História do Socialismo e das Lutas Sociais
Terceira Parte: As Lutas Sociais nos Tempos Modernos
(Do século XIV ao XVIII e de 1740 a 1850)

Max Beer


Capítulo XIII - A revolução francesa


1. As classes e os conflitos constitucionais

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As longas e desastrosas guerras que Luís XIV e Luís XV sustentaram contra a Inglaterra, a Áustria e a Prússia aumentaram consideravelmente a dívida pública. E o peso dessa dívida tornou-se ainda mais insuportável porque o esbanjamento da Corte, o regime das favoritas e a má administração financeira haviam causado um enorme desequilíbrio orçamentário e uma alta sempre crescente dos impostos. O deficit aumentou consideravelmente. Assim, em dado momento, verificou-se que o orçamento não poderia ser equilibrado sem o auxílio da burguesia. Não vendo outra saída, Luis XVI, o herdeiro dessa miséria financeira, resolveu, em 1789, convocar os Estados Gerais. No dia 5 de Maio do mesmo ano os Estados Gerais reuniam-se em Versalhes. Três semanas depois, seus representantes já eram senhores da situação. Os Estados Gerais foram por eles transformados numa Assembleia Nacional, que recebeu a incumbência de elaborar a Constituição que a França iria receber, isto é, de formular os princípios da nova relação de forças que se estabelecera no seio da nação.

A Revolução começara. A velha ordem de coisas foi transformada. As massas entraram em movimento, assaltaram a Bastilha e obrigaram a Assembleia a transferir-se para Paris. Todas as teorias elaboradas a partir de 1740 passaram a desempenhar determinado papel na luta que principiava.

Durante dois anos, a Assembleia Nacional discutiu os artigos da Constituição que ia ser promulgada. Nesse intervalo, o país passou por uma remodelação completa. Os bens da Igreja foram confiscados. Entrou a circular uma nova qualidade de papel-moeda, os assinados. Vieram a cena, então, os aproveitadores da Revolução, a fazer negociatas com terras e valores. Enquanto as teorias revolucionárias empolgavam as multidões, os especuladores enchiam os bolsos. A Constituição de 1791 reflete nitidamente esse estado de coisas. Logo de início, sua declaração de princípios afirma que todos os homens são livres e iguais perante a lei, e que a sociedade tem o dever de fazer respeitar os direitos imprescindíveis do homem, tais como a liberdade, a propriedade e a segurança. Mas, logo depois dessa declaração de ordem geral, a Constituição divide os cidadãos em “ativos” e “passivos” e só aos primeiros concede o direito eleitoral, ao passo que estabelece um sistema de eleições indiretas, por meio do qual só os ricos poderiam ingressar no corpo legislativo. Por último, conserva a monarquia, reclamando-lhe apenas a constitucionalização.

É claro que uma Constituição dessa natureza não podia satisfazer às aspirações das classes oprimidas, que, empolgadas pelos ideais democráticos e republicanos, desejavam amplas reformas sociais.

Em Setembro de 1894, a Constituição foi aprovada. Assembleia Nacional deixou automaticamente de existir, sendo substituída pela Assembleia Legislativa. Os membros desta Assembleia eram homens de ideias mais progressistas. Havia, entre eles, diversos democratas e republicanos pequeno-burgueses. A pressão das massas populares, a alta crescente do custo da vida e as ameaças exteriores fizeram com que esses democratas e republicanos reclamassem uma política mais audaz. No dia 10 de Agosto de 1792, a causa da Revolução passou às mãos dos elementos extremistas de Paris. A família real foi encarcerada. A sublevação das massas populares marca o início da segunda fase, da fase mais importante da Revolução.

A partir desse momento, os elementos revolucionários dividiram-se em dois campos: de um lado as massas populares, os pequenos artesãos e os operários — de outra, a burguesia; de um lado, os republicanos da esquerda, os partidários das reformas sociais e os revolucionários proletários — de outro, os republicanos moderados, os monarquistas constitucionais e os burgueses abastados. A crescente miséria fez, pouco a pouco, o problema social tornar-se a magna questão, sempre na ordem do dia.

Mas os dirigentes jacobinos republicanos de esquerda e os democratas desconheciam inteiramente a existência desse problema. Nos clubes, os artesãos e os operários discutiam planos de reformas sociais. A falta de gêneros alimentícios, a alta crescente do custo da vida, o desperdício da Fazenda nacional, demonstraram a necessidade de uma reforma agrária que fixasse os preços dos gêneros alimentícios e que aplicasse medidas tendentes a instauração de uma sociedade comunista.

A divisão das forças revolucionárias estimulou a contrarrevolução e seus aliados do exterior. A Assembleia Legislativa não soube lutar com a energia necessária contra os inimigos da Revolução. Foi, por isso dissolvida, em Setembro de 1792, e substituída por uma Convenção Nacional eleita por voto direto por todos os franceses adultos.

Foi proclamada a República, o rei foi condenado e executado. A Convenção começou imediatamente a lutar contra a reação europeia coligada, mas repeliu todos os ataques dos socialistas contra a propriedade privada. A 18 de Março de 1793, a Convenção resolveu punir com a pena capital os promotores de agitações tendentes à subversão das relações de propriedade em vigor. No dia 31 de Maio de 1793, a população de Paris sublevou-se. A 10 de Agosto desse mesmo ano, a Convenção aprovou uma nova Constituição de feição democrática, a qual era a expressão perfeita da democracia formal. Consagrava, porém, o princípio da inviolabilidade da propriedade privada.

Robespierre, compreendendo claramente as aspirações das massas populares, elaborou um projeto de Constituição, que continha um artigo relativo a propriedade privada tão habilmente redigido, que poderia ser aceito até pelos socialistas. O artigo dizia: “A propriedade é o direito que se outorga a todo cidadão de gozar as vantagens de bens que a lei assegurar”. Robespierre, no entanto, nada fez para que esse artigo fosse aprovado. Aliás, a Constituição de 1793 nunca iria entrar em vigor (explicaremos porque no capítulo seguinte). Um governo revolucionário armado, de poderes absolutos, dirigiu os negócios do país, de Outubro de 1793 a Julho de 1794. Organizou vários exércitos para combater a reação europeia, fixou preços máximos para os produtos alimentícios, reorganizou o ensino superior, introduziu o sistema métrico, mas combateu vigorosamente a oposição republicana de direita representada por Danton, e a oposição de esquerda, representada por Hébert. Robespierre e seus partidários, diante da pressão que sofriam por todos os lados, recorreram ao terror, que foi sobretudo aplicado conta os elementos revolucionários. Na sua limitada visão de democrata pequeno-burguês, Robespierre cavou o próprio túmulo e o túmulo da Revolução, quando enviou à guilhotina os elementos mais enérgicos e mais revolucionários. Quando sua nefasta obra terminou, ele próprio foi derrubado do poder, em Julho de 1794 e decapitado. A ditadura pequeno-burguesa foi substituída pela ditadura do Diretório, que preparou, conscientemente, a vitória da contrarrevolução: desarmou os elementos revolucionários de Paris, fez votar, em 1795, uma Constituição na base do regime censitário, e favoreceu a delapidação dos bens públicos e as manobras de Bolsa.

O período compreendido entre 1792 e 1795 é importante por três razões: 1.° porque detinha o poder uma ditadura revolucionária; 2.° porque nele surgiu uma oposição partidária de vastas reformas sociais; 3.° porque se desenvolveram os germes da insurreição, que Babeuf, mais tarde, iria promover.

2. A ditadura revolucionária

Há pouco, dissemos que a Constituição de 1793 não chegou a vigorar. Realmente, essa Constituição durou até a conclusão da paz. Em seu lugar, foi implantada uma ditadura. No seu livro sobre a Conspiração de Babeuf, Buonarroti explica-nos a razão dessa medida. Buonarroti era um socialista democrata, amigo dos jacobinos dirigentes, um homem de grande elevação intelectual e de imensa nobreza moral. No seu livro, ele afirma que, entre os autores da Constituição democrática, muitos pensavam que as reformas políticas, por mais importantes que aparentemente fossem, nunca poderiam fazer a felicidade de um povo, a não ser quando precedidas de transformações econômicas e morais e pensavam, também, que uma democracia formal só poderia ser útil aos ricos.

“Se as coisas permanecerem no estado em que atualmente se encontram, a mais livre forma política só poderá ser aproveitada pelos homens que não precisam trabalhar. Enquanto as massas populares forem obrigadas, pela miséria, a se sujeitarem a trabalhos penosos e ininterruptos, não poderão interessar-se pelas questões públicas porque, até quando a existência das massas trabalhadoras depender dos ricos, estes estarão em condições de impor decisões que os governos mistificadores facilmente obtêm do povo”. É preciso, aliás, dizer que Robespierre e seus partidários nem por sombras pensavam em instaurar uma sociedade nos moldes desejados por Buonarroti. Criam, entretanto, conseguir melhorar os costumes por meio de reformas e atenuar o egoismo. “Queremos — dizia Robespierre — substituir o egoismo pela moral, a honra aristocrática pelo direito, a tirania da moda pelo reino da razão, a vaidade pela grandeza de alma”. Robespierre julgava poder alcançar essa transformação por meio de discursos, de preces religiosas e de medidas de ordem policial. Enquanto o resultado visado não fosse atingido, a democracia não deveria ser instaurada. A ditadura não era, portanto, uma negação dos princípios democráticos; pelo contrário, tinha como finalidade preparar o terreno para a democracia, colocando os homens em condições de trabalhar para o bem geral. Robespierre não compreendia que é impossível criar um estado moral dessa natureza apenas por meio da propaganda ideológica. Acreditava na onipotência da razão. Não sabia que as nossas ideias, sobretudo as das massas, são o resultado da influência do meio social. Não podia, por isso, compreender que a principal tarefa da ditadura devia ser, antes de mais nada, a realização de amplas reformas sociais. Robespierre, em vez disso mandou executar grande número de elementos revolucionários, unicamente para poder manter a ditadura. E a História vingou-se de sua incompreensão e de sua limitada visão pequeno-burguesa. Toda a ação de Robespierre, a partir dos primeiros meses de 1794, foi inconscientemente, contrarrevolucionária. Aliás, é fato incontestável que, até o presente, em todas as revoluções democráticas, o partido que ocupa o poder sempre destrói os elementos revolucionários, preparando, assim, o caminho para a contrarrevolução.

3. A Constituição de 1793 e a crítica social

Em 1793, quase todos os revolucionários partidários das reformas sociais já não podiam deixar de compreender claramente que aquela luta era o conflito entre ricos e pobres, entre possuidores e não possuidores. Buonarroti, que nessa época estava em contacto com os chefes da Revolução, diz a esse respeito o seguinte: “Tudo o que se passou em França depois da proclamação da República é, na minha opinião, a expressão do conflito existente entre os partidários da riqueza e dos privilégios, de um lado; e os amigos da igualdade, classe trabalhadora de outro”. Os ricos e os privilegiados eram evidentemente hostis à Constituição de 1793, porque adversários declarados da igualdade política. Todavia, entre os amigos da igualdade, não havia uma opinião unânime. É verdade que Babeuf, Buonarroti e seus amigos consideravam a Constituição democrática como insuficiente porque proclamava a inviolabilidade da propriedade. Mas, também, supunham a democracia política bom meio para se chegar à igualdade econômica. “Da democracia ao comunismo através da ditadura” — tal era a sua palavra de ordem. Eis porque apoiavam Robespierre e a Constituição democrática. Mas Jacques Roux e os hebertistas, que desejavam, antes de mais nada, transformar as relações de propriedade, e que punham o povo de sobreaviso contra as ilusões, as manobras e as mistificações dos democratas — inclusive Robespierre, Saint-Just, etc., – não eram da mesma opinião. Atacavam a Constituição, declarando-a contrária aos interesses do povo, porque não impedia a ação dos aproveitadores da guerra, dos especuladores e dos açambarcadores. Jacques Roux dizia:

“Quando uma classe pode esfomear outra classe; quando o rico, por meio do monopólio, tem direito de vida e de morte sobre o pobre, a liberdade é apenas um fantasma. A República não é também senão um fantasma quando a contrarrevolução provoca a alta crescente dos preços dos gêneros alimentícios, que três quartas partes dos cidadãos não podem pagar sem verter lágrimas. Não será possível conquistar os sans-culotes para a Revolução e para a causa da Constituição enquanto a atividade dos açambarcadores não for completamente destruída. A guerra interna dos ricos contra os pobres é muito mais temível que a guerra do estrangeiro contra a França... Os burgueses, de quatro anos para cá, enriqueceram com a Revolução. Pior que a nobreza é a nova nobreza comercial que nos esmaga, porque os preços sobem constantemente, sem que se possa prever quando deixarão de subir. É mais preciosas a propriedade dos açambarcadores que a vida dos homens?”

Estas palavras de Jacques Roux exprimem, é verdade, a indignação profunda de um amigo do povo absolutamente sincero, de um comunista corajoso. Mas não era mais justa a atitude de Buonarroti? Não seria preferível que todos os elementos revolucionários formassem uma frente única para apoiar Robespierre, mostrando ao mesmo tempo às massas a necessidade de uma transformação social completa? Robespierre necessitava do apoio das massas para lutar contra os girondinos. Se todos os elementos revolucionários o tivessem apoiado, em vez de combater, ele teria sido inevitavelmente obrigado a fazer-lhes concessões.

4. Lange e Dolivier

Durante os primeiros anos da Revolução Francesa, vivia em Lião, um escritor socialista que assinava seus artigos com o pseudônimo “L’Ange” (O Anjo). Michelet considera-o o pai intelectual de Fourier. Só meio século depois, conseguiu-se identificar esse misterioso “L’Ange”. Foi Jaurès quem descobriu sua verdadeira personalidade. Era um alemão chamado Lange, que nascera em Kehl, morara em Munster e a seguir se mudara para França, com a idade de dezesseis anos. Em 1793, trabalhava em Lião como funcionário municipal. Em 1790, publicou uma brochura, atacando e declarando contraditório o projeto de Constituição que, mais tarde, ia ser a Constituição de 1791. O projeto, dizia ele, começava afirmando os direitos gerais do homem, mas acabava por dividir os cidadãos em ativos e passivos. Essa Constituição chama “cidadãos ativos” os possuidores e “cidadãos passivos” os trabalhadores, apesar de serem estes os produtores da riqueza. A propriedade dos ricos é justamente o excedente que retiram dos operários (o que hoje nós chamamos a mais-valia). Lange apelava para o auxílio dos grandes amigos do povo e do rei. A seguir, dedicou-se à fundação de cooperativas agrícolas para combater a fome e liquidar os açambarcadores de produtos. É provável que esse plano tenha exercido influência profunda sobre Fourier, então empregado do comércio em Lião. Fourier não menciona em nenhum dos seus escritos, L’Ange, mas no prefácio do seu primeiro livro, Ateoria dos quatro movimentos e dos destinos sociais, reconhece ter tirado a ideia fundamental de seu trabalho do plano de uma cooperativa agrícola. As ideias principais de Lange podem ser assim resumidas: o valor total dos cereais produzidos num determinado país não pode ser maior que a renda total dos trabalhadores. Cada operário deve, em consequência, poder viver de seu salário. Como não é isso que acontece o mal está nos intermediários. Pela violência, nada será possível obter. O único remédio é estender no país uma ampla rede de cooperativas agrícolas. Cada grupo de 100 famílias formará uma cooperativa. Essas cooperativas deverão ser instituídas na base de ações, que o Estado emitirá por meio de empréstimos. As vantagens da produção cooperativa e das cooperativas de consumo serão tais, que os próprios ricos procurarão delas participar.

Mencionemos ainda um outro reformador, o padre Pierre Dolivier, que preconizava uma reforma agrária. As ideias que explana na parte crítica da sua obra são semelhantes às de Spence. Também preconiza a supressão da herança e a divisão das grandes propriedades rurais entre os camponeses. Seu livro, publicado em 1794, intitula-se: Ensaio sobre a justiça primitiva.


Inclusão: 06/10/2021