História do Socialismo e das Lutas Sociais
Terceira Parte: As Lutas Sociais nos Tempos Modernos
(Do século XIV ao XVIII e de 1740 a 1850)

Max Beer


Capítulo XII - As transformações econômicas em França


1. Da tutela à liberdade

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A partir do começo do século XVIII, em França, os governos que se sucederam no poder procuraram desenvolver a vida industrial do país, fundando, para esse fim, grande número de manufaturas. Partindo de organismos estatais, essas iniciativas tinham, necessariamente, caráter burocrático. Os organizadores de empresas industriais foram, na verdade, imensamente auxiliados pelo governo. Mas toda a sua atividade estava sujeita a uma regulamentação rigorosa. Aliás, as manufaturas fundadas no reinado de Henrique IV, dentro de pouco tempo faliram. Só no último quarto do século XVIII, graças ao notável impulso de João Batista Colbert, ressuscitaram as manufaturas, para novamente desaparecerem no decorrer das desastrosas guerras de Luís XIV.

Em meados do século XVIII, aproximadamente, manifestaram-se na economia novos sintomas de atividade. Constituíram-se rapidamente vários centros industriais que em pouco tempo adquiriram importância considerável na vida do país: as forjas de Leste, Firminy, Saint-Etienne, o Creusot. A indústria têxtil desenvolveu-se em Lião, Roubaix e em Abbeville. Somente as manufaturas de Lião ocupavam 48.000 trabalhadores. Nas de Carcassonne trabalhavam nada menos de 30.000. Novos centros industriais surgiram em Paris, no Havre, em Ruão e em Limoges. Nas cidades industriais e comerciais, bairros inteiros foram radicalmente transformados. Por volta de 1760, o valor da produção industrial francesa era avaliado em 930 milhões de francos. Os naturalistas, os químicos, os físicos, os escritores, começaram a interessar-se pelas questões relacionadas com a indústria. Despertou o espírito de invenção.

A burguesia e os membros das profissões liberais a ela ligados — numa palavra, o Terceiro Estado — adquiriram consciência cada vez mais nítida de seus interesses e começaram a reclamar contra o peso intolerável da tutela do Estado. As indústrias reclamavam inteira liberdade de ação. A ideia de que a intromissão do Estado na vida econômica só era prejudicial difundiu-se cada vez mais. O progresso das cidades mostrou à população rural como a agricultura lhe seria vantajosa se as terras pertencessem às próprias massas laboriosas dos campos e se essas não estivessem sujeitas às obrigações impostas pela nobreza e pelo clero. As cidades exigiam mais liberdade e o poder político. Os camponeses reclamavam a supressão das obrigações feudais e a confiscação, em proveito do povo, dos bens do clero e da nobreza.

Estas modificações políticas exerceram profunda influência na ciência econômica. Mas seus porta-vozes ou viviam na corte, como Francisco Quesnay, ou pertenciam a nobreza, como o Marquês de Mirabeau, ou, como Mercier de la Rivière, eram altos funcionários; além disso, ou estavam de antemão inclinados a favor da agricultura ou não se achavam diretamente ligados à vida industrial. Eis por que a doutrina econômica que elaboraram, sobrestimava excessivamente a importância da agricultura e subestimava a da indústria. Assim mesmo contribuiu bastante para a derrocada do feudalismo e para a vitória do capitalismo(1). Era uma doutrina notável, tão cheia de contradições como a própria França daquela época.

2. Os fisiocratas e a liberdade econômica

A doutrina fisiocrática, elaborada em França no último quarto do século XVIII, é uma doutrina puramente burguesa. Iremos, por isso, mencioná-la aqui apenas na proporção da influência que exerceu sobre a vida econômica da França e sobre a Revolução Francesa.

Essa doutrina encerra as duas seguintes ideias fundamentais: 1.° há uma ordem natural da vida econômica; 2.° a cultura do solo, da matéria natural (em grego, physis, de onde se deriva o termo physiocrata) é a única cultura produtiva; em outras palavras: só essa cultura produz um valor superior ao valor empregado no trabalho, isto é, só a agricultura cria um excedente (o produto líquido) e é deste excedente, ou mais valia, que vive toda a sociedade.

Examinaremos esses dois pontos mais de perto.

I — Na opinião dos fisiocratas, há uma ordem natural da sociedade que rege a vida econômica e que consequentemente, torna supérflua qualquer intervenção do Estado. As bases dessa ordem natural são: l.° a propriedade; 2.° a segurança; 3.° a liberdade. Os fisiocratas consideravam essas três bases do direito natural como inalienáveis. Vê-se, pois, que a ordem natural dos fisiocratas nada tem de comum com o velho direito natural em que se apoiaram, em todos os tempos, os comunistas e os críticos sociais. Os fisiocratas, como defensores que eram da ordem burguesa, consideravam, portanto, a propriedade privada como o mais natural dos direitos, como um direito que, unido à liberdade econômica, poderia gerar o bem-estar dos povos. A melhor política para eles só poderia ser: Laissez faire, laissez passer!, (Deixemos correr o barco!). Em outras: palavras: “Facultemos aos proprietários, aos patrões e aos comerciantes a maior liberdade de ação! O interesse do indivíduo germinará do interesse geral. A vida econômica obedece às suas próprias leis. Não necessita, pois, da intervenção do Estado!”

II — O trabalho da terra é o único trabalho produtivo. O comércio e a indústria, pelo contrário, são improdutivos. Consiste-lhes a ação apenas na transformação ou na troca de produtos agrícolas. Há, na sociedade, três classes principais: 1.° a classe produtiva (os agricultores); 2.° a classe dominante (os grandes proprietários de terras e os altos funcionários do Estado); e, 3.° a classe estéril (ou classe dos trabalhadores improdutivos: (comerciantes, operários, patrões em geral, membros das profissões liberais, empregados domésticos, etc.). Como só a agricultura é produtiva, todo o peso dos impostos deve ser por ela suportado. As outras classes devem ser completamente isentas do pagamento de impostos.

Percebe-se facilmente que, apesar de conceder excessiva importância à agricultura e do respeito que têm pela monarquia absoluta, os fisiocratas não faziam senão a defesa dos interesses da burguesia, cuja consciência, naquele momento, despertava e se preparava para a conquista do poder político. De fato, as reivindicações dos fisiocratas são as reivindicações da burguesia: defesa da propriedade privada, segurança, liberdade individual, liberdade comercial e industrial. Eis em que consiste verdadeiramente o mérito dos fisiocratas, que tão profunda influência exerceram sobre Adam Smith. Eles foram chamados “os economistas”. As contradições que a sua doutrina encerra iam ser, mais tarde, resolvidas pela Revolução Francesa. A burguesia revolucionária derrubou o absolutismo e o domínio da aristocracia agrária, apelando para as ideias de J. J. Rousseau. A burguesia não aproveitou da teoria do direito natural mais que os conceitos da liberdade e da igualdade política, os quais opôs ao domínio da monarquia e aos privilégios da nobreza. Da teoria fisiocrática da ordem natural, ela não se valeu senão das ideias de liberdade econômica e de inviolabilidade da propriedade privada, para opô-la às reivindicações comunistas.


Notas de rodapé:

(1) Faremos aqui a mesma observação que já fizemos precedentemente a propósito da explicação que Max Beer nos dá quanto à forma religiosa em que foram elaboradas as teorias e as reinvindicações sociais da Idade Media. Na nossa opinião, é errado querer explicar uma doutrina ou um movimento qualquer pela personalidade de seus autores. A verdadeira explicação deve ser encontrada nas condições sociais da época e nos problemas que elas originam na consciência dos homens dessa época. A doutrina fisiocrática julgava tão importantes as atividades agrícolas não porque — como Max Beer sustenta — os fisiocratas estivessem diretamente ligados à terra; a importância que as atividades agrícolas têm para a doutrina fisiocrata explica-se pelo fato da França, na época, apesar do apareceimento das manufaturas, ter a sua economia assentada em baes quase que exclusivamente agrícolas. (Nota de Marcel Ollivier). (retornar ao texto)

Inclusão: 05/10/2021