História do Socialismo e das Lutas Sociais
Terceira Parte: As Lutas Sociais nos Tempos Modernos
(Do século XIV ao XVIII e de 1740 a 1850)

Max Beer


Capítulo II - As Revoltas Camponesas


1. A insurreição de Flandres

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O povo flamengo, na maior parte de origem germânica, foi um dos mais combativos da Europa ocidental. Nenhum lutou com mais ardor que ele cm defesa das suas liberdades. Os tratados de Verdun (43) e de Mersen (870), que dividiram o Império de Carlos Magno, colocaram a Flandres sob o domínio de Carlos o Calvo, e, na parte que lhe coube, surgiu, mais tarde, o núcleo da futura Flandres. Como todos os demais vassalos da Corôa francesa, os margraves de Flandres aproveitaram-se da fraqueza dos carlovíngios para conseguir a independência. Quando os capetos chegaram ao poder e iniciaram a sua politica de centralização tentaram energicamente estreitar os laços que uniam Flandres à França. Surgiram, por isso, violentas lutas entre os reis de França e os condes de Flandres.

A divisão, em classes, da sociedade flamenga, ainda mais agravou este antagonismo político. O desenvolvimento da produção e do comércio de tecidos, em Flandres; o progresso das cidades como Bruges, Gand, Ypres, Cassel, Furnes, etc., dividiram as populações citadinas em classes antagônicas: patriciados, burguesia-média e proletariado. No campo, os aldeões, após se libertarem dos encargos feudais, mediante a compra da própria emancipação, transformaram-se em pequenos proprietários de terras. Simultaneamente, na parte noroeste do país, onde a feudalização não se consolidara, o número de camponeses livres aumentou rapidamente. A prosperidade das cidades veio melhorar a situação material dos camponeses que lhes forneciam as matérias primas e os gêneros alimentícios necessários. Os camponeses, pouco depois, revoltavam-se contra as pretensões e os privilégios da nobreza que, aproveitando-se da sua posição política e social, pretendia restabelecer as antigas taxas e prestações extintas, cora a supressão do sistema feudal. Os patrícios e os nobres, menos numerosos que os artesãos e os camponeses, procuraram o apoio da Corôa francesa. Via de regra. inclinavam-se para o lado da França. Os camponeses e os artesãos, isto é, as classes trabalhadoras da população, pelo contrário, eram partidários da independência e apoiavam a luta dos condes de Flandres contra a França. Alguns historiadores descrevem essas lulas como a expressão de um pretenso antagonismo entre a raça germânica e a latina. Mas, na realidade, tratava-se unicamente de uma luta de classe, que logo adquiriu caráter nacional, em virtude da intervenção de ambições dinásticas.

No final do século XIII, as relações entre a França e a Flandres tornaram-se extremamente tensas. Logo depois, a guerra explodiu. Felipe o Belo, rei de França, invadiu o país à frente de um exército A nobreza e o patriciado saudaram com entusiasmo a aproximação das tropas francesas Mas os artesãos e os camponeses flamengos organizaram a defesa e conseguiram desbaratar a cavalaria do inimigo na batalha de Courtrai (1302). Depois de várias alternativas, esta guerra terminou com o vergonhoso tratado de Athis (1304). A população foi obrigada a pagar pesados tributos aos vencedores. Os nobres e os patrícios francófilos organizaram “comissões de reparação”, sendo apoiados, em todos os sentidos, pelo governador francês, Santiago de Châtillon. E a população gemeu sob as pesadas contribuições que lhe foram impostas. Irrompiam, de tempos a tempos, revoltas esporádicas contra esse estado de coisas. Em 1323, finalmente, a cidade de Bruges levantou a bandeira da insurreição geral. A luta prolongou-se até 1328. Os camponeses livres da Flandres ocidental e os proprietários da porção ocidental do país foram imensamente sacrificados nesta primeira guerra de libertação do povo trabalhador da Europa. Bruges, Cassel, Ypres estavam do lado dos camponeses. Gand, do lado dos nobres e patrícios. Os camponeses tiveram contra si, ao mesmo tempo, o Papado e o rei de França. O papa excomungou as populações rebeldes. O rei de França organizou exércitos para combatê-las em defesa dos interesses dos nobres e patrícios, e interrompeu todas as relações comerciais com as regiões insurretas.

As crônicas da época não fornecem elementos suficientes para que se diga com certeza se a insurreição se baseava em reivindicações religiosas ou sociais. Mas os protestos e as queixas dos revoltosos demonstram que as massas laboriosas lutavam contra a exploração e a opressão das classes dominantes e desejavam abolir todas as fontes de renda que não fossem o trabalho. O camponês Nicolau Zanekin e o artesão de Bruges, Jacob Peyt. foram os principais chefes do movimento. Zanekin acusava as classes dominantes de desprezar os velhos costumes e as tradições do povo flamengo. A propaganda de Peyt possuía conteúdo mais herético e social. Peyt combatia energicamente os ricos e a Igreja. Na sua opinião, quem não tomasse claramente o partido do povo devia ser considerado seu inimigo e, como tal, tratado. Dirigindo-se aos representantes das classes dirigentes, Peyt dizia: “Vocês se preocupam muito mais com os interesses dos príncipes do que com o bem estar da coletividade; é ela, no entanto, quem lhes fornece todos os meios de subsistência”. Peyt aconselhava o povo a desprezar a excomunhão do papa, a não reconhecer o clero, e a adorar unicamente a Jesus, o perseguido e o crucificado. Só os mandamentos de Jesus, segundo Peyt, deviam ser obedecidos. Este chefe rebelde foi, afinal, traiçoeiramente assassinado pelos seus inimigos na cidade de Furnes. Mas o povo rendeu-lhe homenagens póstumas e venerou-lhe a memória, sobretudo depois que o clero o declarou herege queimando-lhe os restos mortais..

A princípio, os insurretos alcançaram brilhantes vitórias. O país inteiro parecia estar ao seu lado. Mas as intrigas dos nobres e patrícios refugiados na França levaram os reis de Franca, Carlos IV (1321-28) e Felipe de Valois (1328-1350), a organizar uma expedição armada contra os rebeldes que, diziam eles, “ameaçavam subverter a ordem social”. Logo depois da sua ascensão ao trono, Felipe de Valois reuniu forças consideráveis e, em Junho de 1328, marchou contra Flandres, através de Arras. E, com o auxílio das tropas que Gand lhe pôs à disposição, venceu os insurretos em Cassel (28 de Agosto de 1328). Cerca de 9.000 camponeses e artesãos tombaram no campo de batalha. Após esta derrota, as cidades revoltadas renderam-se incondicionalmente. A nobreza flamenga e francesa praticou contra os sobreviventes represálias de incrível crueldade, não poupando nem mesmo as mulheres e crianças. Graças a severas medidas de repressão, tais como a confiscação dos bens dos rebeldes mortos durante a luta, a execução sumária dos chefes, e a imposição de pesadas contribuições de guerra, os vencedores conseguiram, temporariamente, refrear a combatividade da população flamenga. Em Outubro de 1328, a ordem já fora restabelecida, e o papa, — embora a contra gosto, — aprovou a suspensão da excomunhão que havia baixado sobre a Flandres.

2. A “Jacquerie”

Com a vitória de Felipe de Valois sobre Flandres, os antagonismos econômicos, que mais tarde iriam provocar a guerra entre a França e a Inglaterra, tornaram-se ainda mais profundos. A guerra franco-britânica começou em 1339 e prolongou-se, com algumas interrupções, por quase um século. A Inglaterra, principal consumidora da lã flamenga, possuía interesses consideráveis no comércio de tecidos desse país. Como, além disso, se interessava extremamente pela sua prosperidade comercial, não via com bons olhos as pretensões francesas em Flandres. Depois que o rei de França derrotou a população insurreta na batalha de Cassel e se assenhoreou do país, o descontentamento da Inglaterra aumentou. Eduardo III (1327-1377), rei da Inglaterra, que inaugurou a política naval econômica desse país, apresentou-se como pretendente á coroa de França. Em 1328, morreu Carlos IV, o último capeto. Seu sucessor foi Felipe, descendente dos Valois, pequena ramificação da casa dos capetos. Ora, Eduardo III, neto de Felipe o Belo, também pertencia à casa dos capetos. Tal foi o pretexto da chamada guerra dos Cem Anos, durante a qual a Inglaterra lançou as bases da sua potência naval e econômica. Foi, também, durante essa guerra, que a França, depois dos insucessos iniciais, transformou completamente o seu exército s. deu início ao militarismo francês. Mas, antes da luta armada, houve intrigas e acordos diplomáticos de ioda a sorte. Eduardo III. cunhado do imperador Luís da Baviera, tentou fazer um pacto com a Alemanha. Mas não conseguiu o que desejava. Obteve apenas um acordo com as cidades flamengas, o que lhe trouxe enormes vantagens, tanto do ponto de vista militar, como do ponto de vista econômico. A guerra em nada modificou a situação respectiva dos dois países. Em última análise, as vitórias e as derrotas se compensaram. E, como de costume, foi às costas do povo trabalhador que recaiu, de ambos os lados, o maior peso das consequências da guerra.

Depois de vários anos de preparativos militares e de intrigas diplomáticas, em 1339, o rei Eduardo III declarou guerra à França. No ano seguinte, feriu-se a grande batalha naval de Sluys (porto de Bruges).

O combate durou um dia inteiro. A intervenção da esquadra flamenga fez, afinal, a balança pender para o lado dos ingleses. A esquadra francesa foi totalmente destruída e posta a pique, com seus 20.000 tripulantes. Eis como Flandres se vingou de Felipe VI de Valois.

Em 1346, na batalha de Grécy, os archeiros ingleses aniquilaram grande parte da cavalaria francesa. No ano seguinte, os ingleses apossaram-se da cidade de Calais, que permaneceu em seu poder durante mais de dois séculos. Em 1356, o exército inglês venceu o francês, cinco vezes superior em número, na batalha de Poitiers. O rei João o Bom foi preso e levado para a Inglaterra.

Todas essas guerras, com suas derrotas, pilhagens e devastações, desmoralizaram completamente a nobreza e atiraram a população laboriosa do norte da França na mais espantosa miséria. Com isso, a realeza perdeu grande parle do prestígio. As cidades, que até então haviam sido os mais sólidos sustentáculos da Corôa, procuraram tornar-se independentes. Bandos de salteadores, bem organizados e muitas vezes chefiados por nobres arruinados, percorriam o país, pilhando e devastando tudo o que encontravam no caminho. O banditismo tornou-se uma profissão lucrativa. E, como se tudo isso ainda não bastasse, os senhores feudais resolveram despojar os camponeses de seus últimos recursos. A nação foi então agitada por uma onda de revolta.

A capital deu o sinal para a insurreição. Em 1357, as ghildes de mercadores e as corporações de artesãos, chefiadas por um homem de grande valor, Etienne-Marcel, arrancaram do herdeiro do trono (o delfim), um decreto que transferia o poder governamental da Corôa para os Estados. Mas esse decreto permaneceu letra morta porque os dois Estados privilegiados, a nobreza e o clero, não quiseram apoiar a burguesia. Quando, em Paris, a agitação aumentava, o campo se sublevou. No mês de Maio de 1358 estalou, em Compiége, uma revolta, que rapidamente se estendeu por toda a região situada entre Paris e Amiens. A população laboriosa das cidades simpatizava com o movimento. O próprio Etienne-Marcel ligou-se aos chefes da insurreição e procurou dirigi-la, a fim de abolir para sempre o domínio da nobreza desmoralizada, incapaz e rapace.

Esta insurreição, que recebeu o nome de “Jacquerie” (os nobres chamavam os camponeses: os Jacques), foi uma revolta espontânea e elementar dos camponeses explorados e oprimidos contra os opressores. Não foi determinada pela ideia de liberdade ou de igualdade. Nela não se manifestou a influência de qualquer tendência herética ou social. Pode dizer-se que, na primeira metade do século XIV, a missão da Inquisição, na França, já estava cumprida. De fato, apesar da miséria e das injustiças reinantes, no país, no seio das massas camponesas e da população laboriosa das cidades, não havia mais revolucionários nem hereges, nem mesmo reformadores capazes de orientar o descontentamento das massas para uma transformação violenta do regime vigente. Alguns representantes da burguesia reclamavam liberdades burguesas. Mas ninguém lhes dava ouvidos. A nobreza, pelo contrário, embora incapaz de lutar contra o inimigo exterior, possuía ainda forças suficientes para reprimir as revoltas internas. As classes dominantes, apesar d; desmoralizadas, sempre possuem forças e energias suficientes, sobretudo quando ligadas ao poder militar ou com de identificadas, para dominar as sublevações populares desorganizadas, principalmente porque estas, após as vitórias iniciais, raramente conservam à sua frente chefes capazes de dirigir o movimento, fazendo-o obedecer a um plano de conjunto.

Os “Jacques” não tiveram a menor complacência com os nobres. Praticaram contra eles cruéis represálias. Mas os nobres rapidamente passaram à ofensiva. O movimento não foi além da região compreendida entre Paris e Amiens. Na terceira semana de Junho, graças ao auxílio que receberam da Corôa, os nobres já estavam em condições de passar à contraofensiva. Travaram então duas grandes batalhas com os insurretos, a primeira em Meaux, a segunda em Clermont-en-Beauvoisis. Lutando com falta de armas, os camponeses sucumbiram aos milhares. A “Jacquerie”, durou apenas cinco semanas — de 21 de Maio a 24 de Junho de 1358. Os nobres reprimiram o movimento rebelde com espantosa crueldade. “Os próprios ingleses, os maiores inimigos da Corôa — afirma uma crônica da época — não teriam agido com a atrocidade que os nobres usaram contra os camponeses”. O delfim Carlos, graças a um traiçoeiro estratagema, conseguiu atrair o chefe camponês, Guilherme Calle, a Paris. Chamou-o para a conclusão de um armistício. Guilherme Calle atendeu ao convite. Mas foi preso e morto lentamente, depois de horríveis torturas. O delfim, antes de o decapitar, coroou-o rei dos camponeses, colocando-lhe à cabeça um tripé incandescente. Todas as aldeias situadas entre o Oise, o Sena e o Marne foram arrasadas a ferro e fogo. A vingança dos nobres não poupou nem as mulheres e crianças. A “Jacquerie” foi afogada em sangue.


Inclusão: 03/04/2021