História do Socialismo e das Lutas Sociais
Terceira Parte: As Lutas Sociais nos Tempos Modernos
(Do século XIV ao XVIII e de 1740 a 1850)

Max Beer


Capítulo V - As insurreições sociais na Alemanha


1. A primeira revolução alemã

capa

No período que medeou entre 1516 e 1535, a Alemanha foi agitada por quatro grandes convulsões: a Reforma, com Lutero; a sublevação da nobreza, com Siskingen; a guerra dos camponeses, com Tomaz Munzer; e o anabatismo comunista, com Sebastião Frank e João de Leyde. Tal época representa, na realidade, a primeira fase revolucionária na História do povo alemão. À importância dessas duas décadas não pode ser justificada por nenhum dos movimentos, tomados isoladamente. Não se compreenderá a importância revolucionária desta época sem examinar, em conjunto, os quatro movimentos. De Wittemberg à Basileia e a Insbruck, do Tirol à Suécia e à Holanda, a chama revolucionária ardeu, viva e impetuosamente, na alma do povo alemão. Todas as instituições da época, religiosas, políticas ou sociais, foram submetidas a uma revisão completa. A nobreza, o baixo clero, as universidades, a burguesia, os camponeses, as camadas mais pobres da população das cidades e dos campos, ingressaram nas fileiras da oposição. E, de acordo com os seus próprios interesses e aspirações, elaboraram diferentes programas sociais e religiosos.

Este primeiro período revolucionário começou com Lutero. Este iniciou a sua ação de maneira verdadeiramente promissora, publicando, em 1516, o manuscrito de um velho místico alemão, intitulado A Teologia Cristã. Mas tudo leva a crer que Lutero não compreendia ainda a importância desta obra, profundamente impregnada de espírito místico, panteísta e moderadamente comunista. Admirava-lhe apenas o estilo primoroso. De qualquer modo, a publicação dessa obra é sintomática, porque demonstra que Lutero atravessava, nesse momento, um período de inquietação moral. Mas verdadeiramente ele somente começou a agir quando, a 31 de Outubro de 1517, apresentou em Wittemberg suas 95 teses sobre as indulgências. O objetivo de Lutero era apenas retornar a igreja e defender os interesses alemães. Ele não imaginava o papel de relevo que iria desempenhar num dos capítulos da primeira revolução alemã. Mais adiante, examinaremos novamente este ponto. Aqui, o que nos interessa é mostrar que a atividade de Lutero, por mínima que tenha sido a sua importância revolucionária, foi praticamente um sopro que avivou as brasas escondidas sob as cinzas e desencadeou um formidável incêndio. Por esse tempo, de todos os lados chegavam as mãos do povo folhetos e projetos de programa que preconizavam reformas e planos de instituições políticas e sociais vigentes. Surgiram, em seguida, as primeiras tentativas no sentido a realização prática das reformas pleiteadas. A imaginação das massas populares deu origem a grande número de profecias anunciadoras de grandes acontecimentos históricos. A partir de 1519, grande parte da população passou a viver na constante expectativa de uma transformação catastrófica iminente.

2. A situação econômica e política

A Alemanha, durante os séculos XV e XVI, foi um| dos mais ricos países da cristandade. Suas fontes de riqueza eram as minas, a habilidade dos artesãos, o espírito de iniciativa, a atividade dos negociantes, o labor infatigável dos camponeses. Hartz, a Saxônia, a Boêmia, a Stíria, o Tirol, eram centros produtores de prata, ouro, ferro, chumbo, cobre e sal. Nas minas, forjas e oficinas trabalhavam milhares de braços e cabeças, utilizando a técnica primitiva da época. Os aperfeiçoamentos introduzidos nos velhos métodos de produção, a invenção de novos processos e, sobretudo, a invenção da imprensa, celebrizaram Nuremberg, Estrasburgo e Basileia. Os comerciantes da Alemanha do norte e do sul, tinham, desde o século XII, acumulado experiência e capitais suficientes para adaptar suas empresas às novas condições criadas pelo desenvolvimento do comércio mundial, pela abertura de novas vias; comerciais e pelas recentes conquistas coloniais do| portugueses e espanhóis.

No século XIII, alguns comerciantes de Nuremberg, Augsburgo e Ulm, iniciavam as exportações levantino-italianas de Veneza e Gênova para o noroeste da Alemanha e de Flandres. Agrupados na poderosa organização de Hanse, os negociantes da Alemanha setentrional dominavam todo o comércio do mar do Norte, desde Lubeck até Novgorod. Mas, no fim da Idade Média, a atividade da organização de Hanse era já menos importante que a dos comerciantes da Alemanha meridional primeiro porque a atividade destes dependia cada vez mais da produção indígena, enquanto a atividade dos elementos do norte se limitava exclusivamente ao domínio comercial. Demais, os comerciantes da Alemanha meridional aproveitavam-se da experiência adquirida nas suas relações com a Itália do norte, região extremamente desenvolvida sob o ponto de vista industrial, comercial e financeiro, ao passo que os negociantes do norte, da organização de Hanse, só atuavam nos territórios coloniais fora da civilização, exclusivamente como produtores de matérias primas. Quando o comércio passou do mar Mediterrâneo para o oceano Atlântico e o mar do Norte, a capacidade de adaptação dos alemães do sul imediatamente se evidenciou. Logo depois, no momento em que os turcos, avançando progressivamente, se apoderaram de Constantinopla (1453) e em seguida paralisaram o comércio do mar Mediterrâneo, os povos foram obrigados a procurar novas vias de comunicação para o comércio entre a Europa e a Ásia. Foi isto, justamente, o que determinou a circum-navegação da África, a descoberta da América e o desenvolvimento econômico de Portugal, dos Países Baixos e da Inglaterra. Lisboa, Antuérpia e Londres tornaram-se importantes centros do comércio mundial. A Espanha, nessa época, não podia ainda se desenvolver senão no domínio político, porque tinha as forças econômicas entravadas pelo clericalismo e pela Inquisição. Mas, nos fins do século XV e no começo do século seguinte, durante o reinado de Fernando o Católico (1479-1516) e de Isabel, a Espanha conseguiu elevar-se à situação de primeira potência mundial. Pelos acordos diplomáticos e ligações de sangue, Fernando era aliado da dinastia dos Habsburgos, isto é, dos imperadores alemães. Por isso, depois da sua morte (1510), a coroa da Espanha e, três anos mais tarde, a coroa imperial alemã, foram herdadas por seu neto Carlos, que reinou de 1510 a 1556 com o nome de Carlos I da Espanha e Carlos V da Alemanha. Durante este reinado, capitalismo começou a surgir na Alemanha do sul.

Foi também neste reinado que a Alemanha foi agitada pela Reforma, pelo movimento de unificação, pela guerra dos camponeses, pelo movimento anabatista, em suma por toda a revolução econômica, política e cultural que nela se processava. Os comerciantes da Alemanha do sul contribuíram poderosamente — embora inconscientemente — para o desenvolvimento desta revolução. Tanto do ponto de vista financeiro, como do ponto de vista industrial, foram favorecidos com o desenvolvimento das relações comerciais entre a Alemanha e a Espanha. Dentre as grandes casas de comércio de Augsburgo e de Nuremberg, destacaram-se, particularmente, as dos Fugger e as dos Welser. A indústria metalúrgica alemã, as minas espanholas e húngaras, o comércio com Lisboa e Antuérpia, as operações financeiras com o imperador Carlos V, tudo isto estava concentrado em suas mãos. Ao lado deles, grande número de casas, que comerciavam com metais e especiarias, apoderaram-se da pequena produção artesã e praticavam a usura em larga escala. A vida citadina da Alemanha do sul e da Alemanha central influiu sobre toda a cultura alemã dos Tempos Modernos. Mas bem depressa entrou em conflito com a ética dos doutores da Igreja e com toda a doutrina econômica do cristianismo primitivo. Decididamente, era cada vez mais difícil salvarem-se os homens pelas suas ações...

3. Antagonismos sociais

Foram muitas e várias as consequências do surto capitalista na Alemanha. Novos horizontes, o melhoramento das condições de vida, a caça geral às riquezas, despertaram nas classes pobres aspirações de liberdade e igualdade e o desejo de maior participação nos bens da terra. Todas as camadas laboriosas, que se julgavam desfavorecidas ou oprimidas, ficaram descontentes, sobretudo porque a divisão da sociedade em classes só viera agravar e aumentar a pressão exercida sobre elas. O antagonismo entre os patrícios proprietários de grandes extensões de terra, os grandes comerciantes, os banqueiros e o clero — de um lado — e a massa dos pequenos artesãos, pequenos agricultores, nobres arruinados, soldados licenciados, — de outro — tornou-se cada vez mais profundo. A isto veio juntar-se o custo cada vez maior da vida e a elevação dos impostos, taxas, etc., cobrados pela cidade e pelo clero. Em virtude da maior quantidade de metais preciosos em circulação, por conseguinte, dos meios de pagamento, e dos numerosos monopólios, verificou-se urna crescente alta no custo da vida, que feriu principalmente as camadas mais pobres da população. Os impostos aumentaram porque, dada a impotência crescente do Império e a desmoralização da nobreza, as cidades eram forçadas a progressivas despesas na manutenção de forças militares. Acresce que a Igreja exigia o pagamento de grande número de taxas destinadas aos fins mais diversos: batismos, casamentos, falecimentos, remissão dos pecados, etc. Arrecadava, assim, consideráveis somas que eram expedidas, anualmente, para Roma. Numa época em que o descontentamento se estendia a outras camadas da população, esse tributo em ouro que a Cúria anualmente arrecadava na Alemanha tinha de causar, forçosamente, violenta agitação e aumento do mal estar geral.

Os camponeses sentiam mais que ninguém as consequências da transformação econômica. Como produtores de gêneros alimentícios, e matérias primas, teriam podido, se fossem livres, apropriar-se de parte considerável da riqueza nacional. Mas isto não era possível, diante da servidão que os prendia aos grandes proprietários de terras. Eram obrigados a dar aos senhores o '‘grande dízimo” dos cereais, o “pequeno dízimo” do gado que possuíam e, a todo momento, tinham de pagar ainda outros dízimos. Deviam, além disso, prestar gratuitamente certos serviços aos grandes senhores rurais. Finalmente, tinham de pagar, no caso de morte do chefe da família, um imposto de sucessão, chamado o “caso de falecimento”. Com o constante aumento dos preços dos gêneros alimentícios e da terra, os camponeses lembraram-se que os senhores se haviam apropriado de parte dos prados e pastagens, primitivamente pertencentes à comunidade. Lembraram-se, ainda, que os senhores haviam monopolizado a caça e a pesca, dantes permitidas a todos. Este agravamento da exploração e da opressão das massas rurais processava-se porque, a partir do século XIV, a nobreza sentia cada vez mais necessidade de dinheiro. E, para obtê-lo, redobrava a exploração dos camponeses. Todos os vestígios do direito canônico e do velho direito comunal germânico foram, pouco a pouco, eliminados, surgindo, em seu lugar, o direito romano, baseados no qual os senhores podiam apropriar-se das terras pertencentes à comunidade e sujeitarem os pequenos proprietários de terras à condição de servos.

O resultado de tudo isso foi uma violenta e ampla fermentação social, em que se distinguiam três correntes principais:

Ao lado dessas correntes, havia ainda uma quarta, que visava sobretudo finalidades políticas: a instauração da unidade alemã sob a autoridade de um imperador alemão. Seu programa foi exposto num folheto intitulado: A miséria da nação alemã (1523).

Era constituída pelos cavaleiros (os pequenos nobres arruinados), pelos camponeses e por uma pequena parte da burguesia, e combatida pela grande nobreza.

Os camponeses reclamavam o restabelecimento dos direitos da comunidade aldeã, a volta da Igreja e da comuna à democracia, e a liberdade individual. Os proletários e os teólogos fiéis às tradições do cristianismo primitivo desejavam o comunismo e apoiavam as reivindicações camponesas. O anabatismo era a expressão mais extremada deste movimento.

A burguesia reclamava a adaptação do cristianismo aos interesses da nova economia e à ética individualista dela resultante. Reclamava, também, a instituição de uma Igreja nacional. A burguesia compreendia nitidamente que a vida consagrada somente ao lucro, à usura, ao monopólio dos produtos e à exploração do trabalho alheio eram contrários às tradições do cristianismo primitivo. Mas também compreendia que, em face das novas forças econômicas, já não podia viver em harmonia com a moral cristã nem conquistar a salvação com praticar boas ações. Por isso mesmo, experimentava certo mal estar. Nos períodos de crise econômica e de perturbações sociais, revoltava-se contra a concorrência que as igrejas e os mosteiros lhe faziam e contra o tributo em ouro que a Cúria arrecadava anualmente no país. Além disso, atribuía a essas circunstâncias parte da responsabilidade pela infelicidade social. Em suma, a burguesia encarnava a ideia nacional, na Alemanha, o que já era bastante para a fazer lutar contra o Papado. Já na época de Luis da Baviera, as cidades estavam contra o papa e a favor da instauração de um Império nacional. A Reforma luterana não foi mais que a expressão intelectual das aspirações burguesas.

Pode ser considerada, antes de mais nada, como uma tentativa de superar a crise moral em que se debatiam os grandes setores da burguesia, crise provocada pela contradição existente entre as tradições do cristianismo primitivo e as novas formas econômicas entre a moral cristã e a moral individualista que essas formas econômicas iam desenvolvendo. No tempo de Jesus, as camadas médias da sociedade judaica atravessavam uma crise moral semelhante. Sob a influência dos fariseus, supunham que venceriam tal crise por meio da severidade e da multiplicação das regras e das interdições religiosas, graças a um legalismo ilimitado que regulamentasse todos os atos da vida, nos menores detalhes. O número das leis cresceu de maneira considerável. Seu peso fez-se tão esmagador que o doloroso sentimento da impotência moral do homem aumentou ainda mais. Nesta crise Paulo, um verdadeiro fariseu fanático, sentiu dolorosamente o peso das leis do ritual judaico. E para se libertar da consciência paralisante dessa impotência inerente ao legalismo judaico, abandonou-o resolutamente. Quebrou as algemas que dantes considerava um apoio nos monumentos de desânimo e prosternou-se diante de Jesus, para haurir, na grandeza do crucificado, no seu sacrifício expiatório, na sua graça divina, novas forças, nova liberdade, nova dignidade humana.

A Reforma, de outra parte, foi uma tentativa para fundar uma Igreja nacional independente do Papado. Mas, neste particular, também ela ficou a meio caminho. Sob o ponto de vista nacional, Lutero estava, realmente, abaixo de um Sickinger ou de um Hutten. Enquanto estes lutavam pela instauração de um império nacional, Lutero contentava-se com a soberania principesca.

4. Os pródromos da guerra dos camponeses

Dois anos após o termo das guerras hussitas, em 1438 manifestaram-se os primeiros sintomas sérios de descontentamento nas massas camponesas alemãs. Surgiu, nessa época, um manifesto intitulado A Reforma do Imperador Segismundo, que continha as reclamações e as reivindicações dos camponeses alemães. O autor desse manifesto não foi além do pensamento social da Idade Média. Reclamava apenas que se abolisse a servidão, restabelecessem as comunidades das florestas, dos prados e rios — de que a nobreza e o clero se haviam apoderado — e se suprimissem as companhias comerciais e as corporações exploradoras do povo. O manifesto apoiava-se em citações bíblicas referentes ao advento da Última Era, na qual os pobres e os oprimidos seriam elevados às mais altas posições e os ricos e poderosos rebaixados. Percebe-se, nitidamente, nesse documento, a influência dos partidários de Wiclef e dos taboritas. Bem entendido, o imperador Segismundo, que atirara legiões de cruzados contra os hussitas, jamais assinaria um tal manifesto. O documento foi publicado em seu nome porque o imperador gozava ainda de grande prestígio entre as massas. Seu verdadeiro autor, julgou, com certeza, que por meio desse estratagema poderia atingir melhor o fim visado.

Cerca de quarenta anos depois, em 1476, um jovem padre de Niklashausen, Hans Boheim, cognominado o “timbaleiro de Niklashausen”, celebrizou-se na região de Wurzburg pelos seus discursos, nos quais profetizava o próximo advento da Era da Igualdade. Os camponeses afluíam de todos os cantos, em massa, para ouvi-lo. A. agitação atingiu tais proporções que o arcebispo de Mogúncia o mandou prender e queimar como herege.

Em 1493, apareceu na Alsácia uma associação secreta camponesa chamada “Bundschuh”, que se propunha substituir o “direito humano” (ou direito positivo), pelo “direito divino” (ou direito natural), e libertar o povo trabalhador das tributações e da opressão que o esmagava. Mas a associação foi descoberta e os chefes executados. Fundou-se, em 1514, no ducado de Wurtemberg, o “Pobre Conrado”, uma associação de camponeses e cidadãos pobres, dirigida contra a nobreza e o patriciado. Esta organização acabou destruída pela perfídia dos senhores e pela força das armas.

Ao lado desse movimento revolucionário camponês, surgiu uma viva agitação comunista entre os artesãos da cidade. Irromperam vários levantes da plebe em Erfurt, no ano 1509, em Ulm e Schwabisch-Hall, nos anos de 1511 e 1512, e em Colônia, em 1513. Os pregadores das cidades, na maioria pertencentes ao baixo clero mal pago e, além disso, originários das camadas populares mais pobres, procuravam um remédio para os males sociais na Bíblia, na legislação social de Moisés, nas condições de existência das primeiras comunidades cristãs. Estes “pregadores” — como eram então chamados — desempenhavam o papel de intermediários entre os comunistas e os reformadores sociais, de um lado, e as classes laboriosas da cidade e do campo, de outro. É, pois, evidente que a sua ação irritava fortemente os patrícios, os burgueses ricos, a alta nobreza e os reformadores religiosos do tipo de Lutero, Melanchthon, etc. O arquivista de Rotem burgo, Tomaz Zweifel, desgostoso com os “pregadores”, dizia: “E, assim, o santo Evangelho e a palavra de Deus tornam-se objeto de um nefasto equívoco. Quando alguém fala no amor cristão, o povo pede que todos os bens sejam postos à disposição da coletividade e diz que as autoridades, a nobreza e todas as formas de domínio devem ser suprimidas. Na opinião do povo, ninguém deve exigir o lamento do dinheiro que emprestou”. De fato, era esta situação. E quando as autoridades resistiam, a insolência popular não hesitava em as acusar de “impedir que se pregasse a Palavra de Deus”.

5. O Humanismo e o anabatismo

O fim da Idade Média e o começo dos Tempos Modernos isto é, a época dos levantes camponeses na Europa ocidental e central caracterizam-se por três grandes movimentos intelectuais, que exerceram profunda influência no pensamento e na sensibilidade da Europa:

O Renascimento e o Humanismo fizeram com que, ao lado da crítica católica, a sensibilidade e o pensamento antigos, o livre exame, a autoridade da razão adquirissem progressiva importância. Tudo o que a Idade Média conhecia com respeito aos gregos e aos latinos fora subordinado à autoridade da Igreja. Todos os conhecimentos da era medieval, nesse domínio, estavam a serviço da Igreja. Foi a partir do século XIV que a Antiguidade se tornou autoridade independente e passou a ser objeto de estudo à parte. Os tesouros da literatura grega começaram a ser traduzidos em italiano, alemão, holandês, inglês e francês, por gregos cultos que, fugindo ao domínio turco, se refugiavam na Itália e se estabeleciam em Florença, o principal centro intelectual do país. naquela época. A língua e a literatura gregas foram, assim, divulgadas. Tomaz de Kempis enviou seis dos seus melhores discípulos a Florença, para que aí estudassem o grego. Já tivemos oportunidade de dizer que os ensinamentos dos Irmãos da Vida em Comum consagravam ao Humanismo uma atenção toda especial.

O declínio da Idade Média significava, entre outras coisas, a morte da escolástica e da sua principal autoridade filosófica: Aristóteles. A escolástica foi| substituída pelo livre exame, pelo crescente prestígio da razão. Aristóteles cedeu lugar a Platão, que se tornou o autor predileto dos humanistas, não só pela beleza sem par do estilo, como pela riqueza do pensamento filosófico e político e a nobreza de espírito. Foi fundada, em Florença, uma Academia platoniana, frequentada por grande número de estudantes de outros países. A imprensar inventada pouco antes, permitiu que por toda a Europa ocidental e central rapidamente se propagasse o conhecimento dos tesouros da Antiguidade clássica. Pela República e as Leis de Platão os humanistas, que ardentemente se batiam pelas reformas sociais, conheceram o comunismo. Dois humanistas célebres — Erasmo de Roterdã (1467-1536) e o inglês Tomaz More (1480-1535) — tornaram-se partidários do comunismo. More é o autor da Utopia (1516), que estudaremos mais adiante. Erasmo, que desfrutava um prestígio e uma influência imensa entre os seus contemporâneos, deu aos teólogos uma versão grega do Novo Testamento e dos escritos dos doutores da Igreja. Na sua Exegese, Erasmo interpretou os ensinamentos de Jesus sob um ponto de vista perfeitamente harmônico com o espírito de Platão e da escola estoica. Numa palavra: transformou a teologia em simples filosofia moral. “Um cristão — dizia ele — não deve ter nada de seu, porque tudo o que possui vem de Deus. E Deus não deu os bens da terra a cada homem individualmente, e sim à coletividade”. Quando More publicou sua Utopia, Erasmo procurou fazer com que seu amigo Ulrich de Hutten a conhecesse. Os humanistas suíços publicaram na Basileia, em 1513, uma segunda edição da Utopia e, em 1524, a traduziram para o alemão. Isto mostra o interesse que nossa época despertava o comunismo.

De modo geral, pode dizer-se que todos os humanistas fiéis à Igreja católica simpatizavam com o comunismo ou eram, pelo menos, partidários de uma profunda transformação social. Além disso, acreditavam na salvação mediante a prática de boas ações. Os humanistas luteranos, pelo contrário, eram anticomunistas, conservadores, animados de espírito pequeno-burguês, tacanho, tal como Melanchthon, o maior conhecedor das línguas grega e latina em Wittemberg. Este lutou com enormes dificuldades, quando tentou contestar os trechos da literatura latina, dos doutores da Igreja e do Novo Testamento, favoráveis ao comunismo. Para Melanchthon, Aristóteles, o defensor da propriedade privada, valia mais que a comunidade cristã de Jerusalém, ou que Santo Ambrósio ou S. Crisóstomo. Já vimos que a Reforma foi em grande parte consequência da crise moral da burguesia da época. Eis porque ela instintivamente repelia tudo o que possuía certo caráter proletário e comunista. Lutero não suportava a Epístola de S. Thiago e nem o Apocalipse, por causa de seu caráter proletário e quiliástico, e porque eles afirmavam que a salvação somente seria obtida pelas boas ações.

Os escolásticos, discípulos de Ocam, deixaram profundas tendências comunistas no pensamento alemão.

Gabriel Biel, professor de teologia em Tübingen, ensinava que a propriedade privada é consequência do pecado. Sempre se conservou fiel à concepção da igualdade primitiva de todos os homens. Muito mais durável e intensa foi a influência exercida pelo movimento batista, que surgiu desde o começo da atividade de Lutero, e se desenvolveu com o movimento revolucionário dos camponeses. Apareceu pela primeira vez na Turíngia, em Saxe, na Suíça, e. desses pontos, estendeu-se à Alemanha do sul, à Áustria, à Morávia, etc... Tal movimento é conhecido na História com o nome de movimento anabatista, porque os seus partidários consideravam nulo o batismo dos recém-nascidos e — baseando-se no exemplo de S. João Batista — exigiam o batismo dos adultos — como símbolo da admissão do fiel à comunidade cristã. Aliás, para eles, o batismo não passava de um símbolo. O que particularmente nos interessa nesse movimento é o seu comunismo bíblico. No seio do movimento, atuavam as tradições de todos os movimentos heréticos da Idade Média. Os anabatistas tomavam muito a sério a ética social do Novo Testamento. Esforçavam-se para aplicar praticamente as prescrições contidas no Sermão da Montanha e trabalhavam acreditando no próximo advento da Era Apostólica e do Reinado de Deus. Quase todos os adeptos eram artesãos. Seus chefes, na maioria, foram profundos conhecedores das humanidades e da teologia. Todos reconheciam, em princípio, a comunidade de bens, embora não estivessem de acordo quanto à maneira de a alcançarem. Distinguiam-se, entre eles, duas correntes principais. Os batistas suíços, dirigidos por Hans Denk, Conrado Grebel, Felix Manz, Baltasar Hubmetier, repeliam qualquer violência e toda restrição imposta pelo Estado, ao passo que grande número de batistas alemães, que viviam na atmosfera carregada de eletricidade da iminente insurreição camponesa, admitiam o| emprego de todos os meios, da violência inclusive. Tal era, particularmente, a opinião de Tomaz Münzer. Pelo contrário, Karlstadt e Sebastião Franck, que estavam, de maneira geral, acordes com as concepções de Münzer, na parte referente ao objetivo a atingir, eram adversários da violência. De qualquer modo, todos os batistas e comunistas suíços e alemães adotavam uma atitude de franca hostilidade para com os reformadores religiosos, tais como Lutero, Zwingli e Calvino.

6. Sebastião Franck e Tomaz Münzer

Sebastião Franck (nascido em 1500, em Donauworth, morto em Basileia no ano de 1542), era contemporâneo de Münzer, mais moço que ele dez ou doze anos. Ambos foram teólogos, que inicialmente aderiram com entusiasmo ao movimento desencadeado por Lutero, mas que, desgostosos com o dogmatismo e a limitação pequeno-burguesa de Lutero, dele se afastaram para seguir caminhos diferentes. Münzer tornou-se chefe revolucionário e Franck escritor comunista e místico. Em 1528, Franck demitiu-se das suas funções de pastor e passou a viver do trabalho manual, dedicando-se às mais variadas ocupações: impressor, fabricante de sabão, etc. Escreveu então vários livros. Sua profissão de fé comunista está na sua principal obra, os Paradoxos (1534). Os Paradoxos demonstram que o seu autor conhecia a fundo os escritos dos doutores da Igreja e da mística alemã. O autor começa explicando o significado da palavra paradoxo. Esta palavra, diz ele, significa alguma coisa que é verdadeira, mas que todo mundo julga falsa. Seu livro encerra 280 paradoxos. O 153.° afirma o seguinte: “O comum é digno, o meu e o teu é indigno”. Franck procura demonstrar a falsidade da concepção corrente que o termo “comum” é sinônimo de “mau”. Nosso idioma está de tal modo aburguesado que em geral se confunde a noção de “comum”, que significa originariamente a vida em comum do povo, com a noção de “mau”, de “baixo”, de “imoral”. Franck protesta contra esta confusão. “Deveríamos — diz ele — ter tudo em comum, da mesma maneira que temos em comum a luz do sol, o ar, a chuva, a neve e a água, como Clemente o demonstra... Nosso Deus comum fez todas as coisas comuns, dignas e livres... Eis porque só o comum é digno, ao passo que o meu e o teu ressoam mal aos ouvidos; a noção de comum é um princípio inato no espírito dos homens, por isso que foi o próprio Deus quem estabeleceu a comunidade das coisas... O comum, que o mundo julga indigno, Deus considera a única coisa digna. Deus julga mau justamente o meu e o teu. Eis porque todas as coisas foram comuns na primeira comunidade cristã. Eis porque tudo deve ser posto em comum entre os cristãos. Quanto mais uma coisa for comum tanto mais será nobre. Quanto mais for nobre tanto mais será comum ... A propriedade privada é contrária à natureza... ”

Franck não participou das lutas do tempo. Dedicou-se exclusivamente aos seus trabalhos e livros. Publicou mais de uma dúzia de obras. Münzer possuía um temperamento completamente diferente. Era um homem de ação, um revolucionário nato. Sempre ao lado das massas oprimidas, contra os senhores e os possuidores, sempre contra os reformistas moderados. Era de estatura abaixo do comum, de tez morena e cabelos pretos, olhar de fogo, e eloquência vigorosa e fácil. Não era homem de partido, mas um temperamento de tendências anarquistas, caráter independente, absoluto, voluntarioso, só obediente à própria inspiração, e corajoso até a temeridade. Nascera em Stolberg, no Hartz. Recebeu excelente educação, estudou teologia em Leipzig (1506) e em Francfort, e viveu algum tempo em Halle, onde, em 1519, teve contacto com Lutero, que fora àquela cidade com Karlstadt, para sustentar uma polêmica pública com Eck. Arrastado pela ação de Lutero, Münzer a princípio trabalhou pela Reforma. Graças a uma recomendação de Lutero, conseguiu um lugar de capelão em Zwickau, onde teve relações com os anabatistas. Tal contacto exerceu decisiva influência na sua atividade. Desde então, voltou-se para a mística. Leu a Teologia alemã, as obras de Tauler, de Joaquim de Flora, e pronunciou-se favorável a uma profunda reforma da sociedade, sobre as bases místico-comunistas. Dai por diante, a ruptura com Lutero fez-se inevitável.

Os quatro ou cinco anos que ainda teve de vida foram anos de inquietações, de peregrinações e de lutas. Afastaram-no logo do seu lugar de pregador em Zwickau. Dirigiu-se então a Praga, depois a Nordhausen, e permaneceu algum tempo em Alstaedt, descansando. Aí elaborou uma reforma do culto e dedicou-se de corpo e alma à agitação comunista. Seus sermões contra os príncipes, os senhores e os ricos foram entusiasticamente acolhidos pela população operária e camponesa da região. Sua influência tornou-se tão grande que os príncipes saxões, inspirados por Lutero, não ousaram entrar em luta armada contra ele.

A sublevação geral dos camponeses, que se organizava em todo o sudoeste da Alemanha, levantou algumas vagas na Turíngia. Münzer recomendou aos seus adeptos que aguardassem pacientemente a ocasião oportuna para se revoltarem. Mas, desde logo, começou a organizar a revolta, fundando, para isso, uma associação secreta “contra os inimigos do Evangelho”. Münzer hauria suas ideias comunistas, não só na Bíblia e nos escritos dos doutores da Igreja e dos místicos, como também na República, de Platão. Em 1524, anunciou aos seus fiéis que, no mundo, estava iminente uma profunda transformação que entregaria poder nas mãos do povo. Esta crença estava, na época, amplamente difundida na Alemanha, e mais de um príncipe religioso dela compartilhava, intimamente.

Depois de ter trabalhado a região de Mansfeld, Münzer foi a Mulhausen, uma das mais ricas cidades da Turíngia, na qual, desde 1523, o pregador Heinrich Pfeiffer excitava o povo contra o patriciado e o alto clero de maneira tão intensa que o Conselho havia sido obrigado a democratizar a administração da cidade. Münzer encontrou em Mulhausen o terreno já preparado. Mas, cedendo à pressão de Lutero, o Conselho impediu que Münzer e Pfeiffer continuassem a sua agitação e intimou-os a abandonar a cidade. Münzer separou-se então de seu colega e dirigiu-se a Nuremberg, para publicar uma brochura contra Lutero. Permaneceu algum tempo na fronteira russo-alemã, mantendo-se sempre em estreito contacto com os anabatistas e observando cuidadosamente os primeiros sintomas da insurreição geral dos camponeses. No cantão de Hegau, na proximidade da fronteira Suíça, os camponeses já se haviam sublevado durante o verão de 1524. Münzer esteve ainda algum tempo na região, pregando a reforma agrária do Antigo Testamento (o ano jubilar). Quando verificou que a insurreição geral eslava prestes a estalar, dirigiu-se à região onde outrora fazia sua agitação, para se pôr à frente do movimento revolucionário da Turíngia e da região de Mansfeld.

7. A guerra dos camponeses

Em Março de 1525, o movimento revolucionário geral. De Allgau até Hartz, de Wasgau até a Boêmia os camponeses, assim como as camadas mais pobres da população das cidades entravam, em massa, na luta. Uns reclamavam a democracia e a reforma agrária; outros pediam a implantação do comunismo integral. Mas o núcleo principal do movimento estava na massa camponesa, cujo programa de reivindicações continha os doze artigos seguintes:

ARTIGO 1.° — Nosso desejo é, primeiramente, que, desde hoje, toda a comuna tenha o direito de escolher por si mesma seu pastor e de demiti-lo, se não for irrepreensível sua conduta.

O pastor, assim escolhido, deve pregar-nos com clareza o santo Evangelho, sem deturpá-lo, sem nenhuma adição humana, e nos fazer conhecer a verdadeira fé. Porque, se Deus nos dá razões para implorar a sua misericórdia, é porque ele quer incutir esta fé em nossos corações.

Se ele não nos conceder graça, nos seremos eternamente carne e sangue. (Deut. XVII. Êxodo XXXI, Deut. X, João. VI) coisas absolutamente inúteis, como o prova a Escritura. Será, com efeito, só pela verdade, que nos poderemos dirigir a Deus, e será pela sua misericórdia que poderemos obter a salvação. Eis porque nos é de primeira necessidade termos um pastor de acordo com o modelo traçado pela Escritura.

ARTIGO 2.° — Estamos, voluntariamente, dispostos a pagar o dízimo do grão, dízimo que o Antigo Testamento instituiu e que o Novo Testamento aboliu, contanto que nos seja pedido de maneira razoável, isto é, para Deus.

Parece-nos, pois, justo que este dízimo seja entregue ao pastor que anuncia claramente a palavra divina, e, para esse fim, os prepostos de nossa comuna serão encarregados de o receber e de remeter parte dele ao pastor, que o utilizará unicamente para o seu sustento e para o sustento de sua família.

Do restante, parte será distribuída entre os pobres e os necessitados que estão na cidade, de acordo com a respectiva situação, sendo a repartição feita por um de nossos prepostos.

Se, porventura, uma ou várias comunas, premidas pela necessidade, venderem esse dízimo, o comprador honesto que exibir seus documentos de compra nada perderá, e nós entraremos em entendimento com ele, amigavelmente e de acordo com a justiça e a lei cristãs. Mas o que não puder exibir esses documentos provando a compra ou que, seja em sua pessoa, seja na de seus antepassados, se tenha violenta e sub-repticiamente apropriado desse direito, será por nós despojado do que possue, uma vez que o dízimo só é autorizado pela Escritura, para o sustento dos pastores e dos necessitados.

No que diz respeito ao pequeno dízimo, nós não querem em hipótese alguma pagá-lo Porque, na verdade, Deus criou o gado para que os homens dele se utilizassem livremente. Por isso mesmo, consideramos o pequeno dízimo coisa injusta, inventada pelos homens, e, de hoje em diante, declaramos que não estamos mais dispostos a pagá-lo.

ARTIGO 3.° — Temos sido, até o presente, considerados servos, dignos de piedade. Mas Cristo nos salvou e redimiu pelo sangue precioso, que ele verteu por todos, tanto pelo pastor como pelo grande senhor, sem qualquer exceção.

Nós nascemos livres, conforme ensina a Santa Escritura. Sejamos, pois, livres, não porque desejamos a liberdade simplesmente e repudiamos a autoridade de qualquer espécie. Não; Deus não nos ensina isso.

Queremos ser livres porque almejamos viver de acordo com a lei divina, que nos ensina que devemos obedecer à autoridade, e que nos ensina também humildade em face de nossos semelhantes. Estamos dispostos a obedecer voluntariamente à autoridade que tivermos escolhido e estabelecido, aquela que Deus nos deu.

Finalmente, estamos certos do que nos será concedida, espontaneamente, a condição de homens livres, digna de bons e verdadeiros cristãos; caso contrário, queremos que nos mostrem, na Escritura, o que nós somos.

ARTIGO 4.° — Até os dias atuais, esteve em vigor o costume de impedir que o camponês livremente dispusesse da caça, das aves, dos peixes. Isso nos parece injusto, pouco fraternal, egoísta e em oposição à Palavra de Deus.

Em certos lugares, os senhores vão ao ponto de não quererem reconhecer os prejuízos que nos são causados pelo seu gado. E nós temos sido obrigados a suportar que os campos que Deus faz frutificar para o bem do homem sejam devastados por animais privados de raciocínio, o que é o cúmulo da loucura e da tirania humanas, porque, quando Deus, o Senhor, criou o homem, deu-lhe todo o poder sobre os animais da terra, sobre as aves do ar e os peixes das águas.

Os frutos também são o apanagio do homem, e todo pobre deve ter o direito de comê-los quando deles necessitar para saciar a fome.

Se um individuo possuir uma propriedade e puder provar, por meio de papéis, que foi adquirida à custa do suor de seu rosto, de modo algum queremos que esse individuo, pela violência, seja privado do que tem. Mas quanto àquele que não poder provar, de maneira satisfatória, seu direito à posse, achamos que os seus bens deverão ser apreendidos pela comuna e postos à disposição de todos.

ARTIGO 5.° — Temos agora, em quinto lugar, de protestar contra a questão da lenha. De fato, nossos senhores apossaram-se de todos os bosques. E, quando o camponês precisa de lenha, não tem outro remédio senão comprá-la ao preço de dois florins.

Se os senhores, eclesiásticos ou não, possuem florestas sem nunca as terem comprado, nós desejamos que as ditas florestas sejam entregues à comunidade, a fim de que todos os seus membros possam apanhar a quantidade de lenha capaz de suprir as suas necessidades.

Da mesma forma, se qualquer individuo precisar de madeira para construir uma casa, poderá apanhá-la sem pagar coisa alguma a ninguém, devendo apenas prevenir os encarregados indicados pela comuna para zelar pelas suas florestas.

Se as florestas tiverem sido compradas, a comuna deverá entrar em acordo amigável, fraternal e cristão com os seus donos. Se as florestas compradas em determinada época tiverem sido mais tarde revendidas, tudo deve ser arranjado, sempre em harmonia com os princípios do amor fraternal e com os preceitos estabelecidos na Santa Escritura.

ARTIGO 6.° — Nós queremos, em sexto lugar, protestar contra a servidão que cresce e aumenta de dia para dia e pedimos que nos tratem com mais condescendência, e não nos oprimam com tanta crueldade. Mas é preciso notar-se que desejamos ainda sejam distribuídos com equidade os nossos serviços, porque nós fazemos — segundo exemplo dos nossos país, — o que foi estabelecido pela Palavra de Deus.

ARTIGO 7.° — Declaramos, em sétimo lugar, que, a partir deste momento, não queremos mais que os senhores nos sobrecarreguem de trabalho. Quando eles alugam alguma coisa pertencente aos camponeses, estes devem continuar na posse dessa coisa uma vez terminado o contrato estabelecido. O senhor, por sua vez, não lhe deve mais reclamar nenhum serviço gratuito ou qualquer outra coisa, a fim de que, livre de cargas que outrora lhe pesavam, o camponês possa aproveitar-se do que possui.

Mas se, por outro lado, o senhor necessitar de algum serviço, o camponês, depois de receber razoável indenização, deverá prestar-lhe tal serviço e ser-lhe fiel, contanto que isso não o prejudique.

ARTIGO 8.° — Nós — e particularmente, dentre nós, os que possuem bens — nos queixamos pelo fato desses bens não poderem suportar os impostos que sobre eles pesam, impostos que são a causa da ruína dos camponeses.

Por isso, queremos que os senhores venham examinar nossos bens, estabelecendo os impostos que equitativamente haveremos de pagar, a fim de que os camponeses não trabalhem mais em vão, porque todo operário é digno de seu salário.

ARTIGO 9.° — Temos ainda um nono motivo de queixa no grande prejuízo que nos é causado pela contínua criação de leis: não somos mais punidos em virtude de faltas ou circunstâncias presentes. Os castigos que nos impõem são devidos ao ódio, ou para favorecer alguém. Achamos, por isso, que, doravante, não mais deveremos ser punidos arbitrariamente, mas de acordo com o direito escrito e com as circunstâncias das nossas faltas.

ARTIGO 10.° — Protestamos, em décimo lugar, contra o fato de certos homens se terem apropriado dos prados e dos campos pertencentes à comunidade. Queremos que esses campos e prados voltem a ser, novamente, bens da comunidade, salvo quando legitimamente adquiridos.

Se a compra não tiver sido feita legalmente, as duas partes deverão entrar em entendimento amigável conforme as circunstâncias.

ARTIGO 11.° — Queremos que a praxe chamada “caso de morte” seja definitivamente prescrita.

Não mais podemos suportar e tolerar que, despudoradamente, se privem as viúvas e os órfãos do que lhes pertence, o que frequentemente acontece.

Na realidade, aqueles que deveriam ser os protetores, são os que os despojam em tudo. Mesmo quando esses desgraçados não têm mais do que bens de valor insignificante, e por menor que seja tal valor, sempre são despojados do que possuem. Deus não pode querer que semelhante costume continue a existir. Precisa ser definitivamente abolido. Quanto a nós, declaramos que, de hoje em diante, não alienaremos a menor parcela de nossos bens.

CONCLUSÃO — Este décimo segundo artigo encerra a nossa conclusão. Se um ou vários dos itens que acima foram expostos não estiverem em conformidade com a Palavra de Deus, nós prontamente renunciaremos a essas disposições, contanto que nos possamos certificar do erro por meio da Escritura.”

Os doze artigos dos camponeses alemães estão redigidos com muita habilidade. São, ao mesmo tempo, razoáveis, moderados, respeitosos e intransigentes. Lendo-se esses artigos, verifica-se que os camponeses, que neles expressaram as suas reivindicações, têm a consciência da própria dignidade, dos seus direitos e dos seus deveres. Reclamam uma administração democrática da Igreja, a supressão de todas as arbitrariedades praticadas pelo clero, assim como de todas as taxas não baseadas nos textos bíblicos. Ao mesmo tempo, reivindicam a abolição da servidão, o restabelecimento dos direitos da comunidade sobre as águas e as florestas e a redução dos tributos feudais pagos como em outras épocas. Reclamam, além disso, um imposto rural moderado, a supressão de todas as punições arbitrárias e o estabelecimento de uma jurisprudência imparcial. Por último, reivindicam todas as terras que a nobreza lhes havia injustamente arrebatado, propondo que tais domínios voltem a ser, novamente, bens da comunidade.

A guerra dos camponeses alemães desenrolou-se do mesmo modo que a dos ingleses. No começo, os camponeses obtiveram importantes vitórias. Mas, em seguida deixaram-se iludir pelas negociações que foram entaboladas, por meio das quais os príncipes não procuravam outra coisa que ganhar tempo, a fim de poderem reunir suas tropas e passar à contraofensiva. Aliás, a ausência absoluta de organização, a falta de unidade e de direção eram fatores que anulavam toda e qualquer possibilidade de vitória dos camponeses. Seus diferentes grupos foram sucessivamente vencidos pelos nobres. No outono de 1525, o movimento já fora esmagado. É preciso notar que Lutero se passara, com armas e bagagens, para o lado dos príncipes e das autoridades, isto é, para o lado das forças que lutavam contra os camponeses insurretos. Lutero só possuía uma pequena parte do sentimento paulino. E esta parte não era, certamente, a melhor. No coração de Lutero não palpitava o sentimento exaltado de amor ao próximo. Lutero tão pouco possuía a elevada consciência moral do apóstolo Paulo ou de qualquer dos grandes místicos alemães.

A repressão foi atroz. “Depois de vencidos pela força das armas, — escreve um escritor patriota — camponeses foram castigados, não com varas, mas com escorpiões”. Aos horrores da insurreição sucedeu uma reação dez vezes mais horrível. Cerca de 100.000 camponeses foram trucidados. Os dirigentes do movimento rebelde, que não conseguiram fugir antes de serem executados, sofreram selvagens torturas. Grande número de camponeses tiveram de suportar o jugo da servidão. Eis porque o povo se tornou cético. Eis porque os camponeses saxões ridicularizavam Lutero e diziam: “E esse imundo ainda tem coragem de nos falar em Deus!? Quem pode saber quem é Deus? Alguém poderá sequer afirmar que ele existe?”

8. Repressão do movimento anabatista

As classes dominantes vitoriosas nunca ficam a meio caminho no que diz respeito à repressão. Exploram a fundo os seus triunfos. E sua repressão contra os vencidos é tanto maior quanto maior foi o perigo que as ameaçou. Quando a revolta camponesa já estava esmagada, as classes dominantes desencadearam uma tremenda campanha de extermínio contra o movimento anabatista. Milhares de anabatistas-comunistas foram queimados, decapitados ou afogados. Na Áustria, na Alemanha, na Suíça, na Holanda, os anabatistas, de 1527 a 1536, tiveram a mesma sorte que os cátaros da Idade Média. Nem os anabatistas pacifistas foram poupados. Destes últimos, milhares e milhares foram atirados ao fundo de horríveis masmorras, expulsos do país, executados, após lhes confiscarem os bens. Mas eles caminhavam serenos para a morte. Em parte alguma resistiram, a não ser em Münster, onde os anabatistas holandeses e alemães fizeram uma tentativa desesperada, procurando defender as suas vidas, de armas na mão.

Assim como a maior parle das cidades alemãs, no século XV e no século XVI, em Münster também as camadas mais pobres da população se achavam em luta contra o patriciado e o clero. A insurreição camponesa também ali irrompeu, mas o Conselho e o clero local conseguiram apaziguá-la mediante algumas concessões. O arcebispo de Colônia interveio e restabeleceu o antigo estado de coisas, o que fez com que o movimento anticatólico se reforçasse. Em 1531, Münster converteu-se ao evangelismo. O movimento era dirigido pelo capelão Bernt Rothmann, um ideólogo da escola de Melanchton. Todos os elementos descontentes da população — artesãos, operários, etc..., — gruparam-se em torno dele. Esse estado de agitação social e religiosa recrudesceu em vista do afluxo de grande número de anabatistas holandeses, entre os quais se encontravam o padeiro João Mathys, de Harlem, e o alfaiate João Bockelson, de Leyden, notáveis sobretudo pela eloquência e pela energia. Entre os anabatistas indígenas, o que mais se salientou foi o negociante de tecidos, Bernardo Knipperdolling. Logo que o poder passou às mãos dos anabatistas, o bispo de Münster mobilizou suas tropas contra eles e declarou-lhes guerra, em Fevereiro de 1534. Inicialmente, os anabatistas alcançaram algumas vitórias. Em muitos pontos, repeliram com vantagem os ataques das tropas do bispo e, em outros, conseguiram persuadi-las a voltar. Mas o bispo não desanimou diante dos primeiros insucessos e resolveu sitiar a cidade. Chegou a ocasião de eleger um novo Conselho da cidade. Os anabatistas venceram nas eleições e conquistaram a administração. Era preciso, daí por diante, guerrear e aplicar, na medida do possível, os princípios anabatistas. Só possuímos, nesse particular, os informes fornecidos pelos adversários do anabatismo. Nisso também, os anabatistas compartilharam a sorte dos demais hereges da Idade Média. Tudo o que deles soubemos provem dos adversários.

Tendo conseguido o poder depois das eleições, os chefes João Mathys, João de Leyde, Knipperdolling e Krechting assumiram a direção politica da cidade. Para melhor defender-se a cidade, sitiada pelas tropas do bispo, de uma eventual traição dos elementos anti-anabatistas, os dirigentes do movimento aprisionaram os indivíduos mais suspeitos. O objetivo dessa medida era, ao mesmo tempo, aniquilar o inimigo interior e economizar víveres. Os adversários do anabatismo, que tentaram entrar em entendimentos com o inimigo, foram passados pelas armas. É evidente que, na situação em que se encontravam, os rebeldes não poderiam de forma alguma instaurar um verdadeiro regime comunista. Uma das primeiras medidas adotadas foi recolher, voluntária ou obrigatoriamente, todo o ouro existente no Tesouro público. Apoiando-se nos textos do Evangelho, os chefes rebeldes conseguiram fazer com que os negociantes renunciassem ao comércio. Procuraram, entretanto, de todos os modos, incentivar a agricultura. Toda a população passou à ser mantida pelos fundos públicos. Instituíram-se, também, as refeições em comum, por ocasião das quais se procedia à leitura de trechos da Bíblia.

A vida em Münster devia ser organizada de acordo com os princípios do Antigo e do Novo Testamento. A comunidade foi denominada a “Nova Israel”. O chefe da comunidade recebeu o título de “Rei”. O Conselho chamado os “Antigos das Doze Tribos” e Münster a Nova Jerusalém”. Os dirigentes anabatistas acreditavam que o reinado de Deus seria por eles instaurado na terra. Baseando-se no direito do Antigo Testamento, instituíram a poligamia. Os homens podiam desposar várias mulheres. É fácil calcular o efeito que isso causou aos adversários do anabatismo, que consideravam a introdução da poligamia como a mais flagrante prova da imoralidade dos anabatistas, como o melhor argumento para indispô-los com a opinião pública.

Durante cerca de quinze meses, os sitiados resistiram valentemente aos ataques de um exército numericamente bem superior. Enquanto isso, os anabatistas holandeses agrupavam suas forças para socorrer Münster. Mas as autoridades neerlandesas reprimiram violentamente todas as tentativas dos que desejavam auxiliar a cidade sitiada. Afinal, sem homens e sem víveres, traída no interior e sofrendo a pressão exterior das tropas do arcebispo, Münster capitulou nos últimos dias de Julho de 1535. João de Leyd, Knipperdolling e Krechting caíram nas mãos dos vencedores e foram executados, a 22 de Janeiro de 1536, depois de terem sido submetidos a espantosos suplícios.

9. Epílogo

Com a queda de Münster, terminou a primeira revolução alemã. Os senhores triunfaram em toda a linha. A Alemanha entrou num período de paralisação e mesmo de regressão econômica, política, social, intelectual. As flores da cultura citadina murcharam. O desenvolvimento do capitalismo deteve-se. Os camponeses foram submetidos à servidão e, em alguns lugares, completamente despojados das suas terras. Fixou-se a Reforma. Vencida em muitos pontos, foi uma das causas da catástrofe da guerra dos Trinta Anos, da qual a Alemanha saiu esgotada, humilhada e esfacelada. Mas a ordem triunfara. A revolução estava derrotada e a energia do povo alemão desfeita por muito tempo. Toda a miséria da Alemanha, de 1850 até os nossos dias, foi a consequência da vitória dos príncipes e da nobreza sobre a primeira revolução alemã. O país retrocedeu vários séculos na senda do progresso. E, quando despertou, em 1750, aproximadamente, seu desenvolvimento já não podia dar senão frutos extemporâneos. De fato, Winkelmann e Goethe foram os únicos representantes da Renascença alemã, do mesmo modo que a igreja de São Paulo, em Frankfurt, foi a única representante da revolução burguesa alemã, e que somente em Bismarck está representada a unidade alemã, assim como em Guilherme II e Bülow se resume toda a sua política externa. Num século apenas, a Alemanha viu-se obrigada a recuperar um atraso de vários séculos. Mas tudo chegava tarde demais. O sol já não podia amadurecer os frutos de tão tardio desenvolvimento. Mas, que importa? A ordem havia triunfado!


Inclusão: 26/09/2021