Trotskismos

Daniel Bensaïd


Capítulo III - Herança Sem Manual de Instruções


O combate pela IV Internacional constitui a ligação entre dois períodos históricos e entre duas gerações militantes. É indissociável de um julgamento político sobre a guerra anunciada. Experiência extrema, a guerra é, na verdade, a prova de verdade por excelência; um revelador impiedoso das políticas, das organizações, dos caracteres, uma linha de separação de águas.

Já em 1937, Trotsky considerava a guerra como provável num prazo de dois anos. Ele anunciava que a Alemanha hitleriana começaria a ter sucessos devastadores no Oeste sem conseguir uma vitória total contra a Inglaterra. Ele previa uma França parcelada, dominada, relançada para o lugar de potência de segundo grau. No dia seguinte a Munique, ele denunciava o compromisso podre, incapaz de salvar a paz, e previa a possibilidade de uma coligação entre Hitler e Estaline. Após o pacto MolotovRibbentrop, de Agosto de 1939, que mergulhará tantos militantes comunistas na angústia, ele não cessa de denunciar a ajuda económica prestada por Estaline a Hitler. Apesar da sua luta encarniçada contra a burocracia do Kremlin, continuava a definir-se como um defensor incondicional da Rússia Soviética e das relações sociais baseadas na propriedade estatizada. Pouco antes da sua morte, considerava inevitável a entrada dos Estados Unidos na guerra. Considerava, de facto, que o verdadeiro desfecho da guerra se jogava entre a Alemanha e os Estados Unidos pela liderança mundial, em detrimento da Inglaterra.

Assassinado em Agosto de 1940, Trotsky não conheceu nem os campos de extermínio, nem a solução final, nem o uso da bomba atómica, nem o nascimento da nova ordem mundial de Ialta e de Potsdam. Os seus últimos escritos deixam de constituir uma contribuição inacabada para os debates entre os seus herdeiros, em que as questões da guerra e as de caracterização da União Soviética estão intrincadamente misturadas. A luta de classes fornece às sociedades contemporâneas um fio de inteligibilidade de acontecimentos que à primeira vista pareceriam como um clamor insensato de ruído e de furor, de paixões e de delírios. Mas a história não se reduz a um confronto simples em torno de linhas da frente límpidas. Ela passa pela mediação dos Estados, das nações, dos territórios. É-nos necessário talhar um caminho nesta complexidade. Voltando à Segunda Guerra Mundial, Ernest Mandel, então dirigente belga da IV Internacional, analisa o entrelaçar entre uma guerra inter-imperialista (entre os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão), uma guerra defensiva de um Estado saído de uma revolução (a União Soviética contra a Alemanha), guerras de libertação nacional (a China contra o Japão), guerras de resistência contra a ocupação estrangeira (na Grécia, em Itália, na China). Nesse labirinto, as linhas da frente recortam-se e interpenetram-se. É tão difícil orientarmo-nos pelos pequenos núcleos militantes da IV Internacional (que tem menos de dois anos de existência), como são problemáticas as comunicações e os militantes experimentados foram dizimados pela dupla repressão fascista e estalinista. Para desbaratar a "indecência condescendente da posteridade" sem nos proibirmos um olhar crítico, precisamos de nos esforçar para compreender antes de julgar.

A Conferência de alarme.

Alguns dias após o "golpe de teatro" do pacto germano-soviético de Agosto de 1939, começa a agressão devastadora da Alemanha contra a Polónia. Por sua vez, Estaline apropria-se da parte oriental e dos países bálticos. Ele exige concessões territoriais à Finlândia e lança-se numa guerra de conquista que enfrenta uma resistência inesperada. A 11 de Maio de 1940, a Wehrmacht invade a Holanda, depois a Bélgica. A 22 de Junho, Pétain assina a capitulação da França.

Uma conferência extraordinária da IV Internacional reúne-se em Maio de 1940, nos Estados Unidos, quando a bandeira da cruz gamada flutua já sobre Viena, Praga, Varsóvia, Oslo, Copenhaga,
Haia, Bruxelas. Ela junta delegados dos Estados Unidos, da Alemanha, da Bélgica, do Canadá, do México, de Espanha, de Cuba, da Argentina, de Porto Rico, do Chile. O seu Manifesto é o último documento programático para o qual Trotsky contribuiu pessoalmente. Num artigo de Agosto de 1937, ele anunciava que

"a guerra pode rebentar já nos próximos 3 ou 4 anos": "Nós não indicamos este atraso, obviamente, senão em vista da orientação geral. Acontecimentos políticos podem acelerar ou atrasar o prazo, mas são inevitavelmente resultado da dinâmica económica e da dinâmica da corrida aos armamentos." Esta guerra anunciada será "totalitária". Nestas convulsões, "o mundo inteiro mudará de rosto". O mais provável é que "a dominação do planeta reverta para os Estados Unidos".

Trotsky defendia-se contra as ilusões que consistiam em conceber aquela guerra como uma cruzada das democracias contra as ditaduras. A não-intervenção em Espanha e a capitulação de Munique mostravam que não era nada disso. Tratar-se-ia de um conflito imperialista por "uma nova partilha do mundo". Após a "paz imperialista" de Munique, "a desproporção gritante entre o peso específico da França e da Inglaterra na economia mundial e as dimensões grandiosas das suas possessões coloniais, são tanto fonte dos conflitos mundiais como a avidez dos agressores fascistas. Ou melhor, trata-se de dois lados da mesma medalha". Isso não implicava qualquer neutralidade face às formas de dominação imperialista, segundo a qual não haveria diferença entre a ditadura fascista e a democracia parlamentar do ponto de vista das condições de luta e de organização do proletariado.
O pacto germano-soviético de Agosto de 1939 não constitui uma surpresa. Desde 1933 que Trotsky não cessava de afirmar que Estaline procurava um acordo com Hitler e que a sua viragem de 1935 para as frentes populares não era mais do que um último recurso.

A política do Kremlin não obedece a princípios, mas aos interesses da burocracia. Adapta-se pragmaticamente às relações de forças. A capitulação perante Hitler em Munique anunciava, portanto, a mudança de aliança que surpreende tanta gente. Em Março de 1939, Trotsky interpretaria os discursos de Estaline como "um elo na cadeia de uma nova política em formação" e como uma "oferta unilateral de alma e coração " à Alemanha nazi. Hitler e Estaline são "estrelas gémeas".

Numa entrevista de Setembro de 1939 ao Daily Herald de Londres, Trotsky declarava de novo a guerra mundial como inevitável. A revolução espanhola vitoriosa tinha sido a última oportunidade de lhe escapar. "A Segunda Guerra mundial começou", escreve ele então, pois os Estados Unidos não poderão manter-se à margem da luta pela hegemonia mundial. Mas a Alemanha chega tarde demais à grande partilha imperial: "a fúria militar que tomou conta do imperialismo alemão, acabará numa terrível catástrofe. Mas antes, muitas coisas se terão desenrolado na Europa." A conferência de alarme resume essas orientações: "A causa imediata da guerra actual é a rivalidade entre os impérios coloniais ricos e antigos (a Grã-Bretanha e a França) e os saqueadores imperialistas que chegaram atrasados (a Alemanha e a Itália)." Esta guerra "não é a nossa". À defesa nacional em nome do anti-fascismo, opõem-se a destruição revolucionária do Estado nacional, a palavra de ordem dos Estados Unidos Socialistas da Europa, o apelo à fraternização de classe entre trabalhadores sob o uniforme.

Um triunfo dos Aliados significaria o desmembramento da Alemanha e uma nova paz de Versailles, com os Estados Unidos reclamando o preço da sua vitória. A derrota da URSS significaria não apenas o derrube da burocracia totalitária, mas o afundar da primeira experiência de economia planificada e a transformação do país numa colónia. A variante menos provável de uma paz sem vencedores nem vencidos, significaria o caos internacional. O mundo capitalista já não teria então outra perspectiva do que uma agonia profunda.

A defesa da URSS.

A questão da guerra é constantemente misturada com a da caracterização e da defesa da União Soviética. No segundo congresso do POI (Partido Operário Internacionalista), Yvan Craipeau tinha defendido, em Novembro de 1937, que a burocracia soviética se tinha tornado uma classe à parte. Ele deduzia daí a necessidade de renunciar à defesa da URSS enquanto "Estado operário degenerado". Trotsky responde-lhe que não bastava definir a burocracia como uma classe, para evitar "ter de se analisar o lugar que a nova sociedade ocupa no desenvolvimento histórico da humanidade". Em caso de guerra entre o Japão e a Alemanha, de um lado, e a União Soviética, do outro, estaria em jogo "o destino da propriedade nacionalizada e da economia planificada". A vitória dos Estados imperialistas num tal conflito não significaria apenas o derrube da "nova classe" exploradora, mas a redução de toda a economia soviética para o nível de um capitalismo recuado e semi-colonial. Não se podia permanecer neutro perante tal desfecho, tal como perante uma guerra entre um país colonizado e uma potência colonial.

Trotsky não excluía "a possibilidade da restauração de uma nova classe abastada saída da burocracia", mas não se tratava ainda, a seus olhos, senão de "uma possibilidade histórica e não de um facto já consumado". Considerar o perigo social-patriótico como o perigo principal na URSS e exigir a escolha entre a " defesa incondicional da URSS" e o "derrotismo revolucionário" parecia- lhe, nesses circunstâncias, uma alternativa abstracta. A analogia entre a defesa da URSS enquanto Estado operário e o apoio a um país colonizado contra uma potência colonial manifesta, contudo, uma ambiguidade, já que o carácter "operário" do Estado não é determinante no assunto.

O debate sofre outra viragem à luz do pacto germano-soviético e da aproximação da guerra: como compreender o pacto assinado por Ribbentrop em Moscovo? Como julgar a política da URSS na Polónia, na Finlândia e nos países bálticos? Deve a própria URSS continuar a ser defendida militarmente, ou essa nova forma de união sagrada patriótica seria uma simples repetição de derivas chauvinistas do passado? E, se o deve ser, é com base na sua caracterização como Estado operário ou por critérios pragmáticos comparáveis aos que se aplicam numa guerra de libertação nacional entre opressores e oprimidos? Seria necessário, pelo contrário, opor-se à opressão russa da Polónia e da Finlândia, livrando-se de preconizar o derrotismo revolucionário na Rússia, como em França ou na Alemanha?

Os principais interlocutores pertencem de ora em diante à corrente do Socialist Workers Party, secção americana da IV Internacional, animada nomeadamente por Max Schachtman e James Burnham. São apoiados, no Comité Executivo Permanente sedeado nos Estados Unidos, pelo brasileiro Mário Pedrosa (a quem será atribuída, em 1980, o cartão honorífico n° 1 de membro do novo Partido dos Trabalhadores do Brasil), e pelo revolucionário de Trinidad C.L.R. James, autor de um livro de referência sobre Os Jacobinos Negros. Para Schachtman e Burnham, a URSS já não deve ser considerada, após a invasão da Finlândia, como um Estado operário degenerado, mas como um Estado imperialista. Para Trotsky, a luta pelo derrube revolucionário da ditadura burocrática e a defesa da URSS não eram incompatíveis, mas complementares.

Em Abril de 1940, a minoria conduzida por Schachtman e Burnham deixa o SWP para fundar o Workers Party. Um mês depois, Burnham põe-se em bicos de pés e redige o seu célebre ensaio sobre a era dos managers, largamente inspirada num livro, A Colectivização do Mundo, publicado em 1939, em França, por Bruno Rizzi: "Eu li o Managerial Revolution (Revolução corporativa) em 1945, conta Pierre Naville, e reconheci o essencial das ideias de Rizzi, sem a sua originalidade e a sua frescura." Para Rizzi, o fascismo, o estalinismo e o New Deal inscreviam-se na mesma categoria do "colectivismo burocrático", numa tendência para a burocratização do mundo. Esta nova ordem em formação seria progressista. A noção de colectivismo burocrático apresenta então ambiguidades simétricas à da noção elástica de totalitarismo, permitindo meter no mesmo saco relações sociais fortemente diferentes. As exigências teóricas de Trotsky são de outro rigor.

Desde Dezembro de 1940, Schachtman, que preside então ao SWP, retoma por sua conta as teses de Burnham: nem Estado operário, nem Estado capitalista, a União Soviética representaria uma nova sociedade de exploração dirigida por uma nova classe dirigente burocrática. Daqui, ele conclui um antagonismo irredutível entre duas classes: antiga e nova, burguesia e burocracia. Se a burocracia joga um papel progressista, apesar de si mesma, o alinhamento no "campo socialista" pode encontrar uma justificação apesar dos crimes do Kremlin; se são a burguesia e as democracias parlamentares que representam a força progressista, é justificado ordenarmo-nos atrás da sua bandeira na cruzada anti-totalitária. Desenham-se, assim, duas formas opostas de "campismo", obedecendo à lógica binária da exclusão de partes. Com Burnham, ela acabará num apoio ao maccarthismo e à guerra americana no Vietname.

Na sequência do pacto germano-soviético, Trotsky lembra que a IV Internacional preconiza desde a sua fundação, a grande indignação dos "amigos da URSS", "a necessidade de derrubar a burocracia através de uma insurreição revolucionária dos trabalhadores". Qualificando esta burocracia como uma casta, ele sublinha o "carácter fechado, o despotismo, a morgue da camada dirigente", mas "esta definição não tem obviamente carácter estritamente científico". Para lá da querela terminológica, trata-se de saber se "a burocracia constitui uma excrescência temporária" do organismo social, ou se ela já "se transformou em órgão estritamente necessário", capaz de fundar um novo modo de produção e de abrir uma terceira via entre capitalismo e socialismo na história da humanidade. Se a burocracia estalinista sobreviveu mais tempo do que o previsto, a sua decomposição, a sua derrota final e a sua reconversão mafiosa confirmam a resposta negativa.

Foram desenvolvidas duas grandes alternativas teóricas à posição de Trotsky. A que caracteriza o regime soviético como "um capitalismo de Estado", inaugurando uma nova era que sucederia ao capitalismo concorrencial de mercado. E a do "colectivismo burocrático", segundo a qual a burocracia constituiria uma nova classe, instituindo uma nova escravatura em benefício de um explorador totalitário. Trotsky não hesita em utilizar a expressão "ditadura totalitária" para caracterizar o regime estalinista. Mas insiste no facto de que esse "regime totalitário não poder ser senão um regime temporário e transitório", e não uma nova forma de desenvolvimento orgânico das sociedades modernas.

A "defesa da URSS" não é, diz ele, a defesa daquilo em que ela se assemelha aos países capitalistas, mas daquilo em que ela ainda se distingue. É por isso que "o derrube da burocracia é indispensável à preservação da propriedade de Estado", e "é apenas nesse sentido que nós somos partidários da defesa da URSS". Esta defesa não significa a mínima aproximação com a burocracia do Kremlin: "Na realidade, nós defendemos a URSS como defendemos os países colonizados, como regemos todas as tarefas que nos fixamos, não apoiando certos governos imperialistas contra outros, mas pelo método da luta das classes internacionais, nas colónias como nas metrópoles." A analogia repetida entre a defesa da URSS e a dos países colonizados indica uma dificuldade irresolúvel, cuja raiz reside na vontade de dar a formas políticas uma caracterização directamente social.

Nos territórios ocupados na Europa, é provável, para Trotsky, que Moscovo "proceda à expropriação e à estatização dos grandes meios de produção". Tratar-se-ia então de uma medida revolucionária aplicada por meios burocrático-militares. Toda a mobilização independente de massas seria sem dúvida reprimida (como o foi, efectivamente, em 1953 em Berlim-Leste, em 1956 em Budapeste, em 1968 em Praga, em 1976 na Polónia):

"o critério político essencial para nós não é a transformação das relações de propriedade nesta região ou naquela, por importante que ela possa ser, mas a mudança a operar na consciência e na organização do proletariado mundial. Deste único ponto de vista decisivo, a política de Moscovo, considerada globalmente, é inteiramente reaccionária e continua a ser o principal obstáculo à via da revolução mundial."

Enquanto se recusa a simplificar uma realidade rasgada por contradições reais, Trotsky faz um balanço globalmente negativo do estalinismo. A extensão dos territórios dominados pela burocracia pode aumentar o prestígio do Kremlin e engendrar ilusões sobre a possibilidade de substituir a revolução por manobras burocráticas vindas do topo: "Este mal supera em muito o conteúdo progressista das reformas estalinistas na Polónia." É por isso que a anexação pela União Soviética de novos territórios, como os da Ucrânia ocidental, é categoricamente condenada. Em contrapartida, se Hitler virasse os seus exércitos contra a Rússia, seria preciso "colocar em primeiro plano a resistência militar a Hitler", pois não se lhe podia confiar a tarefa de derrubar Estaline.

À questão de saber se, como sustenta Burnham, podemos qualificar de imperialista a política de expansão do Kremlin, Trotsky responde com a necessidade de compreender o sentido histórico do termo. A história conheceu diferentes tipos de imperialismos (esclavagista, feudal e fundiário, comercial e industrial). Podíamos falar de imperialismo burocrático, com a condição de sublinhar não apenas as similitudes mas também as diferenças. Seria mais exacto definir a sua política como aquela "da burocracia bonapartista de um Estado operário degenerado e cercado pelo Imperialismo". A fórmula, afirma, é menos sonante, mas mais justa do que simplesmente a de "política imperialista". A tentação de apelar à insurreição em duas frentes na Polónia, contra Hitler e Estaline, é obviamente grande. Mas a questão concreta é saber o que fazer se Hitler invade a URSS antes de a revolução ter decidido o destino de Estaline. Nesse caso, seria necessário combater as tropas de Hitler, como em Espanha no Exército Republicano contra o levantamento franquista, sem para isso renunciar à independência programática e organizativa da IV Internacional.

Defensismo, derrotismo, neutralismo e resistência.

O Manifesto de Alarme é marcado pela preocupação de não recair, em nome de uma oposição entre a democracia e o fascismo, numa união sagrada, como em Agosto de 1914. Para os países vencidos e ocupados, Trotsky prevê um agravamento da situação social das massas e a possibilidade de movimentos de resistência à opressão nacional: "A França está prestes a tornar-se numa nação oprimida", escreve ele num dos seus últimos textos de Junho de 1940, rejeitando, porém, a adaptação ao novo mapa da Europa dos "velhos argumentos social-patrióticos": se a classe operária "liga o seu destino ao destino da democracia imperialista, não poderá seguir-se senão uma nova série de derrotas". Ele mantém-se cauteloso, sublinhando que a opressão nacional e a ocupação territorial constituem um novo dado na guerra. Quando um país é ocupado, não basta lembrar que "o inimigo está dentro do nosso país" e opor o derrotismo revolucionário à união sagrada. É com este desafio que os trotskistas vão estar confrontados, armados de uma herança preciosa, mas sem manual de instruções.

A independência numerosas vezes proclamada relativamente à resistência oficial em França ou na Jugoslávia, não resolve o problema. Necessária contra o perigo de deriva nacionalista, ela é insuficiente para traçar uma orientação política concreta. A complexidade da guerra e dos seus desfechos está ainda aumentada pela invasão da URSS ou pela resistência da China contra o Japão. A resolução da IV Internacional sobre a intervenção americana na China de Março de 1941, reconhece a necessidade de a China aceitar a ajuda americana sem ignorar os seus perigos, pois "a guerra entre os imperialismos japonês e americano (de que Tchang Kai Chek será o aliado subalterno) não suprime os problemas colocados pela luta da China para expulsar os invasores japoneses". Esta posição circunspecta, reflecte sem qualquer dúvida as hesitações e as divisões dos próprios trotskistas chineses, entre a adopção de uma política de classe pura que conduzisse a um abstencionismo sobre a questão nacional, e uma aliança perigosa com a resistência maoísta. Desde a invasão da Rússia pelas tropas alemãs, os documentos preconizam o boicote e a sabotagem dos países que combatem a URSS, mas não dos países aliados.

Após a ruína de 1940, as organizações trotskistas não podem escapar à correcção dos esquemas da Primeira Guerra Mundial. A evolução de Marcel Hic, dirigente da secção francesa até à sua deportação, em Outubro de 1943, é significativa. Em 1941, ele saúda no gaullismo das massas "alguma coisa de essencialmente são". No congresso clandestino do POI de 1943, ele ataca a "lamentável fantasia nacionalista" da imprensa trotskista no início da guerra. Estamos longe, em qualquer caso, da neutralidade por vezes imputada aos trotskistas. O boletim do comité pela IV Internacional proclama, em Setembro de 1940: "A França tende a tornar-se um país oprimido. Queremos uma França livre, uma França francesa, no quadro de uma Europa socialista." Ele apela a "comités de vigilância nacional", a "órgãos de luta nacional", à "resistência passiva organizada" em torno de palavras de ordem democráticas como: "Abaixo a pilhagem das riquezas francesas! Libertação dos prisioneiros! Evacuação dos territórios franceses" França unida, livre, independente!" Simultaneamente, longe de qualquer germanofobia, ele mantém a fraternização com o trabalhador alemão sob o uniforme, "irmão enganado", sem renunciar a declarar-se "adversários impiedosos do nazi sob o uniforme".

As Teses sobre a questão nacional, redigidas por Marcel Hic em Julho de 1942 para o Secretariado Europeu, declaram que a luta pelas reivindicações nacionais em França é "inseparável do apoio integral à luta dos povos coloniais contra o imperialismo". Elas reafirmam o apoio às reivindicações nacionais, incluindo os direitos das comunidades linguísticas (Bretões, Bascos, Flamengos, Valões, Ucranianos ou Albaneses) a se administrarem, a terem uma Justiça e a receber um ensino na sua língua. Estas teses contradizem a lenda da indiferença dos trotskistas (e dos marxistas em geral) à questão nacional. Elas recomendam a "participação em qualquer levantamento nacional de massas", sob palavras de ordem adequadas. Em Dezembro de 1943, uma resolução do Secretariado Europeu considera que o movimento dos partisans favorece a entrada das massas na política e pode contribuir para a ajuda militar à União Soviética. Ela pede aos militantes que "desempenhem o papel de destacamentos armados da revolução proletária e não de supletivos do exército imperialista; que se organizem o mais possível de forma autónoma sobre uma base democrática, com exclusão de qualquer elemento burguês ou reaccionário; que se constituam em fracções camufladas nas fileiras das organizações militares controladas pela união sagrada; que rechacem qualquer política de assassinato de soldados alemães e qualquer acção de sabotagem que escavaria um fosso entre traba-lhad ores indígenas e soldados alemães; que organizem a propaganda de fraternização com as tropas de ocupação e abram as suas fileiras aos desertores alemães". As divergências com a resistência oficial não são sobre a necessidade da luta contra o ocupante, mas sobre os métodos: os trotskistas do POI rejeitam a acção militar minoritária e colocam o acento sobre a resistência e a auto-organização de massas. A sua orientação pode parecer irrealista tendo em conta as forças implicadas e que as tentativas de se integrarem nos maquis chocam com a repressão estalinista, como testemunha o assassinato de Pietro Tresso e dos seus camaradas depois da evasão colectiva do Puy (relatada por Pierre Broué, Alain Dugrand e Raymond Vacheron em Assassinatos no maquis).

Quando, em 1943, Estaline oficializa a dissolução da III Internacional, o Secretariado Europeu da IV Internacional consegue preparar uma conferência que se reúne em Fevereiro de 1944. Ela afirma que "o proletariado não pode desinteressar-se da luta das massas contra a opressão do imperialismo alemão", mas critica simetricamente "os desvios social-patrióticos" do POI (secção francesa reconhecida no início da guerra) e "o desvio sectário de esquerda" da sua dissidência minoritária, o Comité Comunista Internacionalista. Em vez de distinguir entre "o nacionalismo imperialista da burguesia vencida" e o nacionalismo das massas que exprimem de forma reaccionária a sua resistência à exploração e ao imperialismo ocupante, o POI teria considerado como progressista a luta da sua própria burguesia "sem se distanciar do gaullismo". Inversamente, o CCI ter-se-á recusado a distinguir "o nacionalismo da burguesia do movimento de resistência das massas". O texto acrescenta a propósito do movimento dos partisans: "Quando se trata de grupos de golpes-de-mão montados por organizações nacionalistas ou estalino-patrióticas, a atitude resultará dos seus objectivos e dos resultados da sua acção." Estas formulações ilustram bem as contradições com que se debatiam os pequenos núcleos militantes, numa confusão em que se opunham forças colossais. O seu esforço é tão mais honorável, quanto os militantes estão expostos ao duplo perigo da repressão pelo ocupante e, no seio da própria resistência, à hostilidade criminosa dos estalinistas.

Órgão do POI clandestino, La Verité (A Verdade) começou a reaparecer a partir de Agosto de 1940 sob a forma de um n° 1 renascido. A preocupação em combater o chauvinismo nas fileiras operárias concretizar-se-á em 1943 na publicação Arbeiter un soldat (Trabalhador e Soldado), boletim destinado às tropas de ocupação. Desde o início de 44, A Verddadde denuncia os projectos de "esquartejamento da Alemanha". A 17 de Fevereiro de 1944, apela "ao socorro dos rapazes do maquis" e a "atacar as gentes da milícia como cães enraivecidos". A 29 de Abril de 1944 tem por título: "Da luta reivindicativa à luta armada." O número especial do 1° de Maio de 1944 apela a um 1° de Maio de greve geral, à preparação, aquando do desembarque, para ocupar as fábricas e as minas para instituir um controle operário sobre a produção e os transportes, à luta pelos Estados Unidos Socialistas da Europa.

Se as críticas do POI relativamente às direcções da resistência se baseiam nos métodos e não nos princípios, a posição do CCI é mais abstencionista, bem como a do grupo que se constitui em volta do Boletim Lutte de Classes, antepassado do actual Lutte Ouvriére. Este grupo foi constituído com origem num punhado de militantes que rodeavam David Korner, aliás, Barta, judeu romeno que, após ter tentado em vão juntar-se à Espanha Republicana, milita no POI, onde defende, com a minoria, a entrada no PSOP de Marceau Pivert. Afastou-se da Internacional e da sua secção francesa ainda antes da guerra, acusando-as de estarem a reboque dos partidos comunistas e das esquerdas socialistas, em detrimento da sua própria independência política e organizativa. O seu grupo via na resistência "um engano da colaboração de classe" e o seu boletim martelava palavras de ordem contra a guerra imperialista directamente inspiradas no derrotismo revolucionário da Primeira Guerra Mundial. No seu n° 1, o Luta de Classes lançava uma campanha contra o "serviço de trabalho obrigatório", cujo principal responsável, Mathieu Bucholtz, foi assassinado em Setembro de 1944 pelos estalinistas. O n° 25, de Fevereiro de 1944, trazia o título, a propósito da execução do grupo Manouchian: "Defesa contra os terroristas". No seu editorial, Barta escrevia: "Olhem bem para eles, estes rostos de oprimidos e de explorados, estes rostos de trabalhadores de vários países (...). A sua coragem deve servir de exemplo."

A guerra vai marcar, para as organizações trotskistas, uma ruptura de continuidade geracional e organizativa. A maioria dos pioneiros e dos fundadores desaparece, seja sob os golpes da repressão, seja por lassidão e desmoralização. Às vítimas da repressão fascista ou colonial, junta-se a lista de vítimas da repressão estalinista, incluindo o próprio Trotsky, alcançado pelos assassinos no México, em Agosto de 1940.


Este texto foi uma colaboração
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Inclusão 28/03/2010
Última alteração 08/04/2016