que faz. Cremilo, um homem pobre, mas virtuoso, pergunta-lhe porque distribui favores de forma tão injusta. E Plutão responde:

“Não sou culpado. Não vejo o que faço. Zeus é o único culpado, porque me tirou a vista. Não quer que eu me torne querido pelos homens. Na minha infância, eu sempre disse que só visitaria os bons e os virtuosos. Por isso, Zeus me cegou. Agora, não sei mais a quem visito, e procuro tanto os bons como os maus.

Cremilo: E se recuperasses a vista, poderias evitar esses males?

Plutão: Sem dúvida! Só visitaria os bons. todos se dizem bons. E, depois que os torno ricos, só praticam más ações.

Cremilo: Realmente, é isto o que acontece. O homem deve ter tudo em abundância: pão, pasteis, figos, valores, literatura. Mas não deve possuir riquezas. Porque, quando adquire dezesseis, quer ter quarenta. “Se eu não conseguir quarenta — dirá — não poderei mais viver”. A riqueza é a pior coisa do mundo...”

Em seguida, Cremilo aconselha a Plutão que visite o templo de Esculápio, deus dos médicos, e que ali passe uma noite. Deste modo ficará curado da cegueira plutão segue o seu conselho e recupera a vista. Agora, a miséria vai desaparecer da Grécia. Mas logo surge a Pobreza que procura demonstrar que também é útil à Humanidade!

— “Vocês querem expulsar-me — grita, dirigindo-se a Cremilo. — Julgam que vão salvar a Humanidade se me eliminarem? Pois estão enganados. Só poderão prejudicá-la. Quando todos os homens forem ricos, quem irá dedicar-se às ciências ou às artes? E, se os trabalhadores desaparecerem, quem construirá vossos barcos, lavrará vossa terra, ou exercerá o comércio e a indústria?

Cremilo: Que pergunta absurda! Os nossos servidores.

A Pobreza: Os nossos servidores? Mas onde vocês irão encontrá-los quando todos os homens forem ricos?

Cremilo: Haverá sempre fornecedores de escravos de boa qualidade.

“A Pobreza: Mas ninguém mais há de querer expor-se aos riscos da caça de homens: Quando todos forem ricos, todos terão de trabalhar, afim de conseguirem o necessário para viver. O ouro e a prata não servirão para nada. Atualmente, os ricos têm tudo que necessitam porque há pobres que trabalham a fabricar os produtos indispensáveis à vida. É preciso não confundir a pobreza com a miséria. É evidente que os homens não devem ser miseráveis. Mas é necessário, também, que não vivam em abundância, pois, do contrário, deixarão de trabalhar. Há pouco, vocês mesmos não disseram que os pobres são melhores que os ricos?”

Neste momento, surge Plutão, já curado da cegueira. Saúda o sol e a formosa paisagem. Depois exclama:

“Estou envergonhado do meu passado e do meio em que vivi durante tanto tempo! Não procurei nunca aqueles que mereciam a minha amizade. De hoje em diante, vou agir de outro modo. Vou mostrar que vivi com os canalhas e os desonestos contra a minha vontade”.

O resultado desta mudança de Plutão é de assombrar. Os maus perdem as riquezas. Todo o mundo procura Plutão. Mas o caminho que conduz à residência do Deus passa través da honestidade e da sabedoria. Só os melhores chegam ao fim do caminho. Os sacerdotes queixam-se porque passam fome. Um deles exclama:

“Desde que Plutão recuperou a vista, passo fome. E sou sacerdote de Zeus. Antigamente, quando todos os homens ainda não eram ricos, eles vinham ao templo ofertar sacrifícios. Quando um mercador se livrava de qualquer perigo, trazia uma dádiva. Os fiéis faziam promessas e chamavam o sacerdote. Atualmente, ninguém mais me procura. Vou abandonar o serviço de Zeus. Ele já não me serve mais, porque toda a gente hoje se tornou boa, sábia e rica”.

Toda a moralidade desta comédia se resume nesta frase de Goethe:

“Sejamos bons, e tudo se tornará bom”.

Tal é, igualmente, a ideia fundamental de Aristóteles.


Notas de rodapé:

(2) Escritas respectivamente nos anos 393 e 388 A. C. (retornar ao texto)

Inclusão 15/05/2015