A Filosofia da Práxis no Brasil

Carlos Nelson Coutinho

1999


Fonte: Partido Comunista Brasileiro — PCB. Entrevista concedida a Néstor Kohan, no México em 1999, para o livro «De Ingenieros al Che. Ensayos sobre el marxismo argentino y latinoamericano».
Tradução: Victor Neves, militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro).
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.

Intróito

Carlos Nelson Coutinho é um dos principais especialistas e investigadores brasileiros sobre o pensamento de György Lukács e Antonio Gramsci, cujas obras introduziu no Brasil. De Lukács, com quem manteve correspondência (junto com seu companheiro Leandro Konder) durante a última década de vida do filósofo húngaro, Coutinho traduziu Marxismo e crítica literária; Introdução a uma estética marxista; Ontologia do ser social. Hegel e Ontologia do ser social. Marx.

Não por acaso, seu primeiro livro de crítica literária, Literatura e humanismo. Ensaios de crítica marxista (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967) é fortemente atravessado por um élan lukácsiano.

Poucos anos depois, utilizando amplamente a conceituação lukácsiana madura da Ontologia do ser social acerca da “razão dialética e da riqueza humanista da práxis”, o pensador brasileiro publicou O estruturalismo e a miséria da razão (1971). Nesta obra, precursora de muitas críticas posteriores, Coutinho questionou duramente as distintas vertentes do pensamento estruturalista – principalmente francês – absolutamente em voga nesses anos, personificadas em Claude Lévi-Strauss, Louis Althusser, Michel Foucault, entre outros. Sua crítica foi uma das primeiras desta tradição a ser sistematicamente realizada na América Latina. De todas estas críticas, sobressai a que dirigiu contra Althusser, cujo pensamento caracterizou como “uma posição de direita, burocrática e conservadora, expressão do racionalismo abstrato e da epistemologia neopositivista”. Cabe esclarecer que neste trabalho Coutinho também criticava, sempre desde a perspectiva do último Lukács, o “subjetivismo irracionalista do humanismo especulativo”. Ainda militando, nessa época, no PCB (organização com que rompeu no início da década de 80 após a publicação de A democracia como valor universal [São Paulo: Ciências Humanas, 1980]), Coutinho arremeteu fortemente em O estruturalismo e a miséria da razão contra “a manipulação burocrática das consciências realizada pelo stalinismo e também pelo neostalisnismo”. Também acusou estas correntes de haver convertido o marxismo em “uma ideologia da confiança e uma sociologia vulgar positivista”.

Junto com a obra de Lukács, Coutinho também recebeu a influência de Antonio Gramsci, de quem traduziu em 1966 O materialismo histórico e a filosofia de Bedetto Croce (publicado com o título de Concepção dialética da história, Civilização Brasileira, 1966); e em 1968 Os intelectuais e a organização da cultura e Literatura e vida nacional (também pela Civilização Brasileira). Se durante o período 1961-65 as obras do jovem Lukács e de Antonio Gramsci foram o horizonte central no pensamento filosófico de Coutinho, desde aproximadamente 1965 até 1975 este lugar será ocupado pelo Lukács maduro (não o Lukács de História e Consciência de Classe, mas o da Estética e da Ontologia do ser social). Nesse período, sua leitura filosófica fortemente lukácsiana do marxismo remetia tangencialmente a discussão também a Antonio Gramsci, cuja filosofia era caracterizada, em O estruturalismo e a miséria da razão, como “um historicismo subjetivista cuja raiz remonta ao jovem Benedetto Croce”. Não obstante, Coutinho seguia marcando a propriedade do estreito vínculo político entre Gramsci e Lenin.

Mais tarde, provavelmente a partir de 1975, de maneira paralela à influência política que recebeu do Partido Comunista Italiano (PCI), principalmente de Palmiro Togliatti, mas não apenas dele, Coutinho reconsideraria estas posições sobre Gramsci. A partir de então, reavaliaria seu legado não só como filósofo, mas principalmente como teórico da política. Publicaria então a primeira versão de sua Introdução a Gramsci (1981, logo ampliada e reeditada em diversas ocasiões), onde destacaria no autor dos Cadernos do Cárcere“ sua ontologia marxista da práxis política” e sua operação de “conservação e superação dialética” das categorias leninistas. Nesta obra, absolutamente laudatória do pensamento gramsciano, ainda se ouviriam ecos do período lukácsiano, como por exemplo quando Coutinho insiste com a tese de que existiriam “resíduos idealistas nas reflexões especificamente filosóficas de Gramsci”.

Nos últimos anos Coutinho buscou repensar o conjunto de sua obra anterior, explorando a fundo a possível articulação entre seus dois grandes amores filosóficos: a obra de Gramsci e a do Lukács maduro, entendendo ambas como duas modalidades diferentes mas complementares de filosofia da práxis. Paralelamente, em termos políticos, tratou de fundamentar a consigna de Rosa Luxemburgo, “Não há democracia sem socialismo, nem socialismo sem democracia”, mas valendo-se centralmente das categoria gramscianas de “sociedade civil” e de “Estado ampliado”. Na Argentina, deram-se a conhecer alguns de seus trabalhos graças às traduções ao espanhol da editora mexicana ERA.

Entre seus últimos livros publicados no Brasil se destacam Cultura e sociedade no Brasil. Ensaios sobre ideias e formas (Belo Horizonte: Oficina do Livro, 1990); Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios (São Paulo: Cortez, 1994 e 1996); Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999) e Contra a corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo (São Paulo: Cortez, 2000).

Entre suas traduções ao português, devem ser mencionadas, além das de Gramsci e Lukács, As ideias estéticas de Marx de Adolfo Sánchez Vázquez; Lógica formal, lógica dialética, de Henri Lefebvre; Socialismo e democracia. Escritos 1944-1964, uma antologia de Palmiro Togliatti e a História do marxismo organizada por Eric J. Hobsbawm (publicada originalmente na Itália pela Einaudi). A isto dever-se-ia agregar a edição dos Cadernos do Cárcere – ainda em curso [referência ao ano de 2000, quando este texto foi escrito] de Gramsci (também pela Civilização Brasileira), com os quais Coutinho realizou uma espécie de síntese entre a edição temática de Togliatti e a última edição crítica de Valentino Gerratana.

Atualmente [referência ao ano 2000], Carlos Nelson Coutinho é militante do PT [foi membro-fundador do PSoL a partir de 2004 – N. do T.] e professor e investigador do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A entrevista foi realizada especialmente para este livro [«De Ingenieros al Che. Ensayos sobre el marxismo argentino y latinoamericano», N. do T.].

Néstor Kohan: Em sua obra teórica dois autores ocuparam o centro da cena: György Lukács e Antonio Gramsci. Por que os tomou como paradigmas e interlocutores privilegiados?

Carlos Nelson Coutinho: Creio que Lukács e Gramsci são os autores que melhor desenvolvem as indicações metodológicas de Marx, adequando-as ao século XX e garantindo sua perdurabilidade no século XXI. O último Lukács, ao interpretar o legado filosófico de Marx como uma “ontologia do ser social” – que, a partir da afirmação do trabalho como “modelo de toda a práxis social”, concebe o ser social, ao contrário do ser natural, como uma articulação orgânica entre causalidade e teleologia, entre determinação e liberdade –, me parece haver proposto a mais lúcida leitura filosófica do marxismo. Gramsci, por sua vez, não só compreendeu a essência da filosofia de Marx ao defini-la como “filosofia da práxis”, mas sobretudo promoveu a mais lúcida e criativa renovação da teoria política marxiana, ao formular o conceito de “sociedade civil” e, deste modo, ao elaborar sua noção específica de “Estado ampliado”.

Além disso, penso que, não obstante algumas divergências não essenciais, é perfeitamente possível conjugar as reflexões destes dois grandes pensadores: por exemplo, é muito significativa a função essencial que, em ambos, desempenha o conceito de “catarse”, que em Lukács tem uma dimensão ética e estética e que adota, em Gramsci, uma dimensão especificamente política. Mas, em ambos, a “catarse” aparece como o movimento da práxis onde tem lugar a elevação da particularidade à universalidade, da necessidade à liberdade. Penso que seria um trabalho de inestimável valor para a história do marxismo – e trata-se de uma tarefa que me proponho a tentar – aprofundar este estudo das semelhanças e das diferenças entre as reflexões de Gramsci e de Lukács.

N.Kohan: No Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual você militou durante vinte anos, os textos de Lukács e Gramsci circulavam livremente ou estavam de algum modo “proscritos” em função dos manuais soviéticos?

C.N.Coutinho: Ingressei no PCB em 1960, isto é, depois do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), ou seja, depois da denúncia dos crimes de Stalin. A atmosfera cultural já era, então, mais aberta. O PCB (que, diga-se de passagem, não foi jamais tão sectário e dogmático quanto o Partido Comunista Argentino) experimentava neste momento o desafio de outros agrupamentos de esquerda, sobretudo dos cristãos progressistas, e por isso aceitou que seus intelectuais mais jovens propusessem novos autores marxistas. Nos anos 60, publicamos no Brasil não somente Gramsci e Lukács, mas também importantes pensadores da Escola de Frankfurt, como T. Adorno, W. Benjamin e H. Marcuse. Já nos anos 60, no Brasil ninguém levava a sério os manuais soviéticos.

Entretanto, existia uma “divisão do trabalho” tácita: nós, os intelectuais do Partido [PCB], podíamos apresentar e defender Gramsci e Lukács como “filósofos”, mas a definição da linha política era algo reservado à direção do Partido. Por isso, por exemplo, foi muito unilateral a primeira recepção de Gramsci no Brasil: ele era apresentado por nós como o mais brilhante filósofo e crítico literário marxista, mas ficou em silêncio a inegável dimensão política de sua obra. Isto é: o caminho estava aberto para defender Gramsci como o promotor de uma “filosofia da práxis”, mas não como teórico da “revolução no Ocidente”, quer dizer, como uma alternativa aos paradigmas etapistas e rupturistas da III Internacional, a Internacional Comunista.

N.Kohan: Algo semelhante aconteceu na Argentina, quanto a esta “divisão do trabalho” que você menciona, no tocante à recepção gramsciana de Agosti. Você conhecia sua obra? Ela teve influência em sua primeira aproximação de Gramsci?

C.N.Coutinho: De Agosti, me lembro de haver lido Defensa del realismo; Nación y cultura; Cuaderno de Bitácora; Para una política de la cultura – todos em espanhol – e seu único livro publicado no Brasil: Problemas atuais do humanismo. Pelo que me lembro – pois li Agosti nos anos 60, já faz tempo – eu estava, no geral, de acordo com suas posições, mas não diria que tenha me influenciado. Me interessei por ele por ter lido, em 1961, seu prefácio à velha edição argentina deEl materialismo histórico y la filosofia de Benedetto Croce. Depois, o conheci brevemente quando ele veio ao Rio de Janeiro.

N.Kohan: Você teve, junto com Leandro Konder, um intercâmbio epistolar com Lukács, talvez o único da América Latina. Como aconteceu? Quais foram os temas sobre os quais conversaram? De todas as cartas que Lukács te enviou, qual seria a que te resultou mais interessante?

C.N.Coutinho: Meu amigo Leandro Konder escreveu a Lukács (utilizando o endereço do Movimento dos Partidários da Paz), creio que pela primeira vez em 1961, e o filósofo lhe respondeu com muita simpatia e cordialidade. A partir de então, e até a morte de Lukács, em 1971, trocamos com ele, Konder e eu, umas vinte ou trinta cartas. Certamente, a maioria delas não tem grande interesse teórico, tratando por exemplo de edições brasileiras de suas obras etc. Mas creio que algumas têm, sim. Por exemplo, respondendo a Konder, em 1962, Lukács disse que conhecia a obra de Gramsci. Depois disto, tanto em entrevistas quanto no capítulo sobre ideologia na Ontologia do ser social, Lukács cita a Gramsci, sempre de modo crítico, mas com inegável simpatia. Chegou a dizer que ele, Korsch e Gramsci, nos anos 20, haviam tentado mas não tiveram êxito em encontrar soluções adequadas à questão do “renascimento do marxismo”. E concluía dizendo: “Gramsci era o melhor de nós”. Será que Konder chamou a atenção de Lukács sobre a importância de Gramsci? Eu, de minha parte, estava escrevendo nos anos 60 um ensaio sobre F. Kafka, onde tentava – contra a letra de Lukács, mas, eu acreditava, fiel ao espírito de seu método – demonstrar que Kafka era um realista. Apresentei em uma carta a Lukács minhas ideias centrais sobre Kafka. Bem, ele me respondeu, em 1968, fazendo uma autocrítica explícita de seu livro La significación presente del realismo crítico [publicado no Brasil com o título Realismo crítico hoje, N. do T.], no qual, como se sabe, há um capítulo absurdamente intitulado “Franz Kafka ou Thomas Mann?”. Na carta me dizia com todas as letras que havia escrito este livro em condições desfavoráveis e que certamente era preciso reavaliar Kafka. Trata-se sem dúvida de uma carta importante, tanto que Nicolás Tertulián – um dos principais lukácsianos de hoje – já a citou algumas vezes, registrando o fato de que é a única carta onde Lukács procede a uma autocrítica explícita daquele livro e de suas posições negativas sobre Kafka.

Uma investigadora brasileira, Tania Tonezzer, publicou algumas destas cartas em uma revista italiana.

N.Kohan: Em seu trabalho O estruturalismo e a miséria da razão (1971), você saiu bem cedo em ataque à corrente althusseriana, inclusive quando seus textos causavam furor e eram moda indiscutida na América Latina. A quem se deveu esta decisão? Foi uma resposta frente à proliferação dos manuais de Marta Harnecker?

C.N.Coutinho: Quando escrevi O estruturalismo e a miséria da razão, em 1971, não conhecia ainda o manual de Marta Harnecker, que certamente não foi um evento positivo na divulgação do marxismo na América Latina. Afortunadamente, este manual não teve no Brasil a mesmo influência que teve em outros países latino-americanos. Quando meu livro foi publicado (simultaneamente no Brasil e no México), eu era um lukácsiano quase fanático, que além disso já conhecia Gramsci bastante bem: não me podia satisfazer a leitura althusseriana de Marx, que se contrapunha a uma linha de interpretação do marxismo – digamos, humanista e historicista – com a cual estava e estou de acordo até hoje. Ademais, naquele momento, quando a ditadura militar havia assumido sua face mais repressiva no Brasil, Althusser paradoxalmente exercia influência entre nós no sentido de duas tendências díspares, mas a ambas das quais eu me opunha. Por um lado, por intermédio de Regis Debray, Althusser tinha forte presença nas correntes de ultra-esquerda, que, em clara divergência com o PCB, propunham o caminho da luta armada; por outro, também tinha ascendência sobre setores da intelectualidade que, sobretudo na Universidade, buscavam, em nome de uma superação da “ideologia” e do “humanismo”, reduzir o marxismo a uma pura metodologia das ciências, sem nenhuma dimensão prática. Meu livro tinha assim, não obstante sua dimensão teórico-filosófica, uma clara finalidade de política cultural. Era parte de uma batalha político-ideológica, feita (devido à censura ditatorial) de forma mais ou menos dissimulada.

Não sei se ainda estou de acordo com tudo o que escrevi ali há quase trinta anos. Mas me agrada muito que você, que mal havia nascido quando o livro foi publicado, ainda fale dele.

N.Kohan: Você teve alguma relação com o grupo de marxistas ligados nos anos 60 a José Arthur Giannotti? Que papel desempenhou este grupo no marxismo brasileiro?

C.N.Coutinho: Não, não tive nesta época relação alguma com este grupo. Muitos de seus integrantes são hoje em dia meus amigos pessoais, mas havia então uma clara diferença (quase uma oposição!) entre os marxistas do Rio de Janeiro (quase todos vinculados ao PCB) e os marxistas de São Paulo (quase todos professores universitários e sem partido). O grupo que formou o “marxismo paulista” era já então muito diversificado, e as divergências entre eles cresceram ainda mais com o tempo. O grupo de São Paulo se estruturou em torno de um famoso seminário sobre O Capital do qual fizeram parte – para que seja possível avaliar as diferenças! – tanto meu amigo Michael Löwy quanto o atual presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso [referência em 2000, ano da entrevista, N. do T.].

Agora, muitos dos integrantes deste grupo já não são marxistas hoje: este é o caso, para não falar de Cardoso, também de Giannotti. É certo que tiveram uma influência no marxismo brasileiro, inclusive positiva, sobretudo porque criticaram as formulações errôneas do PCB, por exemplo a ideia de que existiria uma “burguesia nacional” progressista e anti-imperialista. Cardoso, por exemplo, em um brilhante livro de inícios dos anos 70, mostrou muito bem que a burguesia brasileira queria a associação com o imperialismo. Sustentou então que a meta de nossa burguesia era um “desenvolvimento dependente-associado”. Mas quem poderia imaginar nessa época que ele mesmo se converteria mais tarde em executor desta política?

Em geral, creio que alguns dos expoentes do chamado “marxismo paulista” tiveram no Brasil o mesmo papel que tiveram os “marxistas legais” na Rússia: leram O Capital para sustentar que deveríamos nos “modernizar”, desenvolver as forças produtivas, mas na prática fizeram da burguesia o ator desta modernização. Portanto, o itinerário de Cardoso não é um raio em dia de céu azul.

N.Kohan: Você escreveu um ensaio sobre Caio Prado Jr. Que repercussões teve na cultura de esquerda brasileira sua obra historiográfica questionadora do relato canonizado pelo stalinismo sobre o suposto “feudalismo” latino-americano?

C.N.Coutinho: Caio Prado Júnior foi o primeiro a tentar seriamente uma interpretação do Brasil a partir de categorias marxistas. Seu ensaio Evolução política do Brasil, de 1933, constitue um marco na cultura brasileira. Ainda mais decisivos são seus livros sobre a Formação do Brasil Contemporâneo, Colônia, de 1943 [o livro foi lançado, na verdade, em 1942, N. do T.], e sua História econômica do Brasil, de 1945.

Caio Prado Júnior – tal como Mariátegui – não conhecia muito bem o marxismo. Pode-se ver facilmente que era escassa sua familiaridade não apenas com as obras de Marx, mas também com as dos marxistas posteriores. Sem dúvida, tal como o Amauta [apelido para Mariátegui, derivado do nome dado pelos incas a seus educadores, posteriormente adotado por ele como nome para sua revista de política, socialismo, arte e cultura, N. do T.], intuiu muito bem os traços principais da evolução de nossos países para o capitalismo, isto é, o fato de que esta evolução seguiu uma via “não-clássica”, caracterizada pela permanência de traços pré-capitalistas, fortemente autoritários e excludentes, baseados em formas de coerção extra-econômica sobre os produtores diretos. Como Mariátegui, Caio Prado Júnior “inventou” categorias muito semelhantes às de “via prussiana” (Lênin) e de “revolução passiva” (Gramsci). Por isso, e neste caso também como o Amauta, Caio Prado – mesmo tendo sido militante do PCB – sempre se opôs abertamente à “leitura” terceiro-internacionalista do Brasil. Seu último livro significativo, de 1966, intitulado A revolução brasileira, é uma crítica muito dura aos paradigmas da III Internacional utilizados pelo PCB. É indiscutível sua importância – ao lado de outros, como por exemplo Florestan Fernandes, que jamais militou no PCB – para a construção de uma “imagem marxista do Brasil”.

N.Kohan: A publicação de seu ensaio Introdução a Gramsci (1981) ocorreu na mesma época do surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT), do qual agora [2000, N. do T.] você é militante. Houve alguma relação entre ambos os fatos?

C.N.Coutinho: Meu livro sobre Gramsci – que teve várias edições, incluindo a mexicana que você cita, a última das quais de 1999 com o título Gramsci, Um estudo de seu pensamento político – foi escrito no momento de minha ruptura com o PCB. Nessa época, era já mais ou menos consciente de que a proposta gramsciana, que leva à formulação de um vínculo orgânico entre socialismo e democracia, era incompatível com a herança teórica e política do PCB, ou, mais precisamente, com a herança política da III Internacional à qual o PCB se mantinha vinculado.

Mas, naquele momento, não me parecia também que o neonato PT fosse o legítimo herdeiro da lição gramsciana. O PT surgiu marcado por um forte e soreliano [o termo é referente a Georges Sorel, militante e teórico francês do “sindicalismo revolucionário” que exerceu grande influência na virada do século XIX para o XX, tendo tido ascendência inclusive sobre o jovem Lukács pré-marxista, N. do T.] “espírito de cisão”: não fazia alianças, parecia preferir, ao frentismo inconsequente do PCB, um completo isolamento político. Assim, fiquei sem partido até 1989, quando finalmente, depois de muitas dúvidas, ingressei no PT. Creio que, enquanto isso, mudamos os dois, eu e o PT. E continuamos mudando, talvez o PT mais que eu. Quando ingressei no PT, me diziam que eu estava “à direita”, sobretudo porque acreditava, como acredito ainda hoje, que sem democracia não há socialismo. Hoje, dez anos depois, no interior do Partido, estou “à esquerda”. E sabe por quê? Porque também continuo convencido de que sem socialismo não há democracia. Não creio que esta seja uma situação confortável, mas me parece que meu destino é ser sempre heterodoxo nos partidos nos quais milito. Ainda assim, minha militância resulta do fato de que, em minha opinião, ainda não se inventou um modo melhor de fazer política do que os partidos.

N.Kohan: Fazendo um balanço retrospectivo de sua obra e de sua atividade militante, o que te trouxe no plano da ética o envolvimento desde tão jovem com o universo filosófico de Karl Marx?

C.N.Coutinho: Uma experiência inesquecível! Lembro-me de ter lido Marx aos 15 anos. Foi um acaso muito feliz para mim o fato de que meu pai tinha em sua biblioteca o Manifesto Comunista. Em minha geração, não creio que ninguém tenha lido o Manifesto sem consequências definitivas em sua formação. Com Marx, não aprendi somente a ver melhor o mundo, a compreendê-lo de modo mais adequado. Estou seguro de que também devo à leitura precoce de Marx o melhor de minha formação ética. Mais tarde, Gramsci me revelou qual é a mais lúcida norma de vida para um intelectual marxista: “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”. Nesta época difícil de refluxo dos objetivos pelos quais temos sempre lutado, não há modo melhor de nos mantermos fiéis à lição de Marx do que aquele sugerido nesta indicação de Gramsci: uma análise fria e serena da realidade, mas que deve ser complementada pela conservação dos motivos éticos e racionais que iluminaram e guiaram nossas vidas.


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Inclusão 19/03/2015